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Moacir Santos: Reencontro com o Ouro Negro

Festival, discos e livro – a ser lançado pela Cepe Editora – aprofundam retomada da obra do maestro, compositor e multi-instrumentista pernambucano

TEXTO Débora Nascimento

01 de Setembro de 2013

Wynton Marsalis apelidou Moacir Santos de “Duke Ellington brasileiro”

Wynton Marsalis apelidou Moacir Santos de “Duke Ellington brasileiro”

Foto Fabio Seixo/Agência Globo

Na frente do Teatro de Santa Isabel, um pequeno grupo de amigos conversava. Um deles contou um fato. No ano passado, um rapaz deu de cara com o LP Coisas, num sebo cearense, e ficou surpreso ao ouvir do vendedor o valor do produto: “Esse é mais caro, 15 reais”. Após efetuar o pagamento, o cliente quase saiu correndo, com receio de que o sebista descobrisse o próprio engano e se arrependesse, pois o rapaz acabara de adquirir um dos maiores tesouros já produzidos na música brasileira.

Para se ter uma ideia, no ano passado, o mesmo long play estava custando, na internet, em torno de 1.700 dólares. Esse episódio da compra do disco foi relatado no intervalo do Festival Moacir Santos, cujo título exibe o nome do autor do citado álbum. Naquela noite, no teatro, a plateia pôde assistir à Banda Ouro Negro, que apresentou, primorosamente, o repertório de seu disco homônimo, lançado em 2001, que incluía as “Coisas” de Moacir.

Foi um evento memorável e um momento histórico, porque, de alguma forma, tratava-se do primeiro encontro da música de Moacir Santos com seu estado natal. O que é um contrassenso, pois o músico está no panteão dos maiores artistas do país. No entanto, Moacir sofreu do mal que acomete aqueles que saem de sua terra. “Tom Jobim dizia que, no Brasil, é proibido o aborígene sair da taba. Moacir Santos foi um dos que saíram e o Brasil fez desabar sobre seu nome um manto de silêncio. Pois chega de silêncio. Nanã sabe das coisas e diz que chegou a hora de o Brasil saber de Moacir, reaprender Moacir, merecer Moacir”, afirmou o jornalista e escritor Ruy Castro, no encarte de Ouro Negro, aclamado álbum produzido pelos músicos cariocas Mário Adnet e Zé Nogueira.

Até a chegada desse disco no mercado fonográfico, a música do maestro era ainda mais restrita, a maioria dos ouvintes consistia em músicos profissionais, boa parte jazzistas norte-americanos. O CD tornou-se um marco, e o nome Moacir Santos voltou a circular no seu país, passando a influenciar uma nova geração de compositores e instrumentistas. Uma dessas pessoas foi a flautista carioca Andrea Ernest Dias, que conheceu mais profundamente o trabalho do compositor nesse período, ao ser convidada para participar do Ouro Negro. A partir daí, a paixão pelos sons do pernambucano só cresceu. Tanto, que a música dele passou a ser objeto de sua tese de doutorado, na Universidade Federal da Bahia, material que será publicado pela Cepe Editora, tornando-se, a partir de então, o primeiro livro no Brasil sobre a vida e a obra de Moacir Santos (!), sob o título Os caminhos de um músico brasileiro.

Em seu trabalho, Andrea estudou a fundo a música do compositor, seu processo de composição, harmonia, arranjos e, de quebra, levantou a história de vida do maestro, que nasceu em 1926, no município de Flores, sertão pernambucano, e que, aos três anos, ficou órfão de mãe e foi abandonado pelo pai. O menino foi adotado por uma família com a qual conviveu até aos 14 anos. Jovem assim, saiu de casa para viver de música. O futuro multi-instrumentista (que dominaria saxofone, piano, clarinete, trompete, banjo, violão e bateria), quando adolescente, já tocava vários instrumentos de sopro. Após transitar pelo interior do estado, chegou ao Recife, onde foi contratado pela Rádio Clube. Depois, seguiu para João Pessoa, para, então, chegar ao Rio de Janeiro e se tornar o primeiro maestro negro da Rádio Nacional, cujos principais profissionais dessa área eram de origem italiana, como Radamés Gnatalli.

FORMAÇÃO
Radamés, a propósito, foi um dos professores de Moacir. Num determinado período, o pernambucano chegou a ter cinco mestres. Um para cada dia da semana. Uma de suas diversões, como aluno, era tirar a mesma dúvida com cada um deles, para poder chegar à resposta mais completa possível. Essa faceta de estudo do artista é um dos destaques das pesquisas de Andrea e algo que até hoje admira e influencia alunos e fãs.

A carioca escolheu a UFBA para realizar seu doutorado por um motivo específico: “A Universidade Federal da Bahia é uma escola muito interessante, porque existe o Grupo de Compositores da Bahia, que era a vanguarda dos anos 1950 e usava todas as teorias novas em música que apareciam. O compositor alemão Hans Joachim Koullreuter fundou essa escola, foi o precursor do dodecafonismo aqui, dessas estratégias todas de composição, que o Moacir (do qual foi aluno e assistente) depois aplicou”, comenta.

Andrea conta que, nesse grupo, na UFBA, começou a atentar para essas outras possibilidades na música, outras análises, além da interpretação, partindo da composição para vários vieses, várias entradas. “Então, peguei essa perspectiva interdisciplinar, com muitas janelas, e fui conduzindo minha pesquisa, reunindo os dados biográficos do Moacir, analisando suas partituras de épocas diferentes, retracei as fases dele, que foi muito mais fácil, porque ele mesmo as definiu, a fase da juventude no sertão, mais intuitiva, mais natural, digamos assim, a fase do Rio de Janeiro, que é mais de consciência musical, em que ele realmente decide se tornar um compositor, já se valendo de todos esses recursos que foi buscar no estudo.”


Evento reuniu músicos no Teatro de Santa Isabel, no Recife, para executar músicas do maestro. Foto: Lídio Parente/Divulgação

Seguindo o exemplo do estudante e do estudioso que Moacir foi a vida inteira, Andrea defende que os músicos devem estar cada vez mais afiados, não somente na prática, mas na teoria. “As pessoas tendem a dizer que é melhor tirar tudo de ouvido, não defendo isso. É importante a intuição, mas não apenas ela. O exemplo do maestro evidencia que a música popular pode ser melhor elaborada. Por isso, o resultado do trabalho dele parece simples, mas é muito elaborado, o que só foi possível porque ele tinha os recursos técnicos, formais e estilísticos para isso, ele pôde avançar”.

O trompetista e compositor Steve Huffsteter, que tocou em vários discos de Moacir, reforça o impacto que o estilo do maestro causa. “É de uma simplicidade complexa ou uma complexidade simples. Ele fazia coisas que ninguém nunca tinha pensando em fazer”. Como cantou Vinicius de Moraes, em Samba da bênção, “não és um só, és tantos”.

Para a flautista, um entrave para a evolução dos músicos e da própria música, como consequência, é que as pessoas tendem a acreditar muito na ideia do dom. “Fala-se muito em ‘meu dom, o meu talento’, mas só isso não basta, tem que ter muito trabalho, e o trabalho diário, porque música é artesanato. Então, você vai trabalhando e fazendo, se deixa de fazer um dia...Tem até uma piadinha: se deixa de tocar um dia, você percebe; no 2º dia, seu amigo percebe; no 3º dia, todo mundo percebe que você não está trabalhando, aí você começa a jogar contra você mesmo.”

“Então, na pesquisa, foi uma coisa muito bacana constatar esse exercício diário do Moacir, mesmo ele já sendo um compositor formado, os cadernos de anotações de estudo mostram que voltava ao início sempre, ao contraponto, à harmonia, às cadências, sequências, das mais básicas possíveis, conduções harmônicas mais simples. É como se fosse dar uma espanada em tudo, ‘o caminho ainda é esse e aqui eu posso dar uma decorada de outra forma’”, afirma a pesquisadora.

Para realizar a pesquisa, Andrea contou com o apoio do filho do artista, Moacir Santos Jr., que abriu as portas da antiga casa do pai em Pasadena, Califórnia, onde o maestro passou a residir a partir em 1967. Lá, a flautista teve a oportunidade de se deter sobre os cadernos de estudos do compositor e descobrir algumas músicas inéditas. Três delas estarão no próximo disco de seu Trio 3-63, junto com Marcos Suzano (percussão) e Paulo Braga (piano).

Moacir Santos saiu do Brasil levando “no matulão” a autoria de trilhas sonoras do cinema nacional, como Ganga Zumba (de Cacá Diegues), e o lançamento de, pelo menos, uma obra-prima, o citado Coisas, lançado pela Forma em 1965 e relançado, neste ano, em vinil pela Polysom. Chegando aos EUA, alguns anos depois, foi contratado pela mítica gravadora jazzística Blue Note, pela qual realizou três discos, Maestro (1972), Saudade (1974) e Carnaval dos espíritos (1975). Depois, em 1978, através da Discovery, lançou Opus 3, nº1.

Para Andrea, da época desses lançamentos para cá, muita coisa mudou na recepção ao músico de jazz nacional. “Os instrumentistas brasileiros têm muito mais alcance do que na década de 1970. Quem tinha alcance nos EUA é quem definia alguma estratégia para si próprio, como o Sérgio Mendes, que já foi para lá bem definido, já preparou todo o terreno dele para estourar com aquela linha, com o sexteto dele. O Tom Jobim estourou nos EUA, mas aquilo foi planejado, né? O João Gilberto... A história conta. O concerto da bossa nova não foi só um show, foi uma jogada comercial já pronta para lançar o gênero musical como um produto internacional da indústria e virou exatamente o que é.”

A propósito, o estouro da bossa nova tem parte de seu mérito em Moacir, que foi professor de músicos como Baden Powell, Roberto Menescal, Nara Leão, Carlos Lyra e Sergio Mendes. A lista de seus alunos é imensa, e inclui renomados instrumentistas do país, como Airto Moreira, Wilson das Neves, Paulo Moura, João Donato, Dori Caymmi e Raphael Rabello. Essa é apenas uma amostra do quanto a música brasileira deve parte de sua evolução a ele. “O que difere a arte do entretenimento é a transformação. Não conheço ninguém que, depois de conhecê-lo, não passasse por uma transformação”, afirma um de seus discípulos, o saxofonista Teco Cardoso.

O “Duke Ellington brasileiro” (definição do trompetista Wynton Marsalis), que saiu jovem de Flores, voltando ao estado poucas vezes para visitar familiares e amigos, afirmava: “Aonde quer que eu vá, sempre digo: o Brasil é meu berço e Pernambuco é meu orgulho”. Por isso é compreensível a emoção dos músicos cariocas responsáveis por esse resgate da obra do maestro, Zé Nogueira, Mário Adnet e Andrea Ernest Dias, quando pisaram no palco do Santa Isabel, nos dias 2 e 3 de agosto, com a presença de Moacir Santos Jr. na plateia. Eles sabiam que, com a ausência do próprio Moacir, falecido em 2006, aos 80 anos, estavam cumprindo uma missão histórica: promover o encontro da música do Ouro Negro com a sua terra. 

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente.

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