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Liêdo Maranhão: Safadeza e galhofa como matérias-primas

Ao dedicar-se à anotação de falas de poetas populares, ambulantes e prostitutas, ele colheu acervo imponderável da oralidade

TEXTO Adriana Dória Matos

01 de Julho de 2013

No quintal de sua casa, Liêdo construiu espaço para manter seu acervo, composto, sobretudo, de peças gráficas

No quintal de sua casa, Liêdo construiu espaço para manter seu acervo, composto, sobretudo, de peças gráficas

Foto Breno Laprovitera

"Mas doutor, eu nem lhe conto: Eu cheguei em casa e a mulher estava lendo o livro do senhor. Eu fiz cara feia e disse: ‘Madalena, vem cá!’ Eu pensei que ela ia largar o livro. Ela veio com o dedo dentro da página que estava lendo. Aí eu disse: ‘Cuidado com o livro, que esse hôme é um grande espírita’. Ela disse: ‘Espírita, isso é um cabra safado!’. Depois ela disse: ‘Guarde bem-guardado, por causa dos meninos’. Ela estava com o dedo mesmo naquelas carteirinhas (Identidades de Sacanagem). Eu tenho uma bolsa 007 que eu guardo meus documentos e disse a mulher: ‘Pronto, aqui só quem mexe sou eu.”

Esse foi o depoimento de leitor dado por Baiano, auxiliar do sebista Brandão, a Liêdo Maranhão, com relação ao seu O povo, o sexo e a miséria, ou o homem é sacana (1980), publicado no livro A fala do povão: o Recife cagado-e-cuspido (2011). Mas bem que Baiano poderia estar se referindo a Conselhos, comidas e remédios para levantar as forças do homem (1982) ou Rolando papo de sexo: memórias de um sacanólogo (2005), também títulos na linha picante, pornográfica, que lhe é cara.


Cordelistas, adestradores de animais, prostitutas e “professores” estão entre os tipos entrevistados por Liêdo. Foto: Reprodução/Acervo pessoal Liêdo Maranhão

Não que Liêdo só escreva sobre sexo. Mas a sacanagem, de uma forma geral, interessa deveras a esse homem que agora beira os 90 anos (nasceu em 1925) e que tem se dedicado – de maneira assídua, aplicada – à cultura popular, desde os anos 1960.

Aqui, permita-se um comentário externo aos interesses imediatos deste texto. Quando usamos os termos “cultura popular”, “metodologia” e “pesquisador”, eles remetem a pretensões e práticas que desvirtuam completamente a aproximação que Liêdo Maranhão estabeleceu com seus temas. Porque o que este dentista produziu não foi uma “pesquisa” a que se dedicou para obter esse ou aquele título, uma bolsa de estudos, mérito. Nada disso. Ele ficou ali, enfronhado no meio do povo, porque quis, porque era o que o apaixonava. E vamos dizer que ele escolheu determinados lugares – todos no Centro do Recife ou ao redor de locais onde ele atendeu como dentista, na periferia – porque era ali o seu território, não vinha de “prospecção”. A gente pergunta como ele conciliava o tempo, como fazia para trabalhar e “vadiar”, e ele responde que “se deixou ficar”. Então, que fique claro: Liêdo não se leva tão a sério, e é com essa leveza que devemos observar os seus “trabalhos”, pouco rigorosos, altamente espontâneos.

O depoimento de Maria Doida, prostituta que atendia nas imediações do Mercado de São José, faz jus aos interesses de Liêdo Maranhão. Como ele lhe dedicasse muita atenção, Maria Doida observou: “Eu gosto do senhor porque o senhor só gosta de rapariga, gente baixa e cabra safado”. Parece que a gente está vendo: Liêdo conta isso, solta uma gargalhada sapeca e comenta: “Não é uma beleza?”. Alguém disse sobre ele que iria ser longevo, porque vivia divertidamente. Verdade.


Foto: Reprodução/Acervo pessoal Liêdo Maranhão

Atualmente, Liêdo Maranhão não sai a campo. O Recife onde ele bateu perna e se deixou ficar, deslocando-se de ônibus (“para não se individualizar”, ele diz), mudou bastante e se mostra hostil para um senhor tão empático. O ponto de parada dele era o Mercado de São José e seu entorno, o tempo era o fim dos anos 1960, toda a década de 1970 e começo dos 1980. Ali, naquelas imediações, misturava-se uma pândega de vendedores ambulantes que juntava gente. Uma sociedade mais ingênua e gentil? Não devemos ser traídos pela nostalgia, mas certamente ali se encenavam negócios que foram enxotados para bem longe, ou para o nunca mais. Os livros de Liêdo Maranhão nos permitem o contato com esse outro tempo.

A maioria dessas obras saiu em baixa tiragem e logo se esgotou. Assim foi com os 13 títulos que o dentista antropólogo colocou na praça, entre eles, Classificação popular da literatura de cordel (seu primeiro lançamento, de 1976), Que só (1993) e Marketing dos camelôs de remédio ou o mundo da camelotagem (2004), editados agora em volume único pela Cepe Editora. Os títulos resumem aquilo que está nos seus diários de campo (seriam 31): anotações de tudo que ouviu e presenciou.

Classificação popular da literatura de cordel traz um importante diferencial em relação a estudos nessa área, ao organizar os folhetos e romances a partir das categorias criadas pelos próprios cordelistas e distribuidores, e não pela crítica literária. Naqueles anos 1970, era um trabalho pioneiro, porque ainda se estudava pouco a literatura popular. Liêdo realizou essa compilação pelo contato com cordelistas que atuavam no Recife e nas feiras e mercados das capitais nordestinas, para onde viajou com esse intuito durante três anos. Que só é um título enigmático. Antes de lê-lo, pensamos tratar-se de um arroubo poético. Que nada. Trata-se de uma coletânea de ditados populares: “Bom que só bênção de mãe”, “Enfeitado que só cruz de estrada”, “Ligeiro que só gozo de padre”, “Contente que só pinto na merda”. E por aí vai.


Foto: Reprodução/Acervo pessoal Liêdo Maranhão

Marketing dos camelôs de remédio ou o mundo da camelotagem é aquele que podemos dizer o mais denso e curioso título do volume. Liêdo fez amizade com os ambulantes que atuavam no entorno do mercado e “decorou” o que eles diziam, de tanto escutar. De outros, tomava notas diretas. De modo que, ao ler os depoimentos, o leitor perceberá a reincidência de alguns personagens, a camaradagem, a concorrência e mesmo a hostilidade entre eles.

Livros anteriores já haviam tocado no tema: Marketing dos camelôs do Recife, 1996, que reúne pregões; e O mercado, sua praça e a cultura popular do Nordeste: homenagem ao centenário do Mercado de São José 1875-1975, editado em 1977, pela prefeitura do Recife, este, um volume fundamental, composto também por fotografias feitas pelo autor, que merecia uma boa reedição.

Mas o que distingue o Marketing dos camelôs é a densidade. São, na maioria, depoimentos longos e muito peculiares, que documentam não apenas o universo retratado no que diz respeito aos produtos e discursos usados para vendê-los, mas às mentalidades, às relações sociais tensas sob um amontoado de narrativas engraçadas. Na planura dos discursos, os tipos documentados expõem um país diferente deste de quatro décadas depois. Ao mesmo tempo, com hábitos arraigados, como o disfarce e a burla, o improviso e a violência sublimada. Embora não tenha tido ambições literárias, Liêdo Maranhão também realiza neste livro um excelente trabalho de cronista, trazendo para o texto histórias saborosas do cotidiano das ruas.

E para encerrar, voltando à sacanagem: neste quesito, Liêdo tem um projeto muito sedutor. Aqui não se comentou o aspecto colecionista de sua persona. Além de um colecionador de relatos, ele foi também atraído por uma infinidade de objetos e peças gráficas. Estes compõem o seu acervo, agora intitulado Memorial da Cultura Popular e mantido em sua casa. Dentre essas peças, há uma coleção de fotografias de bordéis do Recife que adquiriu na Praça do Sebo. Junto com as imagens, Liêdo, o sacanólogo, tem anotados depoimentos de vários frequentadores e de prostitutas. O título é O porto e a zona do Recife, open city dos marines e já tem estrutura montada. Isso bem-editado, hein? Não dá um livro incrível? Deixa qualquer “tom de cinza” no chulé. 

ADRIANA DÓRIA MATOS, editora-chefe da revista Continente.

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