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A boca de Deus

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Julho de 2013

Imagem Karina Freitas

Qual é o papel da arte literária na conformação da narrativa bíblica? Um papel crucial, garante o professor de literatura hebraica e comparada da Universidade da Califórnia em Berkeley, Robert Alter (A arte da narrativa bíblica, Companhia das Letras, 2007). Um papel finamente modulado a cada momento, quase sempre determinante na escolha exata de palavras e detalhes, no ritmo da narração, nos pequenos movimentos dos diálogos e em toda uma teia de relações que se ramificam pelo texto.

Alter propõe a leitura da Bíblia como um livro de narrativas de forte poder estético e imaginativo – obra de vários autores escrita em tempos diferentes –, sem reduzi-la a um amontoado de textos da tradição oral, compilados ao longo da história do povo hebreu. Segundo ele, a poesia, o uso exato dos verbos, as dramatizações e os diálogos precisos resultam claramente não de um mecanismo automático de intercalação de materiais tradicionais, mas da cuidadosa combinação de fontes à mão de um escritor brilhante.

Ao se conceder a um poeta ou escritor a autoria de cada um dos livros da Bíblia hebraica, mesmo reconhecendo-se as inúmeras alterações sofridas ao longo dos anos, surge a questão sobre o papel de Deus nessa empresa. Em todas as ortodoxias judaico-cristãs, acreditou-se num livro de inspiração divina, ou até mesmo soprado do alto e impresso a fogo como as tábuas dos mandamentos. Fazendo-se a leitura da Bíblia pelo caminho da arte narrativa, poetas e escritores adquirem status de videntes e profetas, um papel que quase sempre lhes foi atribuído ao longo da história.

Segundo Alter, o laconismo hermético da narrativa bíblica é uma expressão profunda de arte e não de primitivismo. Seriam as profecias sobre a queda de Israel, o advento do Messias e o cativeiro da Babilônia especulações de poetas? O dom artístico se confundiria com o dom divinatório? Esses homens que se autodenominavam “a boca de Deus” fizeram profecias obscuras e cheias de mistérios, expostas através de símbolos audazes e alta poesia, que resultaram na mais potente e magnífica arte.

Talvez o sofrimento e as humilhações tenham moldado poetas videntes como Isaías, Ezequiel, Daniel e Jeremias. Guardiões da palavra, eles interpretavam os castigos infligidos ao povo hebreu como consequência do pecado por terem se afastado de Deus e de suas leis. O exílio, a guerra, a ruína e as lembranças de um passado glorioso são o tema dos seus cantos, quase sempre lamentações e exortações.

“Entretanto, esse povo foi despojado e saqueado;/ todos eles estão presos em cavernas,/ estão retidos em calabouços./ Foram submetidos ao saque, e não há quem os liberte;/ foram levados como despojo,/ e não há quem reclame a sua devolução” (Isaías, 42-22).

“Como o vento do Oriente eu os dispersarei/ diante do inimigo./ Eu lhes mostrarei as costas e não a face,/ no dia de sua ruína” (Jeremias, 18-17).

ANUNCIAR O FUTURO
A tragédia Medeia, escrita por Sêneca, o Filósofo, baseada na peça homônima de Eurípides, contém a famosa profecia sobre o descobrimento das Américas, nos versos 374 e seguintes: “Daqui a alguns séculos, chegará um momento em que o oceano abrirá as barreiras do mundo: abrir-se-á uma terra imensa, Tétis descobrirá um novo mundo e Tule não será mais o mais longínquo ponto da terra”.

Fora do contexto das escrituras sagradas, o poeta filósofo intui, ilumina-se e faz uso de seus dons premonitórios. Sêneca viveu de 4 a.C. a 65 d.C., seus versos poderiam ter impressionado Cristóvão Colombo, impulsionando-o para as navegações e descobertas. Com certeza, reverberou no cubano Alejo Carpentier, que escreveu A harpa e a sombra, romance sobre o descobridor da América em que se inverte a relação entre arte literária e história. Carpentier abandona a função meramente profética e assume o demiurgo, sua escrita romanesca invade a linguagem documental, contaminando-a. Transforma discurso em romance e a história reescreve a história.

Aos poetas coube ler os sinais dos tempos e anunciar o futuro, mesmo que esse futuro se revelasse um equívoco ou catástrofe. O filósofo e poeta Waldo Emerson, com sua Teoria do destino manifesto, planta a semente de uma poética norte-americana, que Walt Whitman irá propalar como um profeta visionário, nacionalista e democrata, antevendo a expansão do grande império: os americanos de todas as nações em qualquer era sobre a terra, provavelmente, têm a natureza poética mais completa. Os Estados Unidos são essencialmente o maior de todos os poemas. De agora em diante, na história da terra, os maiores e mais agitados poemas vão parecer domesticados e bem-comportados diante da sua grandeza e agitação ainda maiores... Enfim, aqui não só uma nação, mas uma nação proliferativa de nações.

Mesmo que se recuse um sentido profético à obra de Franz Kafka, a incomunicabilidade e o absurdo burocrático parecem o palpite de tempos futuros ruins, que se prolongarão eternamente, pairando sobre sociedades que aboliram o sagrado, nas quais o homem se encontra sozinho: “Era tarde da noite quando K chegou. A aldeia jazia na neve profunda. Da encosta não se via nada, névoa e escuridão a cercavam, nem mesmo o clarão mais fraco indicava o grande castelo. K permaneceu longo tempo sobre a ponte de madeira que levava da estrada à aldeia e ergueu o olhar para o aparente vazio”.

A mensagem não terá de ser necessariamente hermética. Pode adquirir o tom de ficção científica como Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, ou 1984, de George Orwell, ou Crônicas marcianas, de Ray Bradbury, ou ainda a estranhíssima antevisão do Armageddon, relatada no romance Um cântico para Leibowitz, por Walter M. Miller. Existiram profetas maiores e menores, segundo a tradição hebraica. Ainda proliferam bons e maus profetas nos tempos de hoje. É preciso estar atento ao que eles falam e escrevem. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, médico e escritor.

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