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“A gente é irmão na vida, na luta”

Xico Sá e Cláudio Assis, amigos na vida pessoal, realizam primeiro projeto juntos, que é transpor 'Big jato', livro mais recente de Xico, para a linguagem de cinema, com filmagens ainda em 2013

TEXTO Luciana Veras

01 de Junho de 2013

Xico Sá e Cláudio Assis

Xico Sá e Cláudio Assis

Foto Aline Arruda/Divulgação

Cláudio de Assis Ferreira e Francisco Reginaldo de Sá Menezes se conhecem desde que estavam “na casa dos 20 anos”. Hoje, embora lancem mão da pirraça para não revelar datas de nascença, sabe-se que habitam a moradia dos 50. O primeiro, mais velho e nascido em Caruaru, fez 53 em dezembro último, enquanto o segundo, nascido no Crato (CE), completa 51 no próximo outubro.

Ou seja, o cineasta Cláudio Assis e o jornalista, cronista e escritor Xico Sá convivem há mais tempo do que estiveram distantes. “Quando Xico era ladrão de uns livros na Livro 7”, entrega a porção cinematográfica da dupla. Xico revida: “A primeira entrevista que ele deu como diretor foi para mim, quando eu era repórter d’O Rei da Notícia”, diz, referindo-se ao periódico independente que circulou no Recife nos anos 1980.

Eles são uma tradução contemporânea dos vínculos forjados por elos sanguíneos ou palavras de honra nos sertões. São amigos, cúmplices de farras e tempestades criativas, compadres – Xico é padrinho de Francisco, filho caçula de Cláudio – e, agora, parceiros na empreitada de verter para imagens as memórias fictícias, afetivas e levemente autobiográficas de Big jato, mais recente publicação assinada pelo escriba cearense.

No livro, o personagem principal é um garoto que por anos acompanha seu pai, fã dos Beatles e amante da cachaça, descrito sucinta e carinhosamente como “o velho”, na boleia do caminhão que desentope fossas e limpa privadas no sertão do Cariri. Big jato, pois, é o nome da carroceria, da empresa, da rotina e da vida do protagonista. A narrativa explora a relação dele com o ofício paterno, com o irmão gêmeo do pai – um boa-vida sem nenhuma aptidão laboral, a mãe e a penca de irmãos e esmiúça seus diálogos com habitantes de um município escondido nos confins de um Brasil que se reinventava na década de 1970, entre jogos de Copa do Mundo, governos militares e mudança de costumes. Assim, o protagonista transita da infância até a adolescência, sempre ao lado do “velho” na mitigação dos odores e desconfortos causados por toneladas de fezes alheias.

“Escreva o que estou dizendo: é a primeira adaptação de uma obra literária a ser filmada como um longa-metragem em Pernambuco”, profetiza Cláudio Assis, não sem razão. Pioneiro, portanto, desde a gênese, Big jato encontra-se em fase de pré-produção: foi aprovado no edital do audiovisual do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura), em 2012, no valor de R$ 450 mil, na rubrica de produção. Também recebeu o aval e uma verba de R$ 1,2 milhão do concurso de baixo orçamento do Ministério da Cultura, porém, como resultado, encontra-se sub judice, “esse é um dinheiro com que a gente não pode contar”, diz o diretor.

Juntos, Cláudio e Xico já trocaram ideias sobre o roteiro, urdido e lapidado por Ana Carolina Francisco, assistente de Hilton Lacerda, roteirista de Amarelo manga (2001), Baixio das bestas (2006) e Febre do rato (2011), sentaram inúmeras vezes com a equipe da Perdidas Ilusões – produtora de Cláudio e Camila Valença – e viajaram em busca de locações, desbravando estradas em um road movie preparatório.

Em entrevista para a Continente, concedida em uma ensolarada tarde de segunda-feira, no 11º andar de um edifício na Avenida Dantas Barreto, centro nevrálgico do Recife, os dois discorreram sobre distinções e aproximações entre o Big jato que a Companhia das Letras publicou e o Big jato que a Perdidas Ilusões e a REC Produtores Associados filmarão em 2013, processos artísticos sem fronteiras ou complexos de autoria e também sobre o “casamento” firmado quando perambulavam pela faixa etária dos “vinte e poucos” e estavam a descobrir que “viver é fugir do claro para o escuro e do escuro para o claro”, como diz o menino do romance.

CONTINENTE Antes mesmo de tornar-se filme, Big jato já o levou a todos os cantos do Brasil, não é mesmo?
XICO SÁ Andei mais do que o menino do caminhão, em tudo que é buraco deste Brasil. Para completar, fui até Manaus, num evento da Livraria da Vila, para um lançamento em pleno Rio Negro. O livro saiu com 5 mil exemplares na primeira edição, mas essa já está nos estertores. Em muitos lugares, não tem mais. Então, acho que vem uma segunda levada no começo de junho e a tendência é que se repita a mesma história, sair com novos 5 mil exemplares. A novidade é que vai ser adaptado também para o teatro, por um grupo do Rio de Janeiro.

CONTINENTE Como surgiu a ideia de adaptá-lo para o cinema?
XICO SÁ Um livro tem 300 filmes. Big jato foi muito influenciado pelas conversas que eu tinha com Cláudio e com Hilton (Lacerda). Já tinha escrito boa parte do livro, mas ficava protelando, não queria entregar. Na verdade, só entreguei quando me botaram a faca no pescoço. E Cláudio já conversava comigo sobre alguns personagens, mas sobre a safadeza deles, claro! Na verdade, vejo que o livro estava fadado a virar um filme e o filme, por tudo que a gente conversou, já influenciou o livro. Esse processo de sentar e conversar sobre o que estava escrevendo facilitou a organização do enredo. Eu contava como é que estava, Cláudio e Hilton perguntavam e sugeriam… Foi fundamental para o final do livro, pois eu estava inseguro em relação ao personagem.


Foto: Aline Arruda/Divulgação

CLÁUDIO ASSIS
Ele tem vários livros que dão filme. Mas chegou um momento em que disse: “Tá na hora da gente fazer algo junto”. “Junto” que eu digo desse jeito, uma parceria mesmo, porque ele sempre esteve próximo dos meus filmes. Aparece batendo punheta em Baixio das bestas, fez o argumento de Febre do rato comigo e Hilton e ajudou a pensar todo o universo do filme, até porque nós dois conhecíamos o Zizo original, o poeta marginal que vivia pela Livro 7 e que era comedor de velhas. E parceria você faz com quem está ali, do seu lado, com quem está junto de você. Não chama um inimigo.

CONTINENTE E essa amizade de vocês, como aconteceu?
CLÁUDIO ASSIS Conheço Xico desde que ele era ladrão da Livro 7, nós dois na casa dos 20 anos. Eu fazia Economia, na Federal (UFPE), queria fazer Ciência Política para compreender as questões sociais, e criei vários cineclubes, em que as organizações de esquerda gostavam de filmar os caras dentro do movimento. A gente se conhecia e andava junto pela Rua Sete de Setembro, nos bares, na universidade.

XICO SÁ A primeira entrevista que ele deu como diretor foi para mim, quando eu era repórter d’O Rei da Notícia. E viramos amigos, estávamos sempre lado a lado. Quando ele começou a fazer cinema, eu já era doido para ser escritor, mas estava consumido pelo trabalho nas redações. Passei um tempo infeliz na minha vida.

CONTINENTE Mas por que Big jato?
CLÁUDIO ASSIS Porque o livro fala de onde as pessoas são iguais, que não é na morte, porque, se você tem grana, adia sua morte. Todo mundo é igual na merda. Todo mundo caga. Mas o ser humano é o único que esconde suas fezes.

 XICO SÁ Essa é uma metáfora que está presente nas histórias e é sugerida o tempo inteiro no livro. Na boleia do caminhão, o menino pergunta para seu pai: “Papai, e os Beatles também fazem? O papa também?”. Ele vai aprendendo, de uma forma ingênua, jogando com o cotidiano deles, que é o de sair limpando as fossas do Sertão. É uma fábula sobre a igualdade.

CONTINENTE O livro é rico na descrição dos detalhes. Cada capítulo, mesmo com narradores diferentes, ora o menino, ora o tio que não gosta de trabalhar e termina preso, passa a sensação de uma história que pode ser narrada por imagens. É quase como se já fosse um storyboard.
CLÁUDIO ASSIS Odeio storyboard! Acho aquilo uma burrice, uma estupidez. Vou ao contrário do storyboard. Porque, como é que eu posso desenhar ali uma cena toda antes mesmo de ir para o set filmar? Se eu soubesse, não estava fazendo. Não preciso endoidar o cabeção. Se eu fizer um filme igual ao livro, então não fiz nada. Se não ousar, não vai sair nada. A certeza é uma merda. E só existe filme pronto na projeção. Até na mixagem você o muda.

XICO SÁ Vou ficar feliz, quanto mais livre for a adaptação. Quando você lê um livro, fica imaginando mil maneiras de retratar uma cena, uma determinada passagem. Para mim, vou ficar satisfeito, se o filme for inteiramente maluco, a partir do livro. Meu gozo, a partir de agora, vai ser acompanhar o tipo de loucura que viverão os personagens, como o filme vai lidar com eles. Quanto mais diferente for, vou me sentir um melhor autor.


Foto: Aline Arruda/Divulgação

CONTINENTE Você tem participado do processo de escritura do roteiro?
XICO SÁ Sim, a gente vem conversando. A roteirista é Ana Carolina Francisco, uma menina muito bacana, assistente de Hilton. Ela já fez duas versões, sempre discutindo, sempre partindo de uma provocação em cima da obra. E Hilton, na verdade, conhece a história antes de sair o livro, sabe das acochambrações dos personagens.

CONTINENTE Então Xico vai ser uma pessoa presente em todas as etapas, no set, inclusive?
CLÁUDIO ASSIS Lógico. Vai ter o dedo dele, todos os dedos dele no filme.

XICO SÁ O que ele mais pede é pitaco…

CLÁUDIO ASSIS Me sinto à vontade para fazer um universo paralelo, completamente diferente. Nada a favor do livro, e olhe que é o livro mais cinematográfico dele, com diálogos pra cacete. Mas não tenho a menor solenidade com a obra. A história que estamos fazendo é o filme.

XICO SÁ Não tem nada intocado. Engraçado é que recebi várias propostas para adaptar livros meus antes, o cara chegava, conversava comigo, dizia que queria comprar os direitos, mas não andava. Eu não queria. E percebo que cada vez mais as pessoas saem comprando os direitos dos livros antes mesmo de saber se vão querer adaptar, só para garantir, só para castrar a liberdade, num processo bem mesquinho. Mas com Big jato é bem diferente. Aceitei o desafio porque sei que Claudão não vai ter pudor com o livro, não vai ter zelo excessivo. Vai com liberdade total. É outra história.

CONTINENTE Cláudio, se alguém observar os créditos dos seus filmes, verá que vários nomes se repetem. Quem vai trabalhar com você agora?
CLÁUDIO ASSIS Quem puder, quem quiser, todos que trabalharam antes, a mesma equipe. Só não vai ter Jones Melo porque ele morreu. Mas as pessoas que permeiam o universo de Cláudio Assis vão poder se juntar. Para os personagens, são os nomes de Matheus Nachtergaele, Irandhir Santos, Júlio Andrade, Juliano Cazarré, Dira Paes, Leona Cavalli, Kika Araújo… Na fotografia, Walter Carvalho, Lula Carvalho, Mauro Pinheiro Jr., Beto Martins. Vamos filmar no Vale do Catimbau, no sertão do Cariri e no Recife. E agora, no segundo semestre, isso é importante, vamos fazer um teste para escolher quem vai representar Francisco, o menino.


Foto: Aline Arruda/Divulgação

CONTINENTE Tem alguma passagem do livro que lhe atiça mais a curiosidade para ver o resultado no cinema?
XICO SÁ Sim, sim, tem uma passagem que, para mim, melhor expressa esse universo todo de Big jato. Sempre me perguntam se é um livro autobiográfico e tal, e eu respondo que a parte da família do menino é totalmente mentirosa, fictícia, tem coisas da minha infância, mas tudo reescrito com o verniz da ficção. Agora, a parte mais alterada e abilolada do livro é a mais fiel. É absolutamente verdadeira. Porque ali, naquele sertão, tinha todo tipo de doido, todo tipo de maluquice. Tinha gente como o príncipe Ribamar da Beira-Fresca, que queria porque queria comer a Princesa Isabel. E ele sabia fazer um telhado sem bater um único prego, só encaixando as ripas e os caibros. Tem uma cena em que ele conversa com o menino em cima de uma casa, falando sobre mulheres e a vida, enquanto faz essa ciência de encaixar pedaços de madeira e pondo as telhas em cima. Essa, eu acho que vai ser bem interessante de se ver.

CONTINENTE Para vocês, o que torna Big jato tão interessante, a ponto de ser um livro que vai virar um filme?
CLÁUDIO ASSIS O livro fala da vida, do que todo mundo quer saber: de onde veio aquele menino? De onde nós viemos, de onde vêm as pessoas que hoje estão nas cidades? Quem somos nós? Temos uma responsabilidade política de mostrar isso.

CONTINENTE Os dois, por coincidência, são do interior. Como eram suas famílias?
CLÁUDIO ASSIS Meu pai era diretor de uma usina de asfalto, minha mãe era professora primária.

XICO SÁ Meus pais eram pequenos agricultores, tinham uma roça, plantavam. Depois, tiveram um comércio. Nossas origens se parecem, somos os dois do interior. O livro evoca um contexto que tem a ver com a migração em massa para as grandes cidades, que, aos poucos, vão ficando inchadas com essas pessoas que vêm do interior, saindo de suas pequenas cidades para tentar a sorte no Recife, como o menino.

CONTINENTE É como vocês dois.
XICO SÁ Pois é, como nós dois, que nos conhecemos no Recife e hoje estamos aí, juntos, já vivemos tanta coisa. Agora, vamos fazer um filme. Posso até dizer que é um casamento.

CLÁUDIO ASSIS A gente é irmão na vida, na luta.

XICO SÁ Irmãos com liberdade afetiva. O que eu quero é que as pessoas vejam o filme e não saibam diferenciar onde está aquela passagem que eu escrevi do que foi inventando por Cláudio. Porque, é como eu disse, o próprio livro foi influenciado pelo filme que ainda nem existia. Eu chegava nos cantos, encontrava as pessoas nas mesas dos bares e contava a história desse livro que estava escrevendo, a maioria dizia: “Isso é a cara dos filmes de Cláudio Assis”. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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