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Conlangs: Realidades utópicas

Por diversão, para se comunicar secretamente ou em busca de uma comunicação perfeita, profissionais e amadores impulsionam a criação de línguas artificiais

TEXTO Yellow

01 de Junho de 2013

Foram necessários quatro anos para criar as regras gramaticais da língua dos dothraki, em 'Game of thrones'

Foram necessários quatro anos para criar as regras gramaticais da língua dos dothraki, em 'Game of thrones'

Foto Divulgação

Cada novo capítulo da série Game of thrones tem cerca de 4 milhões de espectadores, somente nos Estados Unidos, e o programa de TV é, atualmente, o mais pirateado da internet – calcula-se que cada episódio seja baixado 2 milhões de vezes. Diferentemente de cenários e peças de vestuário, que podem ser produzidas digitalmente, ou usando materiais simples, a invenção de uma língua é uma das tarefas mais difíceis, na criação de um mundo artificial. Ao assistir à série em casa, ninguém nota que espadas são feitas de plástico. Por outro lado, se alguém tentar aprender a língua dos dothraki, perceberá inconsistências gramaticais ou lexicais que venham a surgir.

Linguistas têm criado línguas artificiais desde, pelo menos, o século 12. Por diversão, para comunicar-se secretamente, ou em busca de uma língua perfeita, sanada das imperfeições das naturais. Conlangs (constructed languages) têm crescido em popularidade recentemente, graças a filmes e séries de TV, como Avatar (cujos personagens falam em na’vi), O senhor dos anéis e Game of thrones. Existem, hoje, conlangers profissionais, dedicados a inventar línguas para uso em obras de ficção, mas ainda há os amadores, que são motivados ora pelo desafio intelectual ora por idealismo.

A mais conhecida das conlangs feitas para a ficção é a klingon, da série Jornada nas estrelas. Hoje, ela é amplamente estudada, e é quase tão conhecida quanto o esperanto. Sites populares, como a Wikipedia e o TED, têm versões em klingon. Várias pessoas são capazes de conversar usando-a, e pelo menos duas montagens teatrais (um auto de Natal, de 2009, e uma ópera, ‘u’, de 2010) são inteiramente faladas nela. Existem publicações em klingon de clássicos como A epopeia de Gilgamesh, Hamlet, Muito barulho por nada, e o Tao te ching. Ela conta ainda, desde 1992, com um Instituto de Língua Klingon, localizado na cidade de Flourtown, Pensilvânia.

Um detalhe que não costuma ocorrer aos fluentes em klingon é que, assim como outros elementos que são criados para obras ficcionais, a propriedade intelectual dela pertence à Paramount Pictures/CBS Studios. Dicionários e outras obras canônicas de línguas artificiais estão sujeitas ao direito autoral. Criar, portanto, uma cultura sustentada numa das que pertencem a uma empresa parece o exemplo perfeito de um cabluite, expressão que acabo de inventar na língua que denominarei yellowês, e que quer dizer “fazer reforma em casa alugada”.


Em Avatar, alguns dos personagens se comunicam através de uma língua chamada na’vi. Foto: Divulgação

FANTASIAS
O autor J. R. R. Tolkien, professor de Filologia em Oxford e criador da série de livros Senhor dos anéis, teve como principal motivação para escrever as milhares de páginas da saga a criação de um mundo onde pudessem ser usadas as línguas que criou. São 15 delas e dialetos para elfos de diferentes eras, três para homens, e outras para anões, ents, orcs, e mais um punhado, usado para conjurar magia.

As línguas de Tolkien são elementos importantes da narrativa. Em determinado momento, no tenso encontro entre elfos e anões, antes da formação da Irmandade do Anel, um anão ofende terrivelmente um elfo, ao referir-se a ele através de um pronome vulgar, já que a língua dos anões desconhece os pronomes de tratamento necessários aos nobres elfos.

Em uma correspondência de 1956, Tolkien escreveu que línguas construídas como “Volapük, esperanto, ido, novial (...) estão mortas, bem mais mortas que línguas antigas que não são mais usadas, porque seus autores nunca inventaram lendas em esperanto”.

David Peterson, presidente da Sociedade de Criação de Línguas (conlang.org) e mestre em Linguística pela UC San Diego, é um dos conlangers que trabalham desenvolvendo, sob encomenda, línguas artificiais para obras ficcionais. Para a série de TV Game of thrones, ele criou algumas destinadas aos povos que habitam os Sete Reinos da série de livros As crônicas de gelo e fogo. A dos dothraki, um povo nômade e adorador de cavalos, levou quatro anos de desenvolvimento das regras gramaticais e feitura de um dicionário de cerca de 3.400 palavras.

Para inventar uma nova língua, pode-se tomar um dicionário, digamos de português, e inventar palavras para substituir cada um dos verbetes. Porém, ao fazer isso, estaríamos apenas criando uma versão piorada do português, pois ela ainda iria conter muito da original – sua gramática, suposições que cada palavra carrega.


Autor da saga Senhor dos anéis teve como motivação para escrevê-la a criação de um mundo em que se falassem línguas criadas por ele. Foto: Divulgação

A criação de uma palavra como “livro”, por exemplo, parece ser uma tarefa simples, mas traz para o idioma uma série de suposições acerca da cultura de seus falantes. Entende-se que a sociedade tem uma forma escrita para a fala que tem algo a registrar, como história ou literatura, que dão valor ao letramento, que a noção de letramento existe, que inventaram algum tipo de impressão, ou ao menos de papel, de tinta, de canetas. Um mundo de suposições em uma só palavra. A comunicação é um turbilhão. Assim como, sobre toda a superfície terrestre, existe água, todos os povos falam, mesmo que nem todos escrevam. Mas, como a água do Nilo é completamente diferente da água da Praia de Boa Viagem, as línguas diferem umas das outras. As naturais surgem, normalmente, a partir de modificações feitas em outras línguas. O mesmo latim que originou o português é a base para o francês, e ambas diferem do ponto da inteligibilidade.

Como o principal propósito das línguas é construir representações da realidade, é natural que as mesmas sofram modificações constantes no decorrer do tempo, adequando-se a novas formas de interação social, e fazendo com que as gramáticas estejam sempre desatualizadas na documentação de seu funcionamento. Os solecismos são a força criadora das línguas naturais. Sem os solavancos que fazem com que “acalguete” transforme-se em “cabueteiro”, as palavras estariam fadadas à estagnação. Grande parte do processo de tornar as conlangs mais verossímeis consiste em tentar imitar os equívocos e idiossincrasias que surgem nas línguas naturais.

Para Peterson, um bom conlanger precisa ter a combinação de uma mente muito técnica, que seja boa em resolver quebra-cabeças ou códigos, e uma vocação literária, que leia muito e adore histórias.

Para o desenvolvimento da dothraki, Peterson tentou imaginar como as pessoas falavam um milênio antes. Criando uma protolinguagem, ele pôde simular um processo orgânico de modificação da língua, mudando aos poucos a fonética, a gramática e a semântica, até chegar à usada em Game of thrones. Isso exige grande competência criativa, capaz de imaginar o passado em um mundo ficcional que, na verdade, pertence à imaginação de outra pessoa, no caso, George R. R. Martin, autor da série de livros que deu origem ao programa de TV.


Antes de criar a língua dos dothraki, David Peterson conversou com o autor para saber as origens imaginárias desse povo. Foto: Divulgação

Alguns aspectos da história do povo dothraki estão à disposição de Peterson. Ele sabe, por exemplo, que Martin baseou os dothraki, principalmente, nos mongóis da era da Rota da Seda, e adicionou algumas características de povos indígenas norte-americanos. Então, ele usou a língua mongol como base para sua criação. Ao descobrir que os mongóis tinham duas palavras diferentes para designar fezes animais, uma para as úmidas e outra para as secas (que eram usadas durante o inverno como combustível), ele incluiu essa distinção na língua dothraki.

FALANTES
As línguas nada são sem seus falantes. Inicialmente, Peterson não tinha interesse em construir culturas, mas percebeu que, se não há uma ideia clara de quem são os usuários de uma língua, esta automaticamente carregará consigo os pressupostos culturais do conlanger.

Onde não existe contexto, um conlanger deve criá-lo, como no caso do termo, em dothraki, que designa “sonhar.” Peterson queria capturar a essência do sonho, que para ele significava sentir enquanto se dorme, que não existe outra vida ou mundo. Peterson começou com a palavra para madeira, e mudou-a para sua forma adjetivada, emadeirado, ou ido. Uma vez que em dothraki “madeira” é usado para descrever espadas falsas, “emadeirado” tornou-se sinônimo de “falso”. Um sonho, então, torna-se uma vida de madeira, uma vida falsa, ou thirat atthiraride, literalmente “vivenciar uma vida de madeira”.

Por que se dar a todo esse trabalho, ao invés de simplesmente ligar para George R.R. Martin e perguntar? De acordo com Peterson, Martin se contenta com a existência da língua, mas não tem interesse em desenvolvê-la. De fato, é Martin quem liga eventualmente para Peterson, pedindo uma tradução, que é alegremente fornecida.

Peterson mantém um blog (dothraki.com) em que discute o desenvolvimento da língua dothraki e outras, usadas em Game of thrones. Ele também discute o emprego de sua criação no dia seguinte à exibição de cada episódio, e comenta a trama, como milhões de fãs ao redor do mundo.


As línguas que J. R. R. Tolkien  inventou fundamentam a narrativa de O senhor dos anéis. Foto: Reprodução

Por que existem pessoas que se dedicam a estudar, ler e se expressar em línguas artificiais? Provavelmente, porque o uso de diferentes línguas permite que a mente funcione de maneira diferente.

UTOPIA
A maioria das conlangs não é criada para fins fictícios. É natural que muitos conlangers sejam atraídos pelos desafios lógicos da criação de línguas, e este hobby é similar ao de criar palíndromos, ou o de jogar xadrez. De fato, um grande número de conlangs nasce de restrições autoimpostas, como, por exemplo solresol, uma língua criada, a partir de 1827, pelo músico francês Jean-François Sudre, que era formada apenas por sete sílabas, que podiam ser representadas sonoramente pelas sete notas da escala musical, ou, graficamente, pelas sete cores do arco-íris. Outro exemplo é kēlen, criada pela conlanger Sylvia Sotomayor, que não possui verbos. Porém, existem também motivações políticas e utópicas para a criação de novas linguagens.

Desde o século 17, filósofos como Francis Bacon, René Descartes e Gottfried Leibniz discutem como as línguas naturais enevoam o pensamento humano, e imaginam se um substituto artificial poderia capturar de maneira mais precisa a essência das coisas. Os relatos de missionários jesuítas, no século anterior, acerca do idioma chinês, ampliaram os conceitos que muitos filósofos tinham sobre a linguagem, trazendo a noção de que seus caracteres significavam conceitos, ao invés de sons, e que um mesmo ideograma poderia ter o mesmo significado para pessoas vivendo ao longo do leste asiático, apesar de soarem diferentes, dependendo da região. Seria possível construir uma língua escrita universal, que pudesse ser entendida por todos, assim como os algarismos arábicos fizeram com a matemática?

O esperanto, que foi criado na década de 1880, por L. L. Zamenhof, foi o mais bem-sucedido dentre cerca de uma centena de idiomas universais criados no século 19. Em seu ápice, existiram mais de dois milhões de falantes, que produziram uma rica literatura de mais de 15 mil livros. Mesmo hoje, quando é considerado um fracasso, estima-se que possua cerca de seis mil falantes.

Na década de 1930, os linguistas Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf desenvolveram a hipótese da relatividade linguística, de que pessoas de diferentes culturas estão sujeitas a viver e pensar em um estado mental expresso, e talvez determinado, pelas línguas que usam. Apesar de ter sido refutada a partir da década de 1940, pela corrente cognitivista, a hipótese persiste, possuindo seguidores até hoje. Seria possível construir uma língua perfeita, que eliminasse as imperfeições das naturais e transformasse seus usuários em seres superiores? 

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