A primeira manifestação cultural legítima da internet completou, em setembro de 2012, 30 anos de existência. O ano era 1982 e, em meio à troca de mensagens entre acadêmicos dos Estados Unidos, alguns dos professores gostavam de enviar piadas uns para os outros. O problema é que esses proto-emails se misturavam com as informações mais sérias dos estudos científicos. Até que, em 19 de setembro, o professor Scott Fahlman sugeriu a seguinte mudança: “Eu proponho a seguinte sequência de caracteres para marcar piadas -> :-). Na verdade, seria provavelmente mais econômico marcar o que NÃO é piada, considerando as tendências atuais. Para isso, use -> :-(”. Nascia aí o emotion. Em três décadas, a linguagem evoluiu bastante, tomando formas cada vez mais complexas e disseminando-se, inclusive, para fora da web.
Entretanto, em termos de comunicação escrita, a internet brasileira possui seu próprio fenômeno. Sabe quando você vai ler algum recado ou comentário online, e não entende nada do que está escrito ali? Coisas como comofas, fácio e jemt podem parecer erros ortográficos à primeira vista (e talvez até sejam), mas podem ser também a legítima manifestação do tiopês, cuja melhor definição foi feita pelo pessoal do site Teletube: “Uma linguagem caricatural, crítica e bem-humorada a respeito do analfabetismo funcional brasileiro, que é um dos maiores do mundo”. A regra da brincadeira não é só escrever errado deliberadamente, e, sim, da forma mais ininteligível possível. O próprio nome vem da palavra tipo, que na linguagem é escrita como tiop. Da sua origem, em 2005, até hoje, o vocabulário de tiopês só cresce, com verbetes como corrão, fikdik e reequeza.
Os vídeos Luiza no Canadá (foto) e Tapa na pantera são exemplos
famosos no Brasil. Foto: Divulgação
Como em tudo na internet, a brincadeira só aumenta por causa da criatividade dos próprios internautas. “Ninguém cria essas coisas. O autor não importa. A partir do momento em que é compartilhado por toda rede, aquilo vira uma criação coletiva, e só tem graça quando todo mundo contribui um pouco”, explica o criador do site Não Salvo, Maurício Cid. A consagração do tiopês veio em outro formato nascido na internet, as tirinhas do Cersibon, criadas em 2008 por Rafael Madeira. Para leitores de gênios, como Quino, Bill Watterson e Laerte, deparar-se com quadrinhos do Cersibon pode ser um choque, já que a qualidade dos desenhos é risível e o texto indecifrável. Mas está na sua simplicidade todo o charme do humor da internet. O que nos leva a outro marco da cultura virtual...
O MEME
Não dá para começar a falar de memes sem antes citar o biólogo britânico Richard Dawkins, criador da expressão. Em seu livro O gene egoísta, de 1976, Dawkins define meme como uma unidade de evolução cultural, da mesma forma que o gene atua no DNA. “São pequenas partículas de ideia que se reproduzem na sociedade. No começo do século 21, muita gente na internet se apropriou do termo para falar dos virais que estavam surgindo”, explica Bia Granja. Um exemplo de meme bem pernambucano: todo mundo sabe que a Avenida Caxangá é “a maior em linha reta da América Latina”, seja isso verdade ou não. De tanto ser repetido no nosso inconsciente coletivo, toda vez que os recifenses dizem que qualquer coisa é a “maior em linha reta da América Latina”, reproduzem o meme. “O meme pode ser qualquer conceito que se replica a partir da construção coletiva, mas só faz sentido se todo mundo colabora. Nem toda gíria é um meme”, completa Bia.
O que muita gente entende por meme, hoje, são aqueles desenhos malfeitos que se espalham como praga na web, também conhecidos como rage faces. “São coisas fáceis, divertidas e com que a pessoa se identifica. Os conteúdos dessas tirinhas ou de sites como o Como eu me sinto quando são vistos no dia a dia das pessoas, por isso que a ideia pega com tanta força”, afirma Fontenella. Os memes deixaram de ser piadas internas e atualmente se espalham pela cultura offline através de produtos culturais como estampas de camisetas, bótons, cadernos e uma infinidade de mercadorias. “Além de diferentes memes que se espalham pelos diferentes canais, é possível também constatar o surgimento de gêneros entre os memes”, diz Fontenella.
VIRALIZAÇÃO
A principal característica de replicação dos memes é através da “viralização”. Como os genes do DNA biológico, os memes se replicam e se espalham sem controle na rede. Entretanto, quando se fala em viral na web, principalmente no Brasil, a primeira coisa que vem à mente são vídeos como Jeremias muito louco, Cacete de agulha, Tapa na pantera, Luiza no Canadá e Ruth Lemos – sanduíche-íche. Basicamente, o viral se diferencia do meme por ter uma origem definida e não se modifica a partir dos compartilhamentos. “Um dos maiores mistérios do mercado publicitário é que não existe uma fórmula para a criação de um viral”, explica o empresário e curador da Campus Party Brasil, Edney Souza, o Interney.
Em exemplo: o vídeo original de Luiza no Canadá, mesmo que pensado como um informe publicitário, quando chegou na web, tornou-se um viral. A partir disso, tudo que foi feito utilizando a ideia original – inclusive o segundo comercial feito pela mesma empresa – é um meme. “Por isso essa comparação com vírus. Um é mutação do outro e acaba dando origem a outra coisa completamente diferente. E tudo nasce e morre muito rápido”, afirma Interney. Como não existe lei para determinar o que será “viralizado” ou não, os virais acabam sendo “eleitos” pela própria comunidade, e se tornam um retrato daquela cultura.
Tapa na pantera. Foto: Reprodução
O grupo chileno Woki Toki, que, em quatro anos de trabalho, já conseguiu emplacar vários virais na rede, faz periodicamente um apanhado dos vídeos mais populares de determinados países. O projeto, chamado The World in 2 minutes, já retratou o Brasil, os Estados Unidos, a Alemanha, a Rússia, o Japão, a Jamaica e muitos outros.
Da mesma forma que geram memes e piadas, os virais também fornecem à cultura da internet outro personagem central: a webcelebridade. Essas criaturas podem ter duas origens: pessoas que possuem um trabalho muito forte na internet – e acabam sendo conhecidas somente por lá – ou que, por terem tido algum vídeo/foto sua publicada na rede (geralmente de forma embaraçosa), fica conhecida na web e até fora dela. No segundo caso, estão incluídas as já mencionadas figuras como a nutricionista Ruth Lemos, o caruaruense Jeremias do Nascimento, o jornalista Lasier Martins (aquele que levou um choque nas uvas) e a paraibana Luiza Rabello. Nos Estados Unidos, berço da cultura internética, ficaram famosas personalidades como a cantora Rebecca Black (friday! friday!), Antoine Dodson (cujo vídeo ganhou uma versão musical nas mãos do grupo Gregory Brothers) e o garoto do vídeo David after dentist.
No rol dos que fazem da internet sua plataforma de trabalho, estão os personagens desta matéria (Interney, Maurício Cid e Bia Granja), mas também pessoas como os vloggers Felipe Neto, Pecê Siqueira e os nerds Alexandre Ottoni e Dave “Azaghal” Pazos, do portal Jovem Nerd. “O mais difícil num universo em que qualquer pessoa pode virar uma ‘celebridade’ é manter-se no topo. Com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, continuar conectado com o seu público e gerar engajamento por parte dele é o verdadeiro desafio”, avalia Bia Granja.
No site do Youpix, Bia e sua equipe ocupam-se em registrar, comentar e catalogar todos esses fenômenos culturais da internet, como uma forma de celebração da cultura da web. “O projeto nasceu em 2006 como uma revista impressa com as coisas maneiras que rolavam na blogosfera. Não existia, então, uma publicação que entendesse o que estava acontecendo e que explicasse tudo que era resultado da interação entre pessoas e pixels”, lembra.
Em 2009, o Youpix tornou-se um festival e conseguiu romper a barreira do virtual para o real, assim como algumas das webcelebridades estão conseguindo fazer hoje. “É engraçado que, por mais poderosa que seja a internet, as pessoas só sentem que aquele conteúdo é válido se recebem um endosso dos meios de comunicação mainstream. Ainda atualmente, a cultura da internet é vista como coisa de gente jovem, desocupada. ‘É o novo rock ‘n roll’”, brinca Bia. Para Interney, a influência do que acontece na web sobre o mundo real é cada vez mais notável. “O Fantástico, da Globo, puxa grande parte das suas pautas pelo que é assunto no Twitter. Muitas matérias de telejornais já começam com ‘essa semana na rede mundial de computadores’. Até puxar fotos dos sites para dizer o que é real e o que é montagem virou quadro de vários programas”, lembra.
RENATO MOTA, jornalista especializado em tecnologia, cultura pop, cibercultura e games.
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