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Domesticando a comunicação em rede

Na sua “segunda era”, percebe-se que a internet, inicialmente promovida para a eficiência, pode ter seu uso desvirtuado pelos usuários

TEXTO Fernando Fontanella

01 de Fevereiro de 2013

Imagem Hallina Beltrão

[conteúdo vinculado à reportagem de "Tecnologia" | ed. 146 | fevereiro 2013]

É sintomático que os memes tenham
ganhado a atenção da mídia nos últimos anos. Além da febre “memética” que explode nas redes sociais, trata-se de fenômeno que evidencia a consolidação de uma cultura digital mais aberta e menos elitizada: o momento em que a internet definitivamente deixa de ser uma novidade alienígena, e assume sua condição de tecnologia incorporada à vida cotidiana.

Na academia, é crescente o número de pensadores que hoje questionam o conceito – antes valorizado – de cibercultura. Segundo essa corrente, a cultura digital deixou de ser uma subcultura, restrita aos geeks e nerds, e passou a ser frequentada por todo o tipo de gente, acabando assim a necessidade de uma distinção que separe o real do digital. No entanto, é interessante observar que as práticas vernaculares dos usuários da rede ainda parecem uma novidade que se choca com as formas tradicionais de comunicação e entretenimento.

É importante esclarecer que a sensação de “explosão da frivolidade” na internet nos últimos anos, associada à popularização dos memes, é, em grande parte, produzida por um recente reconhecimento de um fenômeno que se desenvolve há muito tempo nas redes digitais. Já nas primeiras comunidades virtuais, surgidas a partir de redes experimentais na década de 1970, nos Estados Unidos, foram registrados casos em que usuários passavam a produzir e compartilhar textos e imagens editados, com fins de entretenimento despretensioso, criando piadas internas que eram sistematicamente transformadas e reinventadas por outros membros da comunidade. Pode-se traçar a origem dos memes, por exemplo, até as “fotorrespostas”, ou o costume dos usuários de fóruns online de responder a um tópico com alguma imagem especialmente selecionada e editada para expressar visualmente uma reação emocional.

A popularização recente de mídias sociais como o YouTube, o Orkut e o Facebook serviu como catalisadora para essas práticas que surgem quase que naturalmente, quando indivíduos comuns passam a usar computadores para expressar as suas experiência compartilhadas, e articular de forma criativa a banalidade do dia a dia. Nesse sentido, os memes atuais são o resultado avançado de um processo crucial na história da informática: a domesticação das tecnologias de comunicação em rede.

GÊNIOS CRIADORES
A história dos computadores tem dois lados interdependentes, mas distintos. O primeiro é o do design da tecnologia, ou seja, o da sua concepção e desenvolvimento de aplicações. Frequentemente, a sua narrativa toma a forma do “mito do herói”, em que os protagonistas são os profissionais – inventores, cientistas, engenheiros, frequentemente descritos como visionários – e as instituições que estão por trás do “aparecimento” de uma determinada ferramenta ou descoberta como as empresas e universidades que financiam as pesquisas necessárias. Essa perspectiva é alimentada por relatos sobre como dificuldades técnicas e econômicas foram superadas para criar soluções para problemas que afligem a humanidade. Uma vez realizadas, essas inovações são compartilhadas com a sociedade: os usuários, consumidores cujo papel se limita ao de endossar o gênio da ciência através da adoção das suas benfeitorias.


Jonathan Zittrain afirma que o computador é uma ferramenta que favorece novas aplicações, originalmente não previstas. Foto: Divulgação

Mas há um outro lado para essa história, que insiste em se apresentar: o processo tortuoso e fundamental pelo qual uma determinada tecnologia aplicada é tornada doméstica, por sua introdução no lar – ou no ambiente de trabalho –, passando a ser compreendida, desejada e adquirida pelos usuários. Nesse processo, o consumidor final não se mostra tão passivo; pelo contrário, ele pode ignorar ou rejeitar determinada inovação, ou oferecer feedback relevante o suficiente para levar ao desenvolvimento de novas tecnologias.

Quando surge um novo campo de inovação tecnológica, especialmente quando apresenta evidente impacto nas nossas vidas – como a informática –, a cultura popular costuma condensar as expectativas difusas que são criadas sobre os efeitos dessa tecnologia na sociedade. Em um momento inicial, é preciso lidar com o estranhamento: uma tecnologia difícil de compreender, desenvolvida por cientistas que operam em um ciclo hermético de conhecimento, produzindo geringonças que, potencialmente, colocam em risco estilos de vida estabelecidos – e, algumas vezes, toda a forma de vida na Terra. Surge a demanda por narrativas que realizem uma assimilação das potencialidades e riscos envolvidos, e sua forma mais evidente se dá na ficção científica que, através da literatura, do cinema, e hoje dos video games, produz um imaginário que representa tanto as esperanças utópicas quanto os medos distópicos. É também natural que a angústia do desconhecido produza nas pessoas alguma resistência, e então passa a ser necessário “explicar” a tecnologia para o grande público.

DESVIOS
Além disso, a domesticação dos computadores e, posteriormente, da internet, exigiu um processo de mediação cultural que aproximasse a tecnologia dos interesses dos usuários. A cobertura da imprensa teve para isso um papel fundamental, assim como a publicidade de fabricantes de hardware e software e de provedores de acesso, que promoveram as redes digitais aos consumidores através de discursos idealizadores, e que frequentemente faziam referências às perspectivas mais positivas da ficção: as redes digitais nos colocariam em contato com o mundo inteiro “sem sair de casa”; facilitariam a realização de pesquisas para o estudo e o trabalho; ofereceriam ferramentas para profissionais que nos fariam ganhar tempo no emprego; permitiriam a realização de compras online; e melhorariam a comunicação com parentes e amigos distantes. Embora buscassem uma aproximação com o contexto cotidiano dos consumidores, essas promessas enfatizavam uma perspectiva econômica ao celebrar a internet como uma ferramenta cujo benefício mais visível era a eficiência trazida para atividades diárias.

Hoje, o computador – e suas derivações, como tablets, smartphones etc. – deixou de ser um objeto alienígena, que assusta, e se banalizou a ponto de muitos apresentarem dificuldade para imaginar a vida sem ele. Mas o que podemos perceber com essa “segunda era” da internet é que a ferramenta inicialmente promovida para a eficiência pode ser e é, com muita frequência, desviada pelos usuários. Podemos perceber isso ao verificar como muitas empresas e instituições de ensino restringem, de alguma forma, o acesso à internet em seus computadores – proibindo o acesso a websites de pornografia, entretenimento ou mesmo às principais redes sociais, que desviam a atenção dos usuários. Da mesma forma, no ambiente familiar, muitos pais preocupam-se com o tempo que os filhos gastam em frente às telas de seus computadores. Nos mesmos lugares onde foi introduzido para melhorar a produção e o convívio familar, o computador parece tornar-se uma ameaça a esses valores.

Como ocorreu essa subversão de propósitos? O que quero destacar aqui é como os usuários são capazes de “desviar” uma ferramenta para novas aplicações, não originalmente previstas no seu design. Grande parte dos usos hoje difundidos dos computadores – “máquinas de computar” – surgiram a partir desses desvios. Para citar apenas um exemplo, a web foi proposta para facilitar a publicação de artigos científicos, mas posteriormente foi adaptada por usuários que a utilizaram para criar páginas pessoais, redes de pessoas com interesses comuns e blogs tratando dos assuntos mais diversos – e não científicos. A facilidade para publicar acabou dando ao cidadão comum a capacidade de burlar os filtros (tanto de custo financeiro quanto de conteúdo) tradicionais para a publicação de suas ideias, e uma nova dinâmica de relevância apareceu a partir de interesses das diversas comunidades virtuais que se organizaram em interesses comuns, até os mais frívolos ou bizarros. Daí uma sensação frequente que acompanhou a história da internet: a de que ela é um ambiente em que as regras da normalidade, da seriedade e do bom gosto são frequentemente desafiadas.


Henry Jenkins dedicou-se a estudar as narrativas alternativas produzidas pelos fãs, as chamadas fan fiction. Foto: Divulgação

O americano Jonathan Zittrain, no livro O futuro da internet, identifica uma característica especialmente importante das tecnologias digitais que favorece esse fenômeno de apropriação: a generatividade, descrita como a capacidade que uma ferramenta tem para favorecer novas aplicações, originalmente não previstas, propostas por qualquer usuário sem o controle dos designers da tecnologia. É fácil perceber como um computador comum tem alto grau de generatividade, pois qualquer usuário minimamente habilitado em programação pode criar um aplicativo simples, ou mesmo alterar um determinado código para produzir novos usos em um programa. No entanto, diariamente, somos apresentados com desvios mais despretensiosos e mais distribuídos, que mostram a escala de familiarização com a informática por pessoas sem esse domínio da técnica. Um exemplo evidente está no uso de programas profissionais de edição de som, imagem e vídeo, transformados em brinquedos por usuários para produzir mashups com imagens retiradas da cultura pop ou aleatoriamente adquiridas na própria rede.

Nesse contexto, os memes são dispositivos culturais que facilitam a apropriação vernacular da tecnologia, articulada por repertórios com os quais o usuário comum está familiarizado. Não só eles permitem dar um sentido à experiência de uso da rede, mas materializam as interpretações que o público faz dos produtos da indústria cultural, impulsionando o papel participativo dos consumidores no contexto da convergência midiática.

Há pouco mais de três décadas, o pensador francês Michel de Certeau chamou a atenção para a opacidade de práticas culturais populares até então majoritariamente ignoradas: a apropriação tática de materiais da cultura midiática para produzir interpretações próprias. O consumidor comum das mídias, subtraído da real capacidade de participar ativa e livremente da sua produção e difusão, passava a manifestar sua agência cultural nos modos de usar: elementos pré-existentes são assim apropriados e transformados em uma forma subterrânea e cotidiana de expressão, como nas paródias musicais obscenas, as especulações maliciosas sobre a vida de personagens de novelas, ou piadas protagonizadas por celebridades. Mais recentemente, Henry Jenkins apontou em um estudo seminal como durante décadas se sustentaram subculturas voltadas para a extensão de universos ficionais da indústria cultural através de narrativas alternativas produzidas pelos fãs (ou fan fiction).

No caso dos memes, esse fenômeno ganha escala e capilaridade. Muitos memes oferecem uma imagem ou texto-base, uma plataforma facilmente apropriável, através da qual qualquer pessoa, com pouquíssima habilidade técnica, pode participar de uma brincadeira colaborativa. A maioria das produções resultantes é absolutamente ignóbil e, como tal, passa desapercebida. Mas, quando milhões de pessoas estão trabalhando criativamente em uma mesma ideia, sempre existe a chance de algo genial aparecer e ganhar as graças dos usuários, passando a ser compartilhadas em massa.

Para os operadores das mídias tradicionais, essa é uma situação intrigante, e frequentemente arriscada. Na competição pela atenção do público, até bem pouco tempo não havia concorrência para os produtos culturais produzidos pela criatividade de profissionais treinados e muito bem pagos pela indústria de informação e entretenimento. Além disso, os filtros organizados pelas corporações de mídia garantiam uma disputa limitada entre elas. No entanto, a internet permitiu a articulação de uma capacidade criativa que, distribuída, tem um potencial enorme e, por outro lado, dificilmente pode ser comprada ou controlada. 

FERNANDO FONTANELLA, Professor de Comunicação da Unicap, mestre e doutorando em Comunicação pela UFPE.

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