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Potengi: A arte de forjar o ferro

Considerada uma das mais antigas profissões, o trabalho dos ferreiros sobrevive numa pequena cidade da Chapada do Araripe, no Ceará

TEXTO E FOTOS AUGUSTO PESSOA

01 de Janeiro de 2013

Atividade nas oficinas começa cedinho, por conta do calor

Atividade nas oficinas começa cedinho, por conta do calor

Foto Augusto Pessoa

Pouco mudou da época em que os primeiros homens começaram a moldar os metais – aproximadamente 2 mil anos antes de Cristo – até os dias atuais. Das armas forjadas nos feudos medievais às ferramentas que revolucionaram a agricultura, a atividade dos ferreiros artesanais praticamente se manteve a mesma através dos séculos. Em Potengi, pequena cidade escondida no alto da Floresta Nacional do Araripe, dezenas de famílias mantêm a tradição de trabalhar o ferro numa região do Nordeste brasileiro onde metalurgia é sinônimo de sobrevivência.

Potengi é conhecida como “a cidade que não dorme”. De madrugada, horas antes do sol nascer, já é possível ouvir o característico som das batidas da forja, que ecoam na escuridão. Os ferreiros preferem trabalhar nesse horário em função do forte calor das oficinas. “De madrugada, já estamos suados assim, o senhor imagine durante o dia”, diz o ferreiro Raimundo Soares, enquanto alimenta o fogo que possibilita a modelagem do metal.

As quase 30 oficinas de Potengi empregam, hoje, cerca de 100 trabalhadores e são responsáveis, depois da agricultura, pela maior parte da renda do município. Muitos, no entanto, se perguntam como tantas oficinas de um ofício tão específico foram se concentrar ali, no extremo sul do Ceará. Para Luiz Leite de Andrade, um dos mais antigos ferreiros da região, tudo começou na década de 1950, quando ele e alguns outros começaram a “bater ferro”. Hoje, com 78 anos, Andrade ainda mantém a oficina, apesar de não manusear mais as pesadas ferramentas.


Cidade está localizada no alto da Floresta Nacional do Araripe

Contam na cidade que, durante os períodos de estiagem, quando não era possível plantar, os agricultores foram trabalhar nas oficinas, e isso criou a necessidade de outras para suprir a demanda crescente de ferramentas para cidades como Juazeiro do Norte e Crato, as duas mais importantes da Chapada do Araripe. Atualmente, nos meses em que a agricultura está em baixa, as oficinas continuam sendo as primeiras alternativas de trabalho.

Se feita uma expedição no Brasil em busca dos ferreiros artesanais, verifica-se que poucos lugares ainda conservam a atividade. Valorizada tempos atrás, a profissão de ferreiro está quase que completamente esquecida, graças à evolução da tecnologia que possibilitou o manuseio do metal em escala industrial.


Foices, enxadas e bigornas são os produtos de maior saída

Os relatos mais antigos sobre a forja de metais podem ser encontrados no primeiro livro bíblico, o Gênesis. Nele, é narrada a história de Tubalcaim, que teria sido o ancestral de todos os artesãos que trabalham com ferro e bronze. A palavra Tubal nomeia uma região do Oriente, rica em metais. Já Caim, segundo algumas tradições semíticas, significa ferreiro.

Durante muitos séculos, sobretudo no medievo, os ferreiros eram considerados os mais fortes das vilas. A força exigida pela carga horária de produção de um ferreiro de Potengi, a propósito, ganha realmente conotações medievais. Muitos chegam a trabalhar 16 horas por dia, parando apenas para almoçar, sem quaisquer condições de segurança e expostos a um calor infernal. Como a demanda por esse tipo de trabalho aumenta em função da agricultura e o momento tem sido marcado por estiagem e seca na região, a previsão é de que os próximos meses sejam de aumento de produção nessas fabriquetas.

MÍTICA BIGORNA
No emaranhado de ferro que se amontoa numa das oficinas de Potengi, uma peça em especial chama a atenção. Constituída por um bloco maciço de ferro, a bigorna é uma espécie de símbolo da arte de moldar o metal. O modelo mais encontrado no interior do Nordeste é o europeu, que possui duas pontas, uma arredondada e outra plana. A maioria das ferramentas veio da Europa no período da colonização e, atualmente, são consideradas peças de museu. As bigornas são tão pesadas, que passaram a significar morte instantânea por esmagamento, em algumas animações.

Depois de aquecer o metal no fogo, os trabalhadores – sempre em dupla – trazem a peça em brasa para ser forjada na bigorna. É a parte mais importante do trabalho, quando qualquer erro pode prejudicar a criação da ferramenta. A matéria-prima pode vir de várias fontes, até mesmo de sucatas de molas velhas de caminhão, compradas no quilo em cidades vizinhas. Um quilo de mola de caminhão, comprado por R$ 2 em média, só dá para fazer uma foice, ferramenta que está entre as mais procuradas pelos agricultores locais. Para aquecer o metal, os ferreiros usam carvão, outro material escasso por ali.

Depois que a peça é amassada, é a hora de fazer a curva da foice. No processo, ela vai ao fogo e volta à bigorna dezenas de vezes, até adquirir o formato desejado. Depois de moldada, a foice é novamente aquecida, mergulhada em óleo, e rapidamente resfriada. A têmpera é um processo que visa aumentar a dureza do metal. Para temperar bem uma peça, é preciso experiência. Essa etapa geralmente é cumprida por alguém que possui a habilidade e a intuição do tempo certo – este, o que se dá no choque térmico a que o ferro é submetido. “Se o tempero não for bem-feito, lá na frente o cliente vem reclamar, dizendo que a foice não ficou resistente”, diz o ferreiro José Galdino.

A última etapa de produção é o esmeril, que dá à peça o corte final. Uma foice é vendida geralmente por R$ 10. Quando perguntado sobre o tempo de duração de uma instrumento desses, Galdino brinca: “Depende. Se o trabalhador for preguiçoso dura mais de 10 anos”. Um ferreiro pode chegar a ganhar até R$ 500 por mês, o que para muitos é bem melhor que ficar em casa vendo o sol queimar as plantações enquanto a nova temporada de chuvas não chega.


Nas oficinas, equipamentos de segurança permanecem nas
paredes, como se fossem decoração

Para um ferreiro profissional, que não forja o ferro apenas no período da estiagem, o tempo de profissão geralmente é bem curto. Aos 50 anos de idade, a maioria já está parando. Com problemas de sono e de audição, causados pelo insistente som das batidas no ferro, a maioria dos trabalhadores desconhece o risco a que está submetida. Nas paredes das oficinas, luvas e aventais parecem mais objetos de decoração do que de segurança. Os óculos, capazes de evitar sérios acidentes, são usados por poucos. Segundo os argumentos dos que não usam, o equipamento atrapalha, ao invés de ajudar, devido ao excesso de suor. Protetores de ouvidos são outros acessórios disponibilizados pelos donos das oficinas, mas raramente utilizados pelos ferreiros.

Assim, tão expostos quanto os antigos ferreiros dos feudos medievais, os homens de Potengi levam adiante um ofício que se perde no tempo e que carrega parte importante da história da evolução humana e sua capacidade de manipular os recursos naturais. Nas ruas da pequena cidade cearense, durante a trégua matinal do calor sertanejo, o som dos martelos nas bigornas parece marcar o renitente relógio da tradição. 

AUGUSTO PESSOA, fotógrafo.

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