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“Não sou dado à nostalgia”

O escritor Ruy Castro fala sobre sua tumultuada relação com o rock, do seu desinteresse por novas produções artísticas e de sua paixão por livros, filmes e LPs

TEXTO Marcelo Abreu

01 de Janeiro de 2013

Ruy Castro

Ruy Castro

Foto Rafael Andrade/Folhapress

"Não moro num apartamento, moro numa biblioteca, numa discoteca”, diz o jornalista Ruy Castro, sobre o local onde vive e trabalha no bairro do Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro. Do alto desse posto de observação privilegiado, ele tem feito, nos últimos anos, um dos trabalhos mais produtivos de registro da cultura brasileira. Aos 64 anos, biógrafo consagrado e escritor best-seller, sente-se livre para emitir opiniões pouco consensuais sobre vários temas ligados à cultura e ao Brasil na sua coluna, publicada quatro vezes por semana, na página 2 da Folha de S.Paulo.

Depois de uma trajetória de sucesso na imprensa carioca e paulista, Castro ficou famoso ao lançar Chega de saudade, uma história da bossa nova, em 1990. Repetiu o sucesso com a biografia O anjo pornográfico, sobre Nelson Rodrigues, em 1992 e, em seguida, publicou Estrela solitária, a biografia de Garrincha (1995). Já consagrado, investiu em outros temas ligados à história cultural do país. Em Ela é carioca (1999), traça um grande perfil sobre o Bairro de Ipanema. Carmem (2005) é a mais completa biografia sobre a cantora que fez sucesso em Hollywood. Em outros livros, tem enveredado também pela ficção, feito traduções e organizado coletâneas de grandes nomes da imprensa brasileira. Recentemente, exibiu fotos de sua coleção de discos e filmes no livro ilustrado Álbum de retratos, organizado por Heloísa Seixas. Nesta entrevista, Ruy Castro fala sobre sua paixão por LPs, de sua relação com o rock e critica o atual modelo de financiamento da cultura.

CONTINENTE Você escreveu o livro Saudades do século 20 com perfis sobre artistas de décadas passadas. Os primeiros 12 anos do século 21 já produziram alguma coisa que vai deixar saudade em você?
RUY CASTRO Bom, a palavra saudade no título daquele livro era uma coisa simbólica. Eu sou a pessoa menos dada à nostalgia que você poderia imaginar. Não tenho saudade de nada nos últimos sessenta e poucos anos que estou nesse planeta porque, entre outras coisas, trago isso (o passado) comigo o tempo inteiro. Eu tenho milhares de discos, livros e filmes cobrindo grande parte do século 20, do qual sou seu grande fã, e não esgotei ainda esse material. Continuo assistindo a filmes toda noite, de 1970 para trás. Ainda não cheguei à música popular produzida depois de 1970, basicamente porque não esgotei ainda a anterior. O que aconteceu nos últimos 12 anos, confesso que mal tomei conhecimento. Não saberia nem citar o nome dos artistas.

CONTINENTE Você tem sido um dos poucos críticos do atual culto à tecnologia. A que atribui o fato de os intelectuais brasileiros terem se rendido ao discurso festivo em relação à internet?
RUY CASTRO Por que será que aderiram de maneira tão apaixonada e tão acrítica? Eu também aderi. Embora não use celular, passo o dia ligado na internet. Meu computador, assim que se acende, vai para página do New York Times, aí eu vejo a primeira página da Folha, do Globo e depois entro no e-mail para ver se alguém me escreveu e só então vou trabalhar. É difícil resistir. Como eu tenho um certo conhecimento de dependências, a única maneira de não ser assolado e dominado pela tecnologia é ficar o máximo possível longe dela. É por isso que não tenho celular, não entro em Facebook e em Orkut. Sei muito bem que a nova tecnologia logo estará superada. Se falar em Orkut com um menor de 12 anos, ele não sabe do que se trata. Fui educado para lidar com valores permanentes. Não tenho que ficar sujeito a esse tipo de velocidade atordoante. Estou muito bem com os equipamentos que tenho e que ainda podem ser usados. O que tento fazer nessas colunas não é uma crítica ranzinza. Não quero que as coisas voltem ao passado. Procuro alertar as pessoas para que não se deixem assoberbar e dominar por esse tipo de coisas.

CONTINENTE Prefere escutar música em vinil, havendo a opção?
RUY CASTRO Prefiro. Estou conseguindo perceber o caráter mais caloroso, mais redondo e mais humano do som no LP em relação àquela coisa metálica, supostamente perfeita, do CD. O vinil tem um pouco mais de cheiro, de calor, ele não é tão agudo nem tão baixo. Percebo que o som de um contrabaixo num CD é como se estivesse vendo um show e botasse o seu ouvido dentro do instrumento, não é assim que a coisa funciona na vida real. Os LPs já tinham conseguido uma perfeição sonora espetacular. Para não falar das capas e outras coisas. Não chamo LP de vinil porque, se eu fizesse isso, teria de chamar CD de metal (risos). Hoje, tenho a melhor coleção de LPs que já tive na vida, tenho comprado muita coisa de colecionadores, em leilões ou pela Amazon ou na rua mesmo. Não me contento com pouco. Se encontrar um disco que quero e esteja muito estragado, sou até capaz de comprar por garantia, mas não vou sossegar até encontrar aquele disco em perfeito estado. É uma coleção lindíssima, parece que saiu ontem da fábrica, de tão arrumadinha. Eu lavo, passo sabão de coco com flanela, enxáguo, boto em escorredor de prato para secar. Tenho pelo menos uns 3 mil discos.

CONTINENTE Como você vê a tendência de o cinema abandonar a película em favor da projeção digital?
RUY CASTRO Isso não vai me alterar em nada, porque não vou mais ao cinema. Não suporto aquele volume altíssimo, a mania de comer pipoca. Vejo pessoas com sacões de pipoca ao meu lado nas poucas vezes em que ainda saio de casa para ir ao cinema. Fui ver o filme de Woody Allen (Meia-noite em Paris), todo à base de diálogos, tem de ser ouvido. De repente, tem um cara mastigando pipoca do meu lado, em alto volume. Não me lembro de ter visto A aventura, de Antonioni, ou Acossado, de Godard, ou A doce vida, de Fellini comendo pipoca. No cinema inteiro, não tinha ninguém comendo pipoca. Se forem reexibir hoje, lá estará a manada toda comendo pipoca e vendo filme do Fellini. Não tem sentido isso. Dos pouquíssimos filmes feitos hoje, que ainda me interessam, espero três meses, eles saem lá fora ou aqui em DVD, eu compro, assisto e vejo realmente que não perdi nada em não ir ao cinema.

CONTINENTE Como vê, nos últimos anos, a emergência da cultura de periferia no Brasil na literatura, na música hip hop, no cinema etc.?
RUY CASTRO Eu não tomo conhecimento. Não é que tenha nada contra. Estão dando chance a essas pessoas? Ótimo. Os que forem bons vão sobreviver. Não é pelo fato de ser da periferia que serão melhores do que outros. Quanto ao hip hop, não tomo conhecimento porque continuo gostando de música.


Acossado, filme de Jean-Luc Godard. Foto: Reprodução.

CONTINENTE Você é conhecido como um homem do jazz, da bossa nova e dos sambinhas antigos. Qual sua relação com o rock?
RUY CASTRO O rock dos anos 1950 era engraçado, era uma cópia do rhythm and blues americano. Quando os Beatles surgiram em 1963, toda a minha geração descobriu supostamente a música através deles. Isso não me aconteceu porque eu tinha 15 anos, já era grande ouvinte e fã de Thelonious Monk, Modern Jazz Quartet, Clifford Brown, adorava Charles Mingus. Quer dizer, era um tipo de música tão adulta, na verdade, que eu não precisava ficar tão deslumbrado com She loves you. Ouvia coisa mais consistente nessa época. Agora, os Beatles melhoraram muito, evoluíram, foram fazer outras coisas. Retrospectivamente, passei a gostar até do She loves you e I wanna hold your hand. Assim como não tinha como fugir da bossa nova no Brasil na primeira metade dos anos 1960, não tinha como fugir aos Beatles na segunda metade. Eu continuei gostando de jazz e tudo o mais, mas, do ponto de vista emocional – e música tem muito a ver com isso –, é a trilha sonora da minha vida. Os Beatles acabaram, não me interessei por nada que foi feito depois. Tive uma recaída roqueira entre 1980 e 1983. Tive uma fase de droga muito violenta, e se você está nessa, do jeito que eu estava, não suporta ouvir nada que não seja rock. Por acaso, eu tinha umas namoradas roqueiras, e a própria música associada ao rock vigente era uma música interessante, a new wave, baseada em reggae, como Police. Toda essa música era bem dançante, não era aquela coisa intelectualizada no rock progressivo dos anos 1970, que era chatérrima, nem se tornou depois tão violenta como heavy metal. Essa fase durou poucos anos e coincidiu com a minha de querer ouvir música barulhenta em alto volume, que era só o que eu aguentava fazer. Parei de ouvir jazz nessa época, o único jazzista que eu ouvia era Coltrane. Fui salvo por uma namorada, consegui parar com a droga e voltei à normalidade de ouvir a grande música americana, brasileira e universal.

CONTINENTE Qual sua opinião sobre esse modelo de produção cultural baseada nas leis de incentivo à cultura?
RUY CASTRO Se você olhar o passado, vai ver que o Brasil construiu uma grande música popular, um ótimo teatro, até uma arquitetura respeitada no mundo inteiro, uma série de manifestações brasileiras foi feita sem a existência sequer do Ministério da Cultura, quanto mais de leis de incentivo à cultura. A ideia na época era a seguinte: o governo cuida da educação e a cultura cuida de si mesma. O teatro era financiado pela bilheteria. Havia a companhia de Tônia Carreiro, Adolfo Celi e Paulo Autran, que quando ia lançar uma peça americana, inglesa ou francesa, pagava um tradutor, escalava um elenco que era contratado pela companhia, os atores ficavam na folha de pagamento durante seis meses pelo menos, incluindo três meses de ensaio e os três primeiros meses de encenação. A peça entrava em cartaz e ficava três meses, um ano, ou muito mais, baseada rigorosamente na bilheteria. Algo incompreensível, hoje. Qual a perspectiva de futuro de uma cultura baseada nesse modelo atual? O Ministério da Cultura, já que existe, deveria cuidar do patrimônio histórico, investir pesado na conservação de cidades que merecem ser protegidas, na criação de bibliotecas e em formas de expressão que não rendem dinheiro, balé, dança e orquestra sinfônica, e estimular a presença dessas orquestras em praças públicas, espetáculos gratuitos. É para isso que deveria servir, e não para bancar show de rock na praia ou então CD de cantor baiano, que é o que mais tem.

CONTINENTE Sobre o Brasil, virou moda dizer que tudo está bem porque a economia supostamente está crescendo. A que atribuir essa súbita falta de senso crítico?
RUY CASTRO O Rio, por exemplo, está vivendo um momento maravilhoso, de autoestima, amor à cidade, de confiança, investimento. Imagina isso em massa, com milhões e milhões de pessoas tendo oportunidade de comprar televisão, geladeira, ventilador, computador, podendo até viajar para Buenos Aires. Num quadro tão otimista, as pessoas evidentemente tendem a ser menos críticas e até a relevar pecadilhos dos seus governantes. Ainda não se preocuparam em ter acesso a livros, à cultura e a exigir melhores escolas e faculdades. Mesmo nos EUA, depois da recuperação econômica, da Segunda Guerra Mundial e da depressão econômica, as pessoas foram comprar o quê? Livro, disco de música clássica? Não, foram comprar bens de consumo conspícuos. Talvez seja um problema do ser humano, realmente.

CONTINENTE Já pode falar sobre seus próximos projetos?
RUY CASTRO Estou com três ou quatro projetos atrasados, um deles um prefácio enorme do Memórias de um sargento de milícias, que vai sair pela Penguim e Companhia das Letras. Outro é um romance pela Alfaguara, cujo personagem é Dom Pedro II; um episódio maravilhoso da História do Brasil que me ocorreu, ia construir um romance inteiro em volta disso. Estou atrasado para um livro sobre música popular brasileira (Companhia das Letras) e em outro sobre biografia, também para mesma editora. Vamos fazer, em 2013, um livro gráfico enorme sobre Carmem Miranda para a Casa da Palavra. Esse vai ser feito porque não tem de escrever tanto.

CONTINENTE Afora as coisas chatas do cotidiano e o trabalho duro com os livros, a impressão que dá é que você passa o dia em casa, de bermudas, ouvindo jazz, vendo filmes antigos, conversando com pessoas interessantes e escrevendo só o que gosta. É assim mesmo o Ruy Castro do cotidiano?
RUY CASTRO Filme, só depois de meia- noite, sessão coruja. Fico quase o dia no computador, é um trabalho duro. A apuração é toda feita na rua, localizando as pessoas com grande dificuldade e me preparando para ouvi-las. No caso de fontes mais importantes, como Elza Soares, por exemplo, levei um ano e pouco, primeiro me preparando, para depois ir conversar com ela. Fui para a primeira entrevista com uma lista de mais de 500 perguntas. É sempre assim. “Ah, mas é tão gostoso o que você escreve. Senta e escreve.” Não é nada disso. É exatamente o contrário. Quanto mais fácil de o leitor ler, mais difícil de escrever. Não moro num apartamento, moro numa biblioteca, numa discoteca, é um lugar até grande, um apartamento duplex, de cobertura, na praia do Leblon, mas é um lugar péssimo para trabalhar, porque dou três passos, tenho o Oceano Atlântico à minha frente. A janela do meu escritório dá para o prédio ao lado, uma parede branca. Não se vê nada, é a melhor maneira para se concentrar no trabalho. Um lugar muito bom para viver, mas inconveniente para trabalhar, porque a tentação ao redor é muito grande. Da varanda se vê perfeitamente o mar. 

MARCELO ABREU, jornalista, professor e autor de livros-reportagem e de viagem, como De Londres a Kathmandu.

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