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Rádio 90 anos

Quando ele chegou, foi anunciado como “uma maravilha da eletricidade” e logo alçado à mania. Com o advento da TV, ainda se manteve como mais popular dos veículos. E hoje, qual o seu papel?

TEXTO Paulo Carvalho

01 de Dezembro de 2012

Foto Reprodução

O rádio chegou a Pernambuco como “uma maravilha da eletricidade”. Um aparelho de funcionamento misterioso, mesmo para quem já tinha ouvido falar de ondas eletromagnéticas. O jornalista e político pernambucano Zilde Maranhão narra, em depoimento publicado no Diario de Pernambuco, o espanto de uma primeira audição. O ano era 1925, Zilde estava na casa de seu avô paterno quando ligaram um aparelho ao qual foi apresentado por “radiotelefônico”. O dispositivo chiava, dava estouros e levou muito tempo para ser ajustado. “Entre os estouros e o chiado – que meu avô disse ser consequência da estática –, uma música que fiquei sabendo ser parte da opereta A viúva alegre, que o Rádio Clube de Pernambuco estava irradiando.” O texto de Zilde integra um caderno especial sobre a Rádio Clube, veiculado originalmente no dia 19 de julho de 1984 e recentemente compilado em Raízes do rádio, livro do pesquisador e radialista Luiz Maranhão Filho.

A Rádio Clube de Pernambuco (na época, escrevia-se “Club”) foi a primeira emissora a funcionar em solo nacional, diz a pesquisa de Luiz Maranhão Filho, contestando a consagração de Roquette Pinto pela criação da Rádio Sociedade, do Rio de Janeiro, em 1924. Não aceita também a data de 1922, quando, em comemoração ao primeiro Centenário da Independência, seria realizada a primeira transmissão oficial, na presença do presidente Epitácio Pessoa. Documentos mostram que a fundação jurídica da Rádio Clube é de 6 de abril de 1919.

“A transmissão reproduzia discos trazidos da Europa ou, então, a música tocada ao vivo, muitas vezes pelas professoras de piano do Recife e região”, lembra Luiz Maranhão Filho, em entrevista à Continente. Mas, naquele tempo, possuir um rádio em casa era um privilégio pelo qual cada família pagava aos Correios uma taxa anual de 20 mil réis. O dinheiro da subvenção jamais chegaria aos cofres da Rádio Clube.


Superproduções caracterizaram os anos de ouro do rádio, entre 1930 e 1950.
Foto: Reprodução

Como recorda Antônio Camelo, ex-diretor da Rádio Clube, em texto também publicado no caderno especial do Diario de Pernambuco, engana-se quem imagina uma rádio tecnicamente estruturada, com transmissões regulares. Até o final do ano de 1920, em nenhuma parte do mundo havia transmissões radiofônicas desse tipo. Empresas como as que conhecemos hoje em dia só apareceriam em 1926, quando a publicidade passa a integrar a receita. “Augusto Pereira, Carlos Rios, Raymond e Jorge Gatis, João Pereira de Lira, Abelardo do Rego Barros, Alexandre Braga e demais pioneiros pernambucanos devotaram-se ao rádio sem qualquer objetivo econômico”, observa Camelo.

Enquanto os profissionais do microfone eram designados pelo estrangeirismo speaker, Abílio de Castro, então professor de português do Ginásio Pernambucano, propôs a palavra locutor, de origem latina, como o melhor termo para a profissão. O ano era 1930 e ele teve que brigar com Mario Melo, que preferia – ou, por gozação, dizia que preferia – o ambíguo termo falador. De acordo com Luiz Maranhão Filho, os pernambucanos mandaram uma carta para César Ladeira e Celso Guimarães, speakers do Rio de Janeiro, que aceitaram o novo nome e o difundiram mais amplamente.

Os locutores eram a alma da estação, o carro-chefe, sua marca registrada. E não era fácil ingressar na profissão. Além da dicção perfeita e domínio de línguas estrangeiras, os candidatos deveriam ter muita erudição e desenvoltura para improvisar sobre qualquer tema. No mesmo especial do Diario, Severino Barbosa, produtor da Rádio Clube, recordaria que, já antes de 1930, os concursos para locutor da Rádio Clube apavoravam os candidatos – a maioria, acadêmicos. “Mantendo média de reprovação, às vezes chegando aos 100%, a prova de dicção, de caráter eliminatório, tornou-se o terror dos candidatos, em face da exigência de frases complicadas como ‘a aranha arranha a jarra, a jarra arranha a aranha’ e outras, a serem repetidas 10 vezes, sem que se permitisse a menor falha de pronúncia.”

O Recife também sediaria outro evento inaugural – a primeira transmissão nacional de FM, em 1938, durante o Congresso Eucarístico Nacional. Na ocasião, o enviado do sumo pontífice, cardeal Eugenio Pacelli, futuro Papa Pio XII, teria sua procissão pelo Rio Capibaribe e ruas do centro transmitida por aparelhos criados pelo alemão Otto Shiller. Primeiro técnico da Rádio Clube, Shiller contratou dois estivadores para acompanhar o cardeal. Um levava uma bateria de caminhão nas costas e o outro o transmissor. Para que não se afastassem um do outro, no meio da procissão, atou-os com uma algema, tomada de empréstimo de um policial. A voz era de José Renato, o primeiro repórter de transmissão externa. Shiller lembra, em depoimento para o Projeto Memória, produzido por Luiz Maranhão Filho, que o transmissor profissional de FM, fabricado pela americana General Eletric, só chegaria a Pernambuco depois da Segunda Guerra.


As cantoras Emilinha Borba e Mary Gonçalves conquistaram milhares de ouvintes.
Foto: Reprodução

O pai do pesquisador, Luiz Maranhão, também contribuiu para o vanguardismo radiofônico do estado. É de sua autoria Sinhá-moça, a primeira história seriada do Brasil adaptada para o rádio, do romance Senhora de engenho, do pernambucano Mário Sette. A história foi apresentada em sete capítulos, transmitidos em 1938, depois do Congresso Eucarístico Nacional. Uma das estrelas foi Mercedes del Prado. Era o começo de uma série de trabalhos de sucesso em que “galãs e mocinhas se amavam sem jamais falar de sexo”.

Pela Rádio Nacional, iriam ao ar textos de Ibsen, Shakespeare, Eugene O’Neill, Tennessee Williams, Garcia Lorca, Brecht, Pirandello, e não demorou para que a Rádio Clube de Pernambuco tivesse três novelas diárias, uma de aventuras, à tarde, outra religiosa, após a ave-maria, e uma à noite, com peças do grande teatro. Em 1939, o país tinha 357.921 aparelhos de recepção. Sucesso absoluto.

RADIOMANIA
A Rádio Clube dominou as transmissões em Pernambuco até a criação da Rádio Jornal do Commercio, em 1948. Em programa transmitido para a Inglaterra, a professora Janete Svaitom pronunciava o famoso slogan da emissora: “Pernambuco speaking to the world.” As ondas curtas e médias alcançavam todo o mundo e as vozes de Valdemar de Oliveira, Mário Sette, Brivaldo Franklin, Edson Nery da Fonseca e Fernando Castelão viraram referência.

O jornalista e escritor Jorge José Barros de Santana, autor do livro O rádio pernambucano por quem o viu crescer, conta em entrevista à Continente que, nos idos de 1940, o rádio local oferecia programação mais qualitativa, composta de concertos musicais, com a participação de figuras da sociedade, adaptação de contos literários e crônicas escritas por intelectuais. Já a década de 1950 registraria certa expansão da dramaturgia.


O pesquisador Luiz Maranhão Filho é um dos responsáveis pela consolidação da história do rádio em Pernambuco. Foto: Tiago Barros

A partir dos anos 1930, a música popular teve presença maior e os programas de auditório com seus animadores e atrações ganharam mais espaço. Era a vez da “radiomania”. Nos auditórios de rádios do Sudeste e do Nordeste, as jovens se acotovelavam para ver as estrelas: Cauby Peixoto, Orlando Silva, Sílvio Caldas, Nelson Gonçalves, Dorival Caymmi, Dick Farney, Ivon Curi, Marlene, Emilinha, Jackson do Pandeiro e Almira, César de Alencar, Jorge Goulart, Ângela Maria, Carmélia Alves, Nora Ney e Isaurinha Garcia, entre outras vozes que disputavam títulos de reis, rainhas, príncipes e princesas, além de ditar moda e vender produtos. Luiz Maranhão Filho recorda que as fãs eram tão irreverentes e bagunceiras, que, para designá-las, o cronista Nestor de Holanda criou o termo macacas de auditório. O rádio foi o grande propulsor da indústria fonográfica.

Na década de 1930 e início da 1940, a maior expressão feminina do rádio pernambucano era Aline Branco. A jovem ingressou na Rádio Clube aos 15 anos e tornou-se a estrela principal do programa A Hora Azul das Senhorinhas, veiculado no horário da tarde. Por aqui, também seriam descobertos os talentos de Clovis Paiva, Ernane Dantes, Luiz Bandeira, Maria Celeste, Irmãs Parísio, Dorinha Peixoto e do menino prodígio Paulo Molin. Abelardo Barbosa, o Chacrinha, também começaria sua carreira na Rádio Clube de Pernambuco, no final de 1939. Era estudante de Medicina, quando foi convidado para ser locutor da emissora.

Como ressalta Jorge Santana, em 1960, a capital pernambucana ganharia suas duas primeiras emissoras de televisão, o que geraria uma crise para as rádios locais. Mas, enquanto se perdia audiência, aumentavam os experimentos na forma e nos conteúdos. “A plataforma AM introduziu mais música, programas com sorteios e prêmios, radiojornalismo mais compactado.”

Já o sistema FM proporcionaria outro choque aos gestores das AM. A qualidade do som conquistaria a maioria dos seus ouvintes. Contudo, a popularização absoluta dos pequenos aparelhos de recepção preservaria o espaço do rádio na produção e consumo de informações, que parece ter sido sua principal vocação e espinha dorsal durante quase um século. “É justamente nesse ponto em que o rádio supera a força da imagem. A televisão e o jornal perdem porque não podem estar com a mesma velocidade que o rádio nas mais distantes e variadas regiões”, compara Jorge Santana. 

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