Outro fator que contribuiu para a migração foi a ideia já prevista pelo autor de desenvolver a investigação de Capella através de textos salvos em disquetes por Badaró. Ainda que não fosse pensada especificamente para a web, ao deslocar a narrativa para o meio virtual, essas informações sugerem novos significados, transforma-se em metalinguagem, ganham o peso de uma autorreflexão de alguém que procura se conhecer, ambientar-se e chamar a atenção para o terreno em que pisa.
O autor traz para a obra um hábito que fez parte do seu cotidiano durante os seis meses de escrita, fazendo alusões às conversas abertas pelos internautas que acompanhavam Os anjos de Badaró. “Eles começaram a bater papo todo dia num chat. Aí entrei e vi que eles estavam falando de mim, tudo fã. Achei ótimo aquilo, entrei com meu nome e falei ‘oi, pessoal, tô aqui’. Só que ninguém se manifestou, nada, silêncio. Aí chamei uma menina pro reservado e ela disse que eu era o quinto Mario Prata que entrava ali”, diverte-se o autor, que precisou passar por uma bateria de testes para comprovar a identidade. Em outras cenas, o autor aponta para as praticidades permitidas pela rede, como pegar o resultado de um exame de sangue, a rapidez dos sistemas de busca e o volume de informações contidas na internet.
Nesses pontos, o livro apresenta seu valor documental, ao registrar as reações geradas durante o período de transição de uma cultura analógica/material para a eletrônica/virtual. Para tanto, o autor se vale do personagem Capella, um jornalista policial com 63 anos de idade e 40 de profissão, alheio à informatização do mundo. Na redação, ele resiste com sua velha máquina de escrever Remington, nega-se a ter aulas de informática e vê seu salário desvalorizado em comparação ao do responsável pelos computadores do jornal. Mas, quando o amigo morre e deixa pistas espalhadas em disquetes, ele se vê obrigado a comprar um computador para desvendar o mistério que envolve o suicídio e finalmente escrever uma reportagem relevante capaz de lhe render o tão desejado Prêmio Esso.
Embora dê conta da narrativa, a versão impressa serve apenas como um suvenir daquilo que foi a experiência on-line, a exemplo de como funcionam os catálogos para as exposições. Ao contrário de Tabajara Ruas e João Ubaldo Ribeiro, autores já renomados que também se aventuraram pela rede, o mérito de Mario Prata foi pensar a web como suporte diferenciado do papel, explorando suas características e não apenas como meio de distribuição do livro.
Além da obra, o site possuía seções extras que possibilitavam entretenimento aos internautas, como enquete, horóscopo feito pelo próprio Mario Prata e fichas das garotas de programa que trabalhavam para o Badaró, criadas, sob orientação do autor, por seu filho, o também escritor Antonio Prata. Apenas duas dessas fichas, de um universo de cerca de 20, foram preservadas no livro impresso. Ao longo do processo, também foi criada a rádio on-line Os Anjos de Prata, em que, a exemplo das novelas, cada personagem tinha sua música.
Os grandes festivais literários têm investido em escritores bons de
palco, como Fabrício Carpinejar. Foto: Divulgação
Mas o maior diferencial de Os anjos de Badaró está na estratégia de usar o potencial da internet para dar à literatura um viés de evento. O teórico da cibercultura Pierre Lévy lembra que, diante do gigantesco fluxo de informações que renova a rede a cada instante, uma das alternativas das artes virtuais é justamente adotar a lógica de evento. Ou seja, chamar a atenção e marcar território antes de serem engolidas por outras novidades e manias da rede. A produção desse livro realizou uma mudança simbólica na postura dos escritores, trabalhando a escrita como uma forma de performance, quebrando a imagem da criação como algo divino para reforçar a noção de processo.
A presença diária no site de um escritor já conhecido do público, como Mario Prata, e as atualizações constantes contribuíram para o sucesso da empreitada, fazendo com que a home pageultrapassasse a marca de 400 mil visitantes espalhados geograficamente em mais de 50 países. Números que impressionam, ao recordamos que foi escrito em língua portuguesa e ocorreu no ano 2000, quando o acesso à banda larga no Brasil chegava a apenas 121 mil usuários (em 2011, esse número foi de 18,4 milhões) e pesquisas indicam que, em maio de 2001, o número de internautas no país era de 10,4 milhões.
REPERCUSSÃO
Apesar de ser pouco lembrado nos dias de hoje, o projeto despertou grande curiosidade, na época. O seu ineditismo atraiu a atenção da mídia, rendendo ao autor repercussões na imprensa nacional – francesa, italiana e espanhola. De maneira geral, já naquele tempo, as matérias traziam em comum a curiosidade sobre o projeto (relatando o modus operandi da empreitada), a possibilidade de troca de informação com os leitores e a mudança do perfil do escritor, que até então era retratado no imaginário como uma pessoa reclusa no seu ato de criação.
A professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Paula Sibilia aponta, no livro O show do eu, que uma das características da literatura contemporânea é a inversão do grau de importância entre a obra e o autor. De acordo com ela, a obra passa para o segundo plano, enquanto o autor sobe ao palco para receber os flashes e falar da sua vida, transformando livros em ornamentos e suas personalidades em “obra”.
Um cenário que tem se confirmado com a profusão de eventos como a Festa Literária Internacional de Paraty – Flip (criada em 2004), o interesse das editoras em pegar carona na fama de cantores e subcelebridades (Adriana Calcanhoto, Lirinha, padre Marcelo Rossi, Gabriel O Pensador, Bruna Surfistinha, Jean Willys) para vender livros, o peso de escritores bons de palco, como Marcelino Freire e Fabrício Carpinejar, e o aparecimento de casos curiosos como Barbú, escritor argentino que, acompanhado de uma fotógrafa, se fantasia de macaco para divulgar seus livros pelas ruas de Buenos Aires, sob o slogan: “O primeiro gorila escritor”.
SOB O DOMÍNIO DOS LEITORES
Para escrever Os anjos de Badaró, Mario Prata precisou acoplar seu computador a quatro telas. Na primeira, ele escrevia; a segunda reproduzia a visão que os leitores tinham do site; e a terceira exibia o medidor de audiência, que era atualizado a cada três minutos. Dados que se cruzavam com as informações da última tela, aberta na seção Palpite do site, na qual os leitores podiam escrever, opinar e interagir com o autor. Ao término da empreitada, mais de 800 mil palpites foram contabilizados.
Foto: Divulgação
Apesar do número, o autor afirma que a influência deles foi pequena. Ele reconhece que a história ficou mais romântica por conta do público feminino e que a trama ficou mais leve (além da prostituição, a narrativa envolveria tráfico de drogas) devido ao acesso de crianças. Sugestões de detalhes como o vinho bebido pelos personagens também foram acatadas e alguns nicknames dos internautas foram usados para batizar personagens (como a Frau Cyrene, por exemplo, cuja inspiração veio do apelido da Flávia Cintra, a Frau).
TROCAS
Interferências desse tipo, no entanto, não são exclusivas do meio digital, elas também se apresentam nas outras narrativas do autor, como James Lins (1994) e Purgatório (2007), publicada como folhetim nO Estado de S.Paulo. Segundo Pierre Lévy, a interatividade se dá quando cada usuário tem o poder da criação, modificando o material diretamente. No caso de Os anjos de Badaró, os leitores não podiam modificar o texto; no máximo, opinar e sugerir mudanças. Por outro lado, o site se tornou um espaço de convivência. “Eles nunca tiveram pretensão de dar palpites, eles queriam conversar entre eles, virou uma farra, um motivo para se encontrarem durante seis meses. Eles se reuniam, se encontraram numa fazenda, iam à churrascaria”, explica Prata.
Mas o que era apenas um pretexto de encontros para os leitores, logo se transformou numa experiência criativa. “Mario Prata sugeriu que nós escrevêssemos, pois nos achava inteligentes e criativos. Fez um concurso e pediu pra que a gente escrevesse crônicas. A cada semana, ele escolhia os vencedores do período. O prêmio? Um livro editado pela TV1, totalmente patrocinado, com prefácio de Mario Prata”, lembra Maria Cremasco, uma das leitoras mais assíduas da página e que participou das nove antologias publicadas pelo grupo Os Anjos de Prata.
O desdobramento de Os anjos de Badaró é representativo do poder de mobilização da internet. Reações desse tipo ganharam força no ambiente virtual, com a web se mostrando um ambiente propício para a formação de comunidades voltadas à discussão literária e à ramificação das obras através da criatividade dos leitores.
Quando as criações se desenvolvem sobre os pilares de universos ficcionais já existentes, propondo novos enredos a uma obra, o fenômeno é chamado de fandom (domínio do fã). “Antes existiam fanzines, fãs vestidos como personagens (cosplay), convenções de fãs; agora existe tudo isso de forma muito mais especializada: fanfics, fanvideos, fanhits, fanarts, e cada vez mais os fãs apresentam novidades, à proporção que surgem novas ferramentas na net”, compara a pesquisadora Fabiana Moés Miranda, mestre em Teoria da Literatura que, na sua dissertação, se dedicou ao tema do fandom.
Ela defende que a prática modifica a visão do leitor como mero receptor, possibilitando-lhe ocupar o papel de criador. “O leitor aprende e apreende. O leitor busca informações e recursos para se apropriar do texto que leu. Não é mais uma questão de leitura ativa ou passiva; dizer que se recria a cada leitura é fácil, mas não é fácil escrever o que se sentiu e sobre o que gostaria de ver escrito”, analisa Fabiana. O que, por consequência, lança o desafio aos estudos literários: “de enxergar a leitura não como finalidade, mas como meio para novas experiências no universo do leitor”.
THIAGO CORRÊA, jornalista, mestrando em Teoria Literária.