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Com a palavra, o palavrão

Cada vez mais presentes no cotidiano e, muitas vezes, alvos de cruzada moralista, os “nomes feios” têm mais a ver com a natureza humana do que as tentativas de interdições pretendem encobrir

TEXTO Gilson Oliveira

01 de Novembro de 2012

Imagem Nelson Provazi

Uma incômoda pergunta pode surgir ao iniciar-se uma matéria sobre o palavrão para uma publicação não especializada em pornografia ou assuntos similares: como usar exemplos? Como utilizar “palavras cabeludas” – mesmo com a exclusiva finalidade de ilustrar ou esclarecer aspectos do texto – sem descontentar os leitores mais sensíveis ou, antes disso, despertar a ira do editor? A questão, no entanto, desaparece mais rapidamente do que surge. Pelo simples fato de que não é necessário exemplificar. Basta substituir a palavrada por pontinhos ou colocar apenas as iniciais que a maioria das pessoas conseguirá captar a mensagem. Afinal, não são poucos os seres humanos que possuem um amplo e diversificado repertório dos chamados termos de baixo calão.

“O mundo inteiro diz palavrão: homens, mulheres, velhos, moços, crianças, ricos, pobres, em russo, em chinês, em croata, em todos os idiomas”, afirma o escritor e etnólogo Mário Souto Maior (1920-2001), autor do Dicionário do palavrão e termos afins, obra considerada a mais completa do gênero em língua portuguesa, por reunir cerca de três mil “termos chulos” colhidos em todas as regiões do Brasil. Quantidade que deve ter decepcionado os que acreditavam que o brasileiro era o povo mais chegado a uma palavrinha obscena.

Como destacou o próprio Souto Maior, o livro O sexo na linguagem popular, publicado na Alemanha por Ernst Borneman, registra mais de nove mil palavrões, número semelhante ao contabilizado por uma obra similar lançada na França. Já na Inglaterra, foi editado, há alguns anos, um livro que, se não possui a mesma quantidade de “termos torpes”, tem um espírito bem globalizado, o Dicionário de insultos em cinco línguas, cuja apresentação diz: “O primeiro guia prático destinado expressamente a turistas que têm de lidar com bagagens perdidas, reservas malfeitas, café frio, mau serviço e contas exorbitantes”. E cresce, no mundo inteiro, o número de obras especializadas no assunto. No Brasil, uma das últimas, em formato bilíngue (português e inglês), é Dicionarinho do palavrão & correlatos, do poeta Glauco Mattoso.


Não existe torcida que, durante um jogo, não solte um palavrão. Foto: Gabriel Uchida

Um ponto comum à maioria dessas publicações – incluído o dicionário de Souto Maior, lançado originalmente em 1980, depois de seis anos censurado pelo regime militar – é a boa receptividade junto aos intelectuais. “Um dicionário de gíria proibida é também importante do ponto de vista etnológico e etnopsicológico”, disse Ernest Liber sobre a publicação alemã. À época do seu lançamento, Carlos Drummond de Andrade, em artigo no Jornal do Brasil, saudou com entusiasmo a pesquisa de Souto Maior, afirmando que o autor, embora considerado um pornógrafo pelos censores, “é um dos mais qualificados estudiosos da cultura nacional em seu aspecto de criação popular, de riquíssima significação”.

Mas... em qual país se fala mais palavrão? Pergunta difícil de responder, até porque, como disse Souto Maior, a cada dia surgem nomezinhos pouco pronunciáveis em todas as partes do planeta, o que levou o pesquisador pernambucano a considerar o seu dicionário uma obra eternamente aberta, um trabalho ao qual, ao longo dos anos, sempre poderão ser incorporados novos termos. O que se pode afirmar, no entanto, é que, em escala mundial, a pornografia – da qual o palavrão é apenas um dos mais desbocados componentes – é algo que vem, cada vez mais, circulando sem “tarja preta”.


O Dicionário do palavrão e termos afins, de Mário Souto Maior, é a mais completa
obra do gênero em português. Foto: Reprodução

TURPILÓQUIOS
Seja por uma exagerada euforia decorrente do fim da censura militar – semelhante ao forte vapor que escapa ao se abrir uma panela de pressão; seja devido à revolução ocorrida nos campos dos costumes e da sexualidade – que teria grande influência das teorias de Freud e ganhou considerável impulso, a partir da década de 1960, com o movimento hippie e outras manifestações da contracultura; seja pela soma desses dois fatores e outros mais, a verdade é que nas últimas décadas se fortaleceu uma mentalidade diferente em relação aos tabus, o que teve grande reflexo sobre a linguagem antes considerada obscena e transgressora. “As diversas aberturas do comportamento social, sobretudo o relaxamento de normas de conduta moral, favorecem a expansão dos chulismos”, diagnostica o linguista Francisco da Silva Borba, autor do Dicionário de usos do português contemporâneo.

Bem, seja qual for o motivo, inquestionável é que o palavrão e a pornografia em geral estão mais presentes nos mais variados espaços da sociedade. Podem ser facilmente vistos – e ouvidos – nas histórias em quadrinhos, filmes, vídeos, revistas eróticas, música popular, publicidade e rádio. Por essas e outras, impressiona o envelhecimento de observações como a de Milan Kundera, autor de A insustentável leveza do ser: “É curioso: dizemos palavrão desde a manhã até de noite, mas se ouvimos no rádio uma pessoa conhecida e respeitada pontuar suas frases com ‘essa gente é um pé no saco’, ficamos um pouco decepcionados”.

Hoje, até mesmo os dicionários tradicionais, uma das últimas fortalezas da resistência às palavras chulas, renderam-se aos turpilóquios (sinônimo de palavrão com a cara do dito cujo), como demonstram trabalhos de Aurélio Buarque de Holanda, Silveira Bueno e Antônio Houaiss, que, em 2001, dicionarizou também vocábulos que constituem verdadeiros palavrões e que, como a evolução da ciência e da medicina, se tornarão cada vez mais comuns, a exemplo de pneumoultramicroscopicossilico-vulcanoconiótico (46 letras!), “doença pulmonar causada pela inalação de poeira de vulcão”.


Nas histórias em quadrinhos, chulismos são representados por ícones. Imagem: Reprodução

A própria televisão, antes altamente vigiada, tem sido um instrumento desse processo de banalização de palavrinhas nem um pouco angelicais, como se pode comprovar em programas que ocupam os mais variados dias e horários da grade televisiva, como Domingão do Faustão e, principalmente, os humorísticos, a exemplo do CQC e Pânico. E pensar que, há pouco tempo, tinha gente que ficava corada depois de pronunciar em público palavras como “camisinha” e “menstruação”... Aliás, muitos vocábulos, mesmo sem qualquer carga obscena, eram evitados como se fossem palavrões, a exemplo de “câncer”, normalmente representado pela abreviatura “C.A.”, e “diabo”, substituído por “diacho”.

Na área cinematográfica, inusitado é um tipo de produto voltado para o público religioso, que, mesmo sem palavrões, é considerado pornográfico. É o que registra o blog Sétimo Dia, ligado à Igreja Adventista, no artigo Pornografia: o novo ramo da indústria gospel: “A indústria gospel resolveu investir na produção de filmes eróticos evangélicos. (...) Para se diferenciarem da pornografia tradicional, todas as obras possuem algumas regras de conduta: os protagonistas dos filmes são casais – marido e mulher mesmo – na vida real, todas as cenas seguem preceitos do sexo cristão – e tem a religião como princípio. Mas não pense que é somente isso. Há também sex shops online criadas para apimentar a relação de acordo com preceitos da Bíblia, mas que na prática oferecem os mesmos produtos das outras sex shops – o que muda é só o nome”.


Para Nelson Rodrigues, não existiria futebol sem nome feio. Foto: Reprodução

Uma grande “contribuição” para a disseminação da pornografia (e da pornofonia) é a internet, com um sem-número de opções para quem estiver a fim de curtir uma safadezazinha. Foi ela que difundiu, por exemplo, a existência de uma cidade cujo nome é, nada mais, nada menos, que... PQP! Não assim, com abreviatura, mas escrito por extenso, obviamente. Divulgado através de e-mails, o local, como era de se esperar, não existe, o que ficou comprovado pelas pesquisas de vários internautas. Quer dizer, não existe no plano concreto, mas já foi construído, como uma espécie de “Pasárgada dos pornógrafos”, no imaginário de muitos brasileiros.

É também na “grande rede” que pode ser encontrada uma crônica jornalística – atribuída a vários autores, como Millôr Fernandes, Luís Fernando Veríssimo e Arnaldo Jabor – que faz verdadeira apologia da “pouca vergonha verbal”: O direito ao palavrão. Diz o texto: “Os palavrões não nasceram por acaso. São recursos extremamente válidos e criativos para prover nosso vocabulário de expressões que traduzem com a maior fidelidade nossos mais fortes e genuínos sentimentos. É o povo fazendo sua língua. Como o latim vulgar, será esse português vulgar que vingará plenamente um dia”. Interessante assinalar que “latim vulgar” era a expressão usada pelos romanos para depreciar as modificações que os bárbaros (vistos como inferiores) introduziram no “latim clássico”. Modificações das quais surgiriam várias línguas, como o português, o francês, o espanhol e o italiano.


Foi na internet que a cidade imaginada ganhou forma. Foto: Reprodução

Uma das poucas áreas não atingidas pela avalanche pornográfica talvez seja a do futebol. Isso, pelo simples fato de que não havia mais espaço, nem na geral nem na arquibancada, para o ingresso de mais palavrões. “Retire-se a pornografia do futebol e nenhum jogo será possível. Como jogar ou como torcer se não podemos xingar ninguém? (...) o craque brasileiro não sabe ganhar partidas sem o incentivo constante dos rijos e imortais palavrões da língua. Nós, de longe, vemos os 22 homens correndo em campo, matando-se, agonizando, rilhando os dentes. Parecem dopados e realmente o estão: o chamado nome feio é o seu excitante eficaz, o seu afrodisíaco insuperável”, já dizia, há muitos anos, o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues.

Como normalmente acontece, a radicalização de uma tendência costuma trazer o seu oposto. Nos Estados Unidos, um exemplo dessa dialética é o movimento Boca Limpa, que tem entre os líderes o consultor James O’Connor, que, em sua cruzada moralista, criou um decálogo antipalavrões, que tem, entre outras, as seguintes recomendações: “Reconheça que falar palavrão causa estragos. Você não ganha nenhum argumento nem prova inteligência”; “Comece eliminando os palavrões casuais – finja que a sua avó ou a sua filha estão sempre ao seu lado”; “Se você estiver preso no trânsito, em vez de xingar a mãe do motorista da frente, pense nas suas tarefas do dia”. 

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