Arquivo

Peleja: Rodrigo Domit x Eduardo Sterzi

É adequado estabelecer critérios morais em editais de criação e premiação literárias?

TEXTO Revista Continente

01 de Outubro de 2012

Imagem Janio Santos

Depois que grandes fomentadores apresentaram editais com restrições de ordem moral às obras a serem inscritas, o debate sobre a pertinência desse tipo de pré-julgamento mostrou antagonismos. Grande parte dos escritores e críticos, assim como Eduardo Sterzi, enxergam esse tipo de avaliação como um equívoco, mas alguns compreendem a cautela das instituições – é o caso de Rodrigo Domit.

RODRIGO DOMIT
Escritor e editor do blog Concursos Literários



Os critérios morais são frequentes nas definições
do que é publicável por editoras e nos regulamentos de concursos literários organizados por instituições particulares ou públicas, mas ganharam destaque recentemente devido à inclusão de restrições no edital das bolsas de criação literária da Fundação Biblioteca Nacional.

Nas empresas privadas, os editais são revisados pelos departamentos jurídicos e de marketing, a fim de resguardar a empresa de possíveis processos ou crises institucionais. Atualmente, se uma empresa associa sua marca a qualquer material considerado ofensivo, em poucos minutos circulam pelas redes sociais comentários negativos e ameaças de retaliações. Sendo assim, opta-se por uma censura prévia, para evitar que a empresa venha a sofrer as consequências da publicação e tenha sua imagem associada a conceitos vistos pela sociedade como impróprios. Em outros casos, estabelecem-se restrições porque os textos serão publicados em material destinado a leitores de variadas idades. Apesar de “moralistas”, os concursos do Sesc-DF e das Livrarias Curitiba estão entre os mais concorridos do país e são reconhecidos pela seleção de textos de muita qualidade. No caso dos editais da FBN, parte dos critérios justifica-se pela legislação. Seria absurdo se fosse publicada com verba pública uma obra que caracterizasse promoção política e outros crimes – enfatizo o termocaracterizar! É indefensável, no entanto, o seguinte trecho: “dano à honra, à moral e aos bons costumes de terceiros e da sociedade”. A subjetividade dessas palavras abre espaço para todo e qualquer questionamento de todo e qualquer indivíduo ou instituição que se sintam ofendidos. Se, por um lado, avançamos na defesa de alguns direitos, por outro, mais especificamente na área das artes, esbarramos na incapacidade de separar a expressão artística do crime de opinião: uma coisa é publicar texto que se caracterize como crime, outra é retratar, através da literatura, algum aspecto da sociedade atual tido como abominável, mas que inegavelmente existe. Apesar da discussão, editoras, premiações literárias e instituições fomentadoras nunca foram o caminho preferencial para transgressões. E, felizmente, a boa literatura sempre conquistou e continuará a conquistar espaços alternativos para publicação e circulação.

EDUARDO STERZI
Escritor, crítico e professor de Teoria Literária na Unicamp



Repugna, mas não surpreende que editais
de criação literária e prêmios de literatura tenham passado a adotar critérios morais para a desclassificação de autores e obras. Até mesmo editoras comerciais começaram a se valer de tais critérios, conforme se descobre em entrevista recente de um dublê de escritor e editor para a Folha de S.Paulo, na qual esse diz que o principal fator a determinar a contratação de um livro na coleção que dirige, para além do “apelo comercial”, seria a “índole do autor”, sua “ficha limpa”. A adoção de critérios morais pode explicar-se, em parte, por certo conservadorismo, muitas vezes de matriz religiosa, crescente no conjunto da sociedade brasileira. Contudo parece-me que há outra explicação menos generalizante. A sobreposição de critérios morais aos artísticos é coerente com os lugares que nossas instituições têm reservado às artes, não só à literatura, nos dias de hoje. Por um lado, a literatura é encerrada na esfera do espetáculo, incluindo-se aí os concursos e premiações, assim como feiras, festas e festivais ditos “literários”, os quais são, antes de mais nada, autocelebrações do poder institucional de seus patrocinadores. Por outro, a literatura é capturada na esfera pedagógica, subordinando-se ao estudo de componentes suas – a língua e a história – a que, no entanto, não se pode reduzir sem deixar de ser o que é. E o que é a literatura? Mais exatamente: o que é a literatura, quando não se deixa sequestrar pelo espetáculo e pela educação? Ora, se há algo que define a literatura a partir da modernidade (e, lembremos, a própria palavra literatura só passa a existir, em seu sentido forte, com os primeiros modernos: os românticos) é sua negatividade. Negatividade especialmente em relação aos demais discursos sociais, que ela ao mesmo tempo absorve e põe em questão; mas, mais amplamente, negatividade em relação à sociedade e sua moral sempre hipócrita, em relação à história e seus vultos de pés de barro, seus massacres silenciados, em relação a todas as pretensões de verdade única, definitiva. A literatura, experiência extrema da negatividade da palavra em relação à vida como ela é, revela o vazio e o avesso dos grandes nomes (Brás Cubas, por exemplo), das grandes palavras (digamos: Ordem e Progresso). Para qualquer escritor autêntico, portanto, talvez não haja maior reconhecimento que a desclassificação. O que, porém, de modo algum deve diminuir a vergonha, que, frequentemente, não se distingue da rotina das instituições. 

veja também

Livros não são para dar lição, mas para imaginar

Chiclete: Um doce grudado à cultura pop

Petrolina: Imponência neogótica