Hermilo lê a carta em voz alta para o grupo que montava a peça – diretor e atores – e pede para que Pimentel escreva a Osman justificando suas intenções. “Cada macaco no seu galho”, começa a argumentação do diretor. “Você é um literato, escreve bonito e bem, mas não pensa no texto em função de um espetáculo teatral. E é sob este prisma, o de espetáculo, que eu vejo qualquer texto de teatro. E não se vá dizer que me faltam condições para isso, como ator e diretor atuante, a experiência e tarimba resultantes de um longo trabalho, não gabinetes fechados mas em contato com o palco e com o povo, falam por si sós (…) Osman amigo, literatura é uma coisa; teatro vivo é outra bem diferente e v. sabe disso”. Ao comentário de Pimentel, Osman defende mais uma vez seu texto: “Só vendo, eu poderia dizer se sua concepção de espetáculo comunica mais do que a minha. Posso no entanto afirmar que ela não faz o meu texto mais avançado, e sim submisso”.
Ao que tudo indica, por esses registros epistolares, na concepção de Osman, Pimentel também avançou o sinal na comédia. Nas fotos da montagem – expostas no hall do teatro, junto com cópias das correspondências trocadas – vemos os personagens em figurinos exagerados, interagindo com parafernálias automobilísticas, tudo com um ar farsesco. Mas é escusável a interpretação cômica, já que o humor satírico é o ponto forte da peça, a despeito de o lado dramático ter um papel muito importante. É que Auto do salão do automóvel se trata de um daqueles textos que só podem ser descritos com adjetivações dúbias – irônico, absurdo, esquizofrênico –, apontando diversos caminhos de entendimento.
Outra particularidade é o formato da peça, não dividida em três atos, como de costume, mas em cinco partes (quase esquetes), e não havendo uma narrativa precisa e lógica, mas apresentando, em cada parte, personagens diferentes em situações distintas, apesar das motivações parecidas. Esses são, na sua maioria, figuras não identificadas pelo nome, mas pela função: guardas de trânsito, pedestres, ciclistas etc. Em decorrência disso, ficamos diante de personagens cujo principal “estar no mundo” é o desempenho do seu papel social. E não obstante transmitirem eloquentemente esse discurso de classe, triunfam também ao levar para o espectador um diálogo subjetivo/interior bem elaborado. São pessoas com o destino traçado, controladas por uma força maior e condenadas à inescapável solidão dos centros urbanos, mas mesmo assim são indivíduos, com anseios e a ilusão latente da escolha.
Segundo o diretor Kléber Lourenço, essas características advêm da predileção estética de Osman, embasada no teatro épico, e também nas referências aos autores do teatro do absurdo, como Brecht e seu precursor Erwin Piscator. “Osman brinca com a forma lírica e dramática em cima da estrutura épica”, comenta. “Tem personagens que conversam, outros que só narram, outros que apresentam um universo poético muito particular. Então, já é mais próximo dos romances. Osman primava muito pela palavra, a arte deveria ser um local a serviço da palavra. Queria um espetáculo no qual o texto pudesse ser escutado, mas também lido de alguma maneira”, explica.
Para a nova montagem, Kléber acredita ter sido mais fiel ao original. “Osman ficou um pouco assustado com a interpretação de Pimentel. Ele era escritor, Pimentel, encenador. O desafio para mim foi tentar entender esses dois lados: o escritor querendo ver a literatura no palco – e esse é o trunfo de Osman, as palavras –, e, ao mesmo tempo, o encenador querendo fazer com que essa literatura virasse ação. Como manter esses dois desejos?”, põe em questão. “É evidente que fizemos algumas adaptações” – o espetáculo é apoiado por projeções de imagens e sonoplastia moderna – , “mas o nosso, por exemplo, acontece em São Paulo, como no texto. No entanto, eu acho que isso já está muito diluído, o Recife está passando por um processo de transformação urbana grande, caminhando para um não lugar, como todas as grandes cidades do mundo, cada vez mais semelhantes. O texto acaba sendo universal, e toca numa mesma realidade social”, comenta.
ANDRÉ VALENÇA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.