Gilberto Mendes desenvolveu uma longa relação pessoal e artística com os poetas concretistas, que resultou, inclusive, em suas obras corais mais executadas: O anjo esquerdo da história (1997), sobre texto de Haroldo de Campos, e, principalmente, o Motet em ré menor (Beba Coca-Cola) (1967), sobre poema de Décio Pignatari, mais notado pelo arroto que requer de um dos coralistas e pela forma inusitada com que incorporou o último verso (“c l o a c a”) do que pelo belo tratamento polifônico renascentista que carrega consigo. Augusto de Campos também inspirou uma importante composição de Mendes, Uma foz uma fala (1994), elogiada por Marlos Nobre pelo caráter à la Poulenc.
Por sua vez, a peça coral O anjo esquerdo da história é um dos pontos altos do ativismo musical gilbertomendiano. Após ler num jornal o poema de Haroldo de Campos, que se refere ao massacre de Eldorado dos Carajás (“os sem-terra afinal estão assentados na pleniposse da terra: (...) convertidos em larvas, em mortuários despojos...”), o compositor santista logrou aproximar ambientações musicais separadas por mais de 500 anos de história: “A partir de seu caráter de coral protestante barroco, voltei para um procedimento musical renascentista, saltei muito adiante para um clima harmônico romântico wagneriano, cheguei ao politonalismo, finalizando com um rap”, descreve em Viver sua música.
Nesse mesmo livro, Gilberto Mendes explica, em suma, que sua obra como um todo faz coexistirem três compositores num só: o vanguardista, o clássico-moderno (entendido como um contemporâneo que não rompe com as tradições) e o pop, além de um quarto compositor, que se constitui de combinações dos outros três. E todos valem-se eventualmente do humor como veículo – não como objetivo, frisa – para o desenvolvimento de ideias musicais. Em Último tango em Vila Parisi (1987), por exemplo, a orquestra permanece tocando “no automático” um bem-ritmado ostinato, enquanto o regente e um casal de instrumentistas encenam um pastelão. “Com qual finalidade, senão a de rir?”, pode-se perguntar.
Talvez devêssemos aplicar esse questionamento, e tantos outros que ainda cercam a apreciação da música contemporânea, ao ouvir pelo menos um concerto inteiro de um festival como o Música Nova, fundado por Mendes em 1962 e que, este mês – aniversário do seu idealizador –, celebra sua reativação do evento, após ter sido interrompido em 2011 pela quarta vez em 50 anos.
Leia também:
"Apesar de toda a nojeira, vivemos na democracia"