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Gilberto Mendes: A vida em harmonia com a música

Compositor assimilou as principais influências estéticas do século 20, do nacionalismo e do jazz ao minimalismo e à pop art, criando um repertório anticonvencional

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

01 de Outubro de 2012

Gilberto Mendes

Gilberto Mendes

Foto Divulgação

Para Gilberto Mendes que completa 90 anos neste outubro, a felicidade encontrada na beleza musical é um ideal metafísico que passa, antes, pela estranheza e pela ambiguidade que a música venha a provocar. Tal é o que o compositor santista sublinha em Viver sua música: com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à Avenida Nevskiy (Edusp, 2008), singular caderno de memórias regido por suas experiências musicais (seja como criador, seja como ouvinte), em que a música havaiana, o blues e as big bands ocupam o mesmo lugar que as obras-primas do Barroco e do Romantismo e os experimentos da neue musik e da música-teatro.

Daí que falar de Mendes é lidar com um dos poucos compositores no Brasil cuja flexibilidade resultou em um catálogo tão compósito e anticonvencional. À exceção das peças de sua fase nacionalista, nos anos 1950, parece-nos inevitável ouvi-lo sem questionar se estamos diante de um deboche, um pastiche ou de manifestações dadaístas tardias – e mesmo na fase nacionalista, o compositor santista não era guiado pelo modalismo nordestino, como tendência até aquela década, mas pela música de rádio.

Assim, antes do Manifesto Música Nova (1963) – subscrito junto com os irmãos Régis e Rogério Duprat, o uruguaio Damiano Cozzella, o pernambuco Willy Corrêa de Oliveira, o maestro Júlio Medaglia e outros (note-se que Medaglia, os Duprat e Cozzella engajaram-se, mais à frente, no Tropicalismo) –, Mendes já havia tomado em definitivo, para si, a máxima do movimento: “Compromisso total com o mundo contemporâneo”. Por sua vez, as idas a Darmstadt, na Alemanha, em 1962 e 1968, colocaram-no em contato com os principais neuemusike da época e deram-lhe norte para suas composições mais célebres, a exemplo da Santos Football Music (1969).

A síntese das influências vanguardistas em Gilberto Mendes pode ser constatada nesse antológico happening para orquestra sinfônica, três fitas magnéticas com locuções (na voz de Geraldo José de Almeida), charanga (grupo de torcedores batuqueiros), dois regentes e participação do público, estreado em Varsóvia em 1974 por iniciativa de Eleazar de Carvalho (tendo Diogo Pacheco, o segundo regente, ensinado palavrões em português para a ingênua plateia polaca). Numa só partitura, Mendes envolveu minimalismo, microtonalismo, técnicas expandidas, música concreta, música-teatro, pop art, texturalismo... e futebol.

Curiosamente, ele chamou a obra de “divertimento alla Mozart” (de fato, a instrumentação sinfônica adotada é a de uma orquestra do período classicista) e declarou que as locuções em fita magnética, hoje em MP3, pairam sobre a textura instrumental “como um canto gregoriano”, mas é preciso um certo exercício mental do ouvinte para compreender em que sentido essas referências tradicionais estão presentes, já que não são explícitas. Outro detalhe é que metade das cerca de 45 páginas da partitura são dedicadas às instruções de execução e de leitura da notação musical empregada na obra.

Em 1975, o mesmo Eleazar de Carvalho (1912-1996) empreendeu a estreia nacional da Santos Football Music, com a Sinfônica do Estado de São Paulo e o compositor no posto de regente assistente. Na ocasião, estavam Rafael Garcia, como spalla, e sua esposa Ana Lúcia Altino Garcia ao piano, que ocupa um papel preponderante ao longo da peça. O casal veio a promover a primeira audição da obra em Pernambuco, no Virtuosi Brasil 2007 (não sem resmungos e parcial resistência do público).

CONCRETISTAS
Gilberto Mendes desenvolveu uma longa relação pessoal e artística com os poetas concretistas, que resultou, inclusive, em suas obras corais mais executadas: O anjo esquerdo da história (1997), sobre texto de Haroldo de Campos, e, principalmente, o Motet em ré menor (Beba Coca-Cola) (1967), sobre poema de Décio Pignatari, mais notado pelo arroto que requer de um dos coralistas e pela forma inusitada com que incorporou o último verso (“c l o a c a”) do que pelo belo tratamento polifônico renascentista que carrega consigo. Augusto de Campos também inspirou uma importante composição de Mendes, Uma foz uma fala (1994), elogiada por Marlos Nobre pelo caráter à la Poulenc.

Por sua vez, a peça coral O anjo esquerdo da história é um dos pontos altos do ativismo musical gilbertomendiano. Após ler num jornal o poema de Haroldo de Campos, que se refere ao massacre de Eldorado dos Carajás (“os sem-terra afinal estão assentados na pleniposse da terra: (...) convertidos em larvas, em mortuários despojos...”), o compositor santista logrou aproximar ambientações musicais separadas por mais de 500 anos de história: “A partir de seu caráter de coral protestante barroco, voltei para um procedimento musical renascentista, saltei muito adiante para um clima harmônico romântico wagneriano, cheguei ao politonalismo, finalizando com um rap”, descreve em Viver sua música.

Nesse mesmo livro, Gilberto Mendes explica, em suma, que sua obra como um todo faz coexistirem três compositores num só: o vanguardista, o clássico-moderno (entendido como um contemporâneo que não rompe com as tradições) e o pop, além de um quarto compositor, que se constitui de combinações dos outros três. E todos valem-se eventualmente do humor como veículo – não como objetivo, frisa – para o desenvolvimento de ideias musicais. Em Último tango em Vila Parisi (1987), por exemplo, a orquestra permanece tocando “no automático” um bem-ritmado ostinato, enquanto o regente e um casal de instrumentistas encenam um pastelão. “Com qual finalidade, senão a de rir?”, pode-se perguntar.

Talvez devêssemos aplicar esse questionamento, e tantos outros que ainda cercam a apreciação da música contemporânea, ao ouvir pelo menos um concerto inteiro de um festival como o Música Nova, fundado por Mendes em 1962 e que, este mês – aniversário do seu idealizador –, celebra sua reativação do evento, após ter sido interrompido em 2011 pela quarta vez em 50 anos. 

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