O fileteado surgiu por acaso, quando dois meninos que trabalhavam numa oficina de pintura de carroças – atividade requisitada nos idos de 1800 para transportes de leite, verduras, frutas e pães – decidiram burlar a convenção e enfeitar o coche de um cliente que deveria ser pintado simplesmente de cinza. Vicente Brunetti e Cecilio Pascarella, de 10 e 13 anos, realizavam tarefas subalternas, como varrer o chão, preparar o chimarrão e ir à loja de ferragens. Um dia, diante da falta do pintor, o dono da oficina perguntou se eles queriam pintar a carroça e receber no dia seguinte pelo trabalho. Os dois aceitaram a oferta e ficaram até tarde no lugar. Pintaram, correram e brincaram, crianças que eram, até que encontraram uma lata de tinta de outra cor. Resolveram, então, fazer um friso de vermelho na soleira da carroceria.
No dia seguinte, ao ver a traquinagem, o patrão deu um carão e mandou cobrir a novidade de cinza. O dono da carroça chegou no momento e sua reação foi de surpresa e satisfação. A partir de então, ao rodar pela cidade, o veículo puxado por cavalos com decoração diferente fazia propaganda daquela oficina, atraindo muitos outros clientes interessados em dar “vida” e “cor” àquele trabalho monocromático. Surgiam então duas categorias de pintor: o “de liso” e o “fileteador”.
Pinturas automotivas estão nos primórdios da história do
fileteado. Foto: Breno Laprovitera
Começou-se a acrescentar ao nome do trabalhador a atividade à qual se dedicava (distribuição de leite, pão etc.) e o endereço do seu estabelecimento na carroceria, o que era um prato farto para a nova técnica de pintura. Funcionava como uma forma de publicidade que chamava a atenção, porém, sem ocupar muito espaço. Mas era preciso inventar uma arte de decoração sem dispor de um modelo acabado.
“Assim como o tango se nutriu da canção de campo, das murgas e outras expressões, o fileteado se nutriu das formas das grades (de ferro), das decorações da arquitetura da época, dos grafismos das notas de dinheiro”, aponta o livro El filete porteño (Edições Maizal, 2004). Porém, enquanto o gênero musical se afirmava como a música do lamento, o fileteado se aproximava da celebração do trabalho e da prosperidade.
Fachada de loja do bairro de Mataderos, afastado do centro e voltado
à cultura gaúcha. Foto: Breno Laprovitera
VOLUMES
Com seu florescimento e fortalecimento, a técnica hoje reúne basicamente três elementos: desenho de folhas de acanto (usada pelos gregos e pelo exército), volume e cores contrastantes. A esses elementos foram acrescentados desenhos de fitas, a bandeira argentina, flores, laços, animais (como pássaros e dragões), molduras, entre outros. No centro, imagens de Nossa Senhora de Luján (padroeira do país e protetora dos motoristas) e do cantor e compositor de tango Carlos Gardel, assim como frases. A impressão de volume e sombra – e que concerne identidade a essa ornamentação – é dada por um verniz especial.
Provavelmente, essa arte decorativa bebeu na fonte dos letristas de origem francesa e, segundo estudos, da pintura de carretas italianas, mais especificamente sicilianas. A verdade é que, assim como o tango, desde o início, esteve associada aos migrantes humildes que chegavam ao país e buscavam uma forma de expressar sua singular experiência. Estilos, cores e desenhos foram criados à medida que os clientes pediam que não apenas um detalhe, mas, sim, que toda a carroceria fosse ornamentada. Com a evolução dos transportes, o ornamento foi levado a veículos motorizados usados para trabalhar. Primeiro os caminhões e, depois, os ônibus, chamados de coletivos pelos argentinos. Ainda hoje, grande parte da frota de ônibus portenha é adornada com filetes por dentro (próximo ao motorista e ao retrovisor) e por fora.
Um dos modos de atualização do uso do adorno tem sido a pintura corporal, esta, feita por Alfredo Genovese. Foto: Reprodução
Bairros tradicionais como La Boca, San Telmo e Boedo concentram grande parte dos fileteados, seja na placa, seja no letreiro do estabelecimento – restaurantes, lojas de ferragens –, seja como decoração interior. Mas sempre distante do que se pode chamar de burguês, ostentoso, novidade. Segundo o antropólogo Norberto Cirio, o fileteado é uma reciclagem dos bens culturais das elites voltada para as classes economicamente mais baixas. Dessa maneira, não é difícil reconhecer os desenhos de portões ou silhuetas de influência francesa, espanhola e italiana de casas e edifícios portenhos abastados, reproduzidos nos fileteados.
É assim na fachada da Esquina Homero Manzi, um bar que abriu suas portas em 1927 e se converteu em símbolo portenho. Foi reinaugurado em 2000 como restaurante e casa de show de tango com uma decoração no fileteado. “Quisemos fazer uma decoração da época em que abriu e, é claro, escolhemos essa pintura dentro e fora”, explica o gerente desse local nostálgico e carregado de história, Gabriel Perez. O trabalho foi realizado por Luis Zors, que, junto com León Untroib, Carlos Carboni, Miguel e Salvador Venturo, é considerado um dos mais importantes fileteadores.
Muitos dos desenhos são declarações de amor à cidade. Foto: Breno Laprovitera
Com uma barraca na tradicional feira de San Telmo, há 12 anos, aos domingos, Adrian Clara encontra nessa pintura seu meio de sobrevivência e conta que a demanda não é massiva e, sim, feita por um público mais seletivo. “A maior procura é dos turistas, também por causa do perfil da feira. Muitas vezes aceito encomenda aqui e levo pronta a hotéis durante a semana.”
Aprendiz do falecido mestre León Untroib, Clara começou como letrista, escrevendo em vitrines e vidraçarias, 24 anos atrás. Depois, incorporou o adorno ao seu trabalho. Ainda hoje, mostra entusiasmo pelo que faz, ao falar da técnica. “Adoro o que faço, principalmente por essa mistura de letra e desenho.” Cada uma de suas placas pode ter um preço entre 18 e 180 reais, dependendo do tamanho e do trabalho em si.
O futebol, em obra de León Untroib, e artistas do tango, por Alfredo
Genovese, são temas recorrentes. Imagem: Reprodução
Imagem: Reprodução
Brasileiras de passagem por Buenos Aires, a estudante Teane Alves e a psicóloga Priscila Palma levaram uma peça pintada pelo fileteador. “Estávamos procurando justamente algo bem diferente do que há no Brasil e adoramos esse trabalho”, diz a estudante.
ORIGEM MARGINAL
Ainda que o tango e o fileteado tenham origem similar – imigrantes e cultura urbana, popular e marginal –, essas duas expressões se desenvolveram de formas diferentes. Com o passar do tempo, o estilo musical típico da capital portenha foi incorporado pela cultura oficial, aceito pelas classes dominantes, renovou-se com alguns compositores como Astor Piazzolla e ganhou o mundo como um dos cartões-postais do país.
Já o adorno nascido nas carroças de trabalhadores manteve-se como algo marginal, chegou a ser proibido em 1975 pela ditadura militar e teve pouca ou nenhuma renovação em temática e estilo. “Hoje, o fileteado é visto nas ruas outra vez e é procurado por jovens. Existe uma inquietude em buscar algo nosso, local. Até pouco tempo, era visto como alguma coisa de segunda categoria, de forma depreciada”, opina o fileteador Jorge Molina. “Mas ainda falta uma ruptura como a que o tango fez nos anos 1960. Há pouco questionamento das bases do fileteado e é o que tento fazer com o meu trabalho, rompendo com o clássico e apostando em novas composições, como a interação que a bodypainting permite entre a pintura e a pele”, analisa. Exemplos dessa renovação florescem na exposição de mais de 40 fotografias, intitulada Argentina en la piel. A mostra esteve no primeiro semestre em Paris e desembarca neste outubro em Buenos Aires, reunindo composições de pessoas pintadas e fragmentos do trabalho de Molina.
Se essa renovação que alguns profissionais apontam é uma tendência ou simplesmente algo passageiro, só o tempo dirá. Enquanto isso, parafraseando o filme Casablanca, “sempre teremos Buenos Aires” para apreciar essa expressão decorativa única, que, através de traços e cores, resume o orgulho do trabalho e a influência dos imigrantes na cultura do país.
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