Entretanto, sua participação na Bienal amplia uma discussão que há muito toma o campo da arte, desde que ele foi “descoberto” e legitimado pelo curador Frederico Morais. Trata-se de um momento oportuno para reencontrá-lo além da visão romântica que foi sedimentada nas últimas três décadas e que nos faz enxergar o lado simplesmente pitoresco de sua biografia e o irresistível binômio arte-loucura. Sua vida certamente traz elementos incontornáveis para compreendermos sua criação, mas precisamos localizar outras questões que participaram da legitimação e da circulação de seus trabalhos.
Nascido em Japaratuba, Sergipe, em 1909, Arthur Bispo do Rosário serviu à Marinha entre os anos de 1925 e 1932, na qual foi aprendiz, grumete, sinaleiro e lutou boxe. Nos anos seguintes, trabalhou como lavador de lotações da Viação Excelsior, faxineiro e encarregado de serviços gerais de um advogado. Encontra-se bordada em um de seus trabalhos a frase: “No dia 22 de dezembro de 1938 eu vim”. Esse foi o dia em que Bispo ouviu uma voz que o mandou reproduzir o mundo, pois ele era o filho de Jesus e essa era sua missão na Terra até se reapresentar nos céus. Obedecendo à ordem divina, inicia um périplo por igrejas do centro do Rio de Janeiro até chegar ao Mosteiro de São Bento, no qual tentou apresentar-se em sua condição divina. A resposta foi o encaminhamento para o Hospital Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha, onde recebe o diagnóstico de esquizofrênico paranoico.
Considerada sua obra mais importante, Manto da apresentação foi bordado durante 30 anos, para seu encontro com Deus.
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Em 25 de janeiro de 1939, dá entrada na Colônia Juliano Moreira, local em que viveria, entre idas e vindas, até sua morte, em 1989. Entre 1940 e 1960, chegou a passar algumas temporadas fora do manicômio, trabalhando, inclusive, como segurança pessoal do senador Gilberto Marinho. No início da década de 1960, isola-se voluntariamente num quartinho do sótão da clínica pediátrica Amiu, em Botafogo, e trabalha em boa parte de sua obra (essas informações biográficas foram retiradas do livro Arthur Bispo do Rosário, século XX, organizado pelo curador do Museu Arthur Bispo do Rosário, Wilson Lázaro, em 2006).
Seu retorno definitivo à Colônia Juliano Moreira ocorre em 8 de fevereiro de 1964. Os registros da instituição dão conta de que ele recusava os remédios e não participava das oficinas de arteterapia ou de qualquer tratamento. Teve a sorte de não se submeter a nenhuma intervenção altamente intrusiva, a exemplo da lobotomia e dos eletrochoques, tratamentos comuns na época. Encontrou, na colônia, reclusão, refeições, um teto para morar e, principalmente, uma cela (precária e com infiltrações), um espaço exíguo para trabalhar (que foi crescendo com a adição de outras celas para acolher suas centenas de trabalhos), um lugar em que era possível, dentro das limitações obviamente encontradas, dar conta de sua missão na Terra. E conseguia trabalhar incessantemente. Para catalogar o mundo, apropriava-se de todo o tipo de objetos que o cercava em seu cotidiano. Oriundo de uma região em que o bordado era uma prática corrente, Bispo do Rosário mostrou desenvoltura com essa técnica desde seus primeiros objetos (as réplicas de obras usadas no filme O senhor do labirinto, de 2010, do diretor Geraldo Motta, foram feitas por bordadeiras da cidade natal de Bispo, que recuperaram o tipo de ponto usado por ele, praticamente desaparecido na atualidade). O tom azul que permeia todos os bordados advém do fio que era conseguido no destrinchar dos uniformes dos pacientes. Canecas, colheres, garfos, vassouras, sapatos, lençóis, embalagens de metal, pedaços de madeira e outros materiais que circulavam pela colônia eram recolhidos, acumulados e muitas vezes transformados para encarnar os elementos do mundo que ele desejava replicar para serem salvos, como numa espécie de Arca de Noé de signos.
Um dos muitos painéis compostos por
Bispo do Rosário com variados tipos de
objetos. Imagem: Reprodução
REVELAÇÃO
Até 18 de maio de 1980, Bispo era um desconhecido no mundo exterior, apesar de ter liderança e destaque no hospital psiquiátrico. Nesse dia, foi transmitida no programa Fantástico, da TV Globo, uma reportagem-denúncia do jornalista Samuel Weiner Filho sobre as terríveis condições em que se encontravam os quase 3 mil internos da Colônia Juliano Moreira. A matéria acontecia em meio à reabertura política do Brasil e finalização da ditadura, num momento em que a condição psiquiátrica estava sendo reavaliada e as formas de tratamento revistas. No meio do caos e do descaso, emergia o genial e louco Arthur Bispo do Rosário cercado por seus incríveis objetos.
O impacto da matéria tornou o 18 de maio em Dia da Luta Antimanicomial no Brasil e chamou a atenção do crítico de arte e então diretor do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Frederico Morais, para aquele homem iluminado. A reportagem também surpreendeu o psicanalista Hugo Denizart, que, no ano seguinte, fez uma tríade de documentários sobre a instituição, sendo um deles dedicado a Bispo do Rosário:O prisioneiro da passagem. Esse é o único documento em que há o registro de imagem e de som dele. Na entrevista, Bispo explicita suas intenções e narra como se deu o início de sua obra.
Dezenas de mensagens bordadas pelo artista,
unidas umas às outras, num eloquente cartaz.
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O início da inserção de Arthur Bispo do Rosário no mundo da arte dá-se na exposição À margem da vida, curada por Frederico de Morais no MAM, em 1982, e que aglutinava trabalhos de criadores provenientes de unidades carcerárias, asilos de idosos e instituições psiquiátricas. Nas palavras do curador “todas as pessoas independentemente de sua condição social, econômica ou cultural são inatamente criadoras” (passagem citada pela historiadora Viviane Trindade Borges, retirada do livro Cronologia das artes plásticas no Rio de Janeiro – 1816-1994, Topbooks, 1995).
Em sua tese de doutorado, Viviane Trindade Borges credita esse interesse de Morais pelas obras de marginalizados da sociedade à valorização das obras dos “loucos” pelo crítico pernambucano Mário Pedrosa, expoente máximo da crítica de arte brasileira do século 20. Em outro trecho citado por Borges em seu estudo, agora a partir do livro de Luciana Hidalgo Arthur Bispo do Rosário – o senhor do labirinto (1996), é descrito o momento em que Bispo se despede das obras, que iriam compor a mostra no MAM. Ele haveria conversado com as peças e pedido para que tomassem cuidado e não se deturpassem mundo afora. Perguntado se não gostaria de visitar a exposição, teria respondido: “Meus olhos não estão preparados para ver aquilo”. Ao psicanalista Hugo Denizart, um dos organizadores da mostra, sempre “perguntava se as obras estariam se comportando direito, gostando da nova casa”. E, de fato, Arthur Bispo do Rosário nunca viu suas obras habitando seu novo lar: um museu de arte.
Como não lembrar de Marcel Duchamp, diante de tal objeto?.
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O intuito de Frederico Morais era fazer, em seguida, uma exposição individual de Bispo ocupando um andar inteiro do museu, mas o agora artista não aceitou. A individual Registros de minha passagem pela Terra só pôde ocorrer em 1989, no Parque Lage, após a morte dele. A morte física “do filho de Jesus” deu espaço à vida artística de Arthur Bispo do Rosário, que foi ganhando concretude nos 10 anos subsequentes. É aí que o currículo dele equipara-se ao de artistas de grande projeção internacional. Em 1995, ele é escolhido pelo curador Nelson Aguilar para representar o Brasil na 46a Bienal de Arte de Veneza, juntamente com o artista Nuno Ramos. Sua participação é recebida com grande repercussão na imprensa especializada e seu nome passa a rodar o mundo ocidental.
Em 2001, suas obras são mostradas na Fondation Cartier de Paris, dentro de uma mostra internacional de arte popular. Nessa época, seu trabalho transita por museus em várias partes do mundo. Por vezes, como um representante da “arte popular” de alto nível, por outras, como membro do clube da arte contemporânea. Voltando um pouco no tempo, podemos ressaltar a inclusão de Bispo do Rosário na mostra Por que Duchamp?, concebida pelo artista e gestor cultural Ricardo Ribenboim para o Paço das Artes, mas concretizada com recursos do Itaú Cultural. A dinâmica da proposta era convidar críticos de arte que apontariam artistas para dialogarem com o legado de Duchamp. Em meio a escolhas naturais de nomes consagrados da arte contemporânea brasileira feitas por alguns especialistas, tais como Cildo Meireles, Nelson Leirner e Waltercio Caldas, a crítica Lisette Lagnado escolhe Arthur Bispo do Rosário. Ela engendra uma análise comparativa entre esse artista e Duchamp, apontando para o engenho institucionalizante do mundo da arte.
A partir de objetos que recolhia e guardava,
artista realizava obras de composição sofisticada.
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INTENCIONALIDADE
E, de fato, Arthur Bispo do Rosário é a exceção que confirma a regra - pelo menos as regras do mundo da arte. Desde que as transformações desse campo de conhecimento no século 20 propiciaram uma tamanha abertura de possibilidades do que pode vir a ser considerado arte, ultrapassando a obrigatoriedade da beleza e da mimese, o processo de legitimação recaiu para a intencionalidade do artista. É arte aquilo que o artista nomeia como tal, premissa que irrita profundamente os não iniciados no vocabulário da arte contemporânea e os defensores de uma arte expressiva.
Entretanto, não podemos ignorar que o estabelecimento de convenções do que é aceito como arte inicia-se com a legitimação do próprio artista. Antes de inscrever A fonte (1917), mictório que foi invertido, assinado com o pseudônimo de R. Mutt, na História da Arte, o tal Marcel Duchamp já ostentava o título de artista. Aliás, ele havia chegado a Nova York, fugindo da Primeira Guerra Mundial, e causava frissonentre seus pares pelo quadro Nu descendo a escada (1912). A fonte virou escândalo e estremeceu o campo da arte justamente por ser feita por um artista famoso.
Chapas de metal perfuradas pelo artista ganham feição construtivista.
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Antes de fecharmos o raciocínio sobre a singularidade de Bispo no mundo da arte, é importante recorrermos a um dos pensadores mais influentes da arte atual. Como lembra o teórico Boris Groys, originalmente, a arte tornou-se arte por meio de decisões dos curadores mais do que as de artistas. O pensador pontua que, antes do gesto iconoclasta e legitimador de Duchamp, “os primeiros museus, que passaram a existir no início do século 19 e que foram se estabelecendo no decorrer do mesmo século como consequência das revoluções, guerras, conquistas imperiais e pilhagem das culturas não europeias” já haviam pinçado para suas coleções todos os objetos funcionais que consideravam bonitos (e que previamente eram usados em vários rituais religiosos, por exemplo).Ao apartarem esses objetos de seus contextos e “desfuncionalizá-los”, tornaram-nos objetos de pura contemplação.
Portanto, os curadores já haviam “criado” arte. O gesto legitimador de Frederico de Morais é intrínseco ao seu papel no campo da arte. Como qualquer criação cultural, arte não tem essência, mas historicidade: estruturas históricas que vão ressignificando conceitos e campos de conhecimento que vão tecendo suas regras e consensos.
Apesar da pronunciada e clara não intenção de fazer arte, e sendo a intencionalidade e a consciência do artista os pontos mais importantes da inscrição de um trabalho ou procedimento no universo do arte, Bispo do Rosário foi escolhido pelo mundo da arte para ser um de seus participantes mais notáveis. E não é difícil para um conhecedor de arte contemporânea listar a “árvore genealógica” artística de Arthur Bispo do Rosário. Seus objetos têm alta qualidade formal e incitam conceitos que encontram similitudes na produção de artistas como Robert Rauschenberg, Claes Oldenburg, Yves Klein, Christian Boltanski, Hélio Oiticica e Arman, entre outros. Todavia o mais importante para sua inscrição é a reverberação de seu trabalho para gerações mais recentes da arte brasileira. A real importância de um artista é medida por sua repercussão nos que surgem posteriormente. E não são poucos os filhos de Arthur Bispo do Rosário que participam das esferas mais influentes da arte internacional.
CRISTIANA TEJO, curadora, jornalista e doutoranda em Sociologia pela UFPE.