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Alagoas: Marcas da colônia na Rota do Imperador

Cidades de Piranhas e Penedo revivem percurso feito por Dom Pedro II em 1859, cujo roteiro revela um preservado patrimônio histórico às margens do São Francisco

TEXTO E FOTOS AUGUSTO PESSOA

01 de Outubro de 2012

Igreja de São Gonçalo foi edificada em 1758, com fachada em pedra calcária. Suas torres e decoração são do século 19

Igreja de São Gonçalo foi edificada em 1758, com fachada em pedra calcária. Suas torres e decoração são do século 19

Foto Augusto Pessoa

Quem chega a Piranhas, uma pequena cidade alagoana erguida às margens do Rio São Francisco, tem a nítida sensação de que o tempo parou. O silêncio domina as poucas ruas enladeiradas, construídas no século 18, e parece dialogar com as águas densas do Velho Chico. Tombada pelo Iphan, desde 2003, como Patrimônio Histórico e Paisagístico Nacional, a cidade foi a primeira dessa região a receber o título, e o merecimento pode ser verificado em cada casa que compõe um dos mais belos casarios coloniais do interior do país. Tal riqueza fez com que Piranhas fosse incluída no roteiro turístico conhecido como Rota do Imperador, um caminho que segue os registros que Dom Pedro II deixou em seu diário durante a viagem que fez pelo Baixo São Francisco (como é conhecido), em 1859, a bordo de navios a vapor e em lombo de burros e cavalos. O trajeto percorre boa parte do Estado de Alagoas, revelando uma sequência de cidades históricas construídas em plena caatinga e destaca Piranhas (encravada no semiárido) e Penedo, onde as águas encontram o mar depois de correr por mais de dois mil quilômetros entre as curvas do mais importante rio do Nordeste.


Transporte, alimentação e turismo são usos frequentes do grande rio

A história, no entanto, deixou marcas ali, que vão além dos prédios de arquitetura inglesa e portuguesa. Foi em Piranhas, por exemplo, que as cabeças de Lampião e de seus cangaceiros foram exibidas em público pela primeira vez, após a emboscada que pôs fim à ação de Virgulino, pelo sertão afora. As cabeças foram exibidas como troféus na escadaria da prefeitura de Piranhas e a fotografia acabou rodando o mundo e espalhando a notícia de que a polícia, enfim, teria capturado o temido cangaceiro. Várias peças da época do cangaço estão expostas no Museu do Sertão, montado no prédio da antiga estação ferroviária, construída em 1879, e que tem em seu quadro de funcionários um dos policiais que participaram da emboscada na Gruta de Angico. A beleza criada pela junção das paisagens natural e construída fez de Piranhas uma das locações mais cobiçadas do cinema nacional. Lá, foram rodados Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues (1979), Baile perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (1997), e dezenas de curtas que tomam partido da onipresente luz solar e do peculiar cenário do entorno.


Em estilo neoclássico, o prédio da estação é bem-conservado e
hoje abriga o Museu do Sertão

A parte histórica de Piranhas, conhecida como “Piranhas de Baixo”, resguarda tesouros da arquitetura colonial. A Igreja de Nossa Senhora da Saúde exibe em sua fachada as cores vibrantes que predominam em todo o casario tombado. O Cruzeiro, pintado de vermelho, contrasta com o verde da capela, que, por sua vez, parece saltar contra o céu azul. A variação de cores também pode ser apreciada na praça central da cidade, com suas curiosas esculturas de peixes e as dezenas de casinhas coloridas ao redor. Dom Pedro II teria ficado encantado com esse trecho do rio, que corre, desde Piranhas, por 208 quilômetros até encontrar as águas salgadas do oceano na deserta Vila de Piaçabuçu. Em Penedo, a primeira cidade na viagem feita pelo imperador naqueles meados de século 19, bem próxima da foz, a arquitetura colonial e a força do rio se complementam, numa configuração que começou a existir durante as demarcações das capitanias hereditárias pelos portugueses, ainda em 1535. Um século depois, a localidade seria dominada pelos holandeses, que ali ergueram fortes e igrejas, hoje tombados pelo seu valor histórico e artístico.

Na Igreja de Nossa Senhora da Corrente – construída em 1765, para ser a capela particular de uma família de abolicionistas que colaboravam com a fuga de escravos, falsificando cartas de alforria e escondendo os refugiados na própria nave –, tem-se uma amostra do valor do patrimônio de Penedo. O piso foi trazido da Inglaterra e os azulejos, que cobrem a parede, importados de Portugal. A fachada da construção e o altar principal têm características barrocas, enquanto que os altares laterais são neoclássicos. Parte da madeira que faz a sustentação da igreja é coberta de ouro. A nave se destaca durante o pôr do sol e revela uma paisagem encantadora para quem tem disposição de subir as escadas e chegar até o campanário, no qual sinos gigantes avisam os rituais e ecoam pelo vale.


Num passeio de barco pelo São Francisco, observam-se exemplares da arquitetura, como a capela em meio à vegetação

Dali até onde o rio se encontra com o mar são apenas 30 quilômetros, percorridos em três horas, a bordo de tradicionais embarcações ornamentadas com as famosas carrancas. No segundo domingo de janeiro, Penedo festeja o Bom Jesus dos Navegantes, quando a cidade reúne embarcações de diversas partes do Rio São Francisco. Os marinheiros enfeitam os barcos e navegam pelas cidades numa espécie de procissão fluvial. Romaria semelhante foi realizada por Dom Pedro II, em 1859.

Em Entremontes, um povoado vizinho a Piranhas, o destaque é o artesanato de renda produzido por mulheres numa tradição transmitida entre gerações. Desde cedo, as meninas aprendem a bordar, com uma técnica conhecida como “boa-noite” e que, segundo especialistas, não existe em nenhuma outra parte do mundo.


Da torre de uma das igrejas que compõem o patrimônio histórico
de Penedo, a vista do rio

O projeto Caminhos do Imperador partiu do pesquisador Jairo Oliveira e das turismólogas Ana Rogatto e Lúcia Regueira, integrantes do Arranjo Produtivo Local, formado por empresários do turismo e que conta com o apoio do Sebrae e do governo de Alagoas. A viagem de Dom Pedro II pelo Baixo São Francisco, na verdade, foi o acontecimento que disparou o desenvolvimento de toda a região, já que a ilustre visita acabou instalando a navegação a vapor e possibilitou que o rio se tornasse navegável com mais facilidade. O diário do imperador é considerado o primeiro guia turístico da região. Ao todo, foram transcritas 43 cadernetas no livro Viagens pelo Brasil, organizado por Lourenço Lacombe, ex-diretor do Museu Imperial de Petrópolis, que observa no prefácio: “A verdade é que viajar faz parte do ofício de governar”.


Onipresença do rio na paisagem de Penedo, uma das mais importantes da Rota do Imperador

Na viagem de 10 dias que Dom Pedro II fez de Penedo até Piranhas, muitas paisagens foram registradas. Hoje, a bordo de barcos ou mesmo de carro pelas estradas que ligam as duas cidades, o visitante consegue imaginar o impacto que esse território deve ter causado ao jovem imperador. Igrejas, museus, praças, trilhas e cachoeiras compõem um roteiro que supera a simples contemplação. Um importante capítulo da história do Nordeste brasileiro pode ser visto nas pequenas comunidades que surgiram às margens do velho rio.


Com baixo índice de violência, Piranhas é uma das poucas cidades do Brasil onde ainda é possível dormir de portas abertas

As influências do período colonial estão firmes como as construções. Na caatinga alagoana, onde o semiárido se encontra com a abundância do Velho Chico, o tempo navega sob a brisa que sobe as ladeiras e se espalha entre as ruas estreitas das pequenas cidades coloniais. Lá, reisados, bandas de pífano, artesanato em madeira e uma gastronomia que mistura sabores regionais com temperos trazidos por estrangeiros tornam esse lugar banhado pelo caudaloso Baixo São Francisco um ambiente cultural único. Uma rota verdadeiramente real. 

AUGUSTO PESSOA, Jornalista e fotógrafo, autor do ensaio Nordeste desvelado.

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