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Sloterdijk: Antes tarde do que nunca

Trinta anos após seu lançamento, é publicada no Brasil a maior reflexão sobre o cinismo na modernidade, 'Crítica da razão cínica'

TEXTO Frederico Feitoza

01 de Setembro de 2012

Peter Sloterdijk

Peter Sloterdijk

Foto Divulgação

Para todos aqueles que desconfiaram do teor escatológico das acusações de Sloterdijk sobre o cinismo como uma epidemia da modernidade, agora chegou a oportunidade de conferir a atualidade de seus pressupostos. Quase três décadas depois do seu lançamento na Alemanha (1983), quando vendeu aproximadamente 40 mil cópias em três meses, podemos ler, finalmente, em português, a Crítica da razão cínica (Estação Liberdade) e entender por que o cinismo tem sido alçado ao modo de racionalização dominante hoje.

À época de seu lançamento, o livro conseguiu emplacar entre um número elevado de leitores (para um “tijolo” de 700 páginas da filosofia atual) porque seu estilo em pouco lembra os grandes tratados críticos: um tanto consternada, em alguma medida escatológica e bastante direta, a escrita de Sloterdijk se concentra na cotidianidade da Filosofia. Andreas Huyssen, reconhecido intelectual alemão, afirmou, no prefácio à edição inglesa de 1987, que o livro poderia ser lido como um pastiche da Dialética do esclarecimento, mas um pastiche que mantém na memória a dor e a ira da melancolia adorniana. Ainda segundo Huyssen, Sloterdijk dialoga como um “Diógenes pós-moderno”, assentado na ideia de que a crítica deve considerar o corpo e os sentidos como meios de se descrever o desconforto diante de tudo o que concentra poder.

Dois são os cinismos com os quais lidamos no livro: o kynismo grego, de Diógenes, que fez escola – um antídoto ao poder, que almeja sua deterioração pelo riso, ironia e sarcasmo –, e o cinismo como um caráter social, fundamentalmente associal, capaz de elevar a consciência à apatia psicopolítica. Para Sloterdijk, o cínico de hoje é uma figura da massa: um sujeito mediano pressionado pelos efeitos individualizantes do espaço urbano e do clima midiático. “A pessoa com o olhar limpo e ‘maligno’ desapareceu na multidão”, escreve. Diante desse autismo político, restaria questionar de que maneira é possível repensar esse sujeito sem que se corra o risco de aderir, por um lado, à lógica daquele ego kantiano epistemologicamente prevenido, e, por outro, ao fluxo livre, esquizofrênico e sem identidade proposto por Deleuze e Guattari. Buscando superar a teoria crítica frankfurtiana, mas conservando um quê da melancolia adorniana, e tendo na fenomenologia de Heidegger um tipo de standpoint espiritual, Sloterdijk assume, na introdução, que só é possível praticar uma crítica da razão com “carne, sangue (e dentes)”.

Nas bases da postura niilista, narcísica e desencantada do caráter cínico, descrito pelo filósofo como um tipo de melancolia borderline, está a relação deserotizada do sujeito com o saber. Historicamente, a partir do momento (fins do século 18) em que o processo de instrumentalização da razão transformou conhecimento em informação, e, mais ainda, quando se tomou consciência de que saber é poder, todo sujeito comum teve a oportunidade de se transformar em um tipo de Fausto mediano: a experiência com o conhecimento deixou de ser prazerosa para se tornar utilitária. Após esse “esclarecimento”, e não havendo mais o que fazer para reverter esses novos modos de relacionamento do sujeito com a verdade, o cinismo tornou-se um aparato da consciência, relativamente terapêutico, em um mundo de normas paradoxalmente esvaziado de sentido fixo.

Sloterdijk traz o exemplo da República de Weimar (Alemanha, 1919-1933), como o primeiro momento da modernidade em que tal cinismo nocivo tornou-se uma dominante cultural. Isso se explicaria pelo fato de ser essa uma forma viável, tanto ao indivíduo quanto às instituições que o representam, de escaparem ao desencantamento e à anomia social que devastavam a Alemanha pré-nazista. Mas que fórmula ideológica caracterizaria esse cinismo? De acordo com o autor, uma “falsa consciência esclarecida” como forma de racionalidade capaz de sumarizar as condições para uma neutralização moral de posturas capturadas pelo poder. A ideologia não funcionaria mais através da fórmula clássica “eles não sabem o que fazem”, mas por meio de um oportuno “eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo”.

CINISMO NO CORPO
No primeiro momento do livro, ele promove uma revisão das formas críticas que impulsionaram os mais importantes debates filosóficos e políticos nos últimos dois séculos. Do marxismo à psicanálise, com especial atenção à crítica kantiana à razão pura, Sloterdijk se concentra em pensá-las como modos paradigmáticos da crítica esclarecida à ideologia, que se tornaram, um a um, incipientes, diante dos processos defensivos do poder hegemônico.

Em outro momento, abertamente escatológico, ele se concentra em localizar o cinismo no corpo, de acordo com uma análise fisionômica escrachada: o sorriso malicioso na boca do cínico, o piscar de olhos, a sua relação com as fezes e com a flatulência. A categoria “merda”, ele diz, deve ser trazida para a filosofia como um modo de entender, por meio de nossas relações animalescas com os excrementos, o comportamento ambivalente dos homens com seus próprios interesses e formas de recusa. Filósofos kynicos são aqueles que nunca se sentem nauseados, afirma, quando lembra que Diógenes pode ser admitido para a galeria ancestral das consciências escatológicas, as quais levam em conta a nossa animalidade inevitável, enquanto produtora de bosta em escala industrial.

Filósofos atuais reconhecidos, como o esloveno Slavoj Zizek e o brasileiro Vladimir Safatle, conferem ao cinismo, e à falsa consciência esclarecida, um importante dispositivo da ideologia ou pós-ideologia e das disposições subjetivas em nossa cultura. O modo de racionalização cínico diante do esvaziamento de uma verdade referencial pelo qual atravessamos é entendido por Safatle como uma solução problemática capaz de estabilizar situações de crises. Assim, o sistema de normas e valores estaria sempre passível de se inverter no momento mesmo de sua aplicação: “Como se fosse capaz de transformar o ‘sofrimento de indeterminação’ em motivo de gozo”, escreve ele em Cinismo e falência da crítica. Também utilizando a fórmula de Sloterdijk da falsa consciência esclarecida para recriar formas efetiva de crítica, Zizek pensa que o cinismo é fundamental para dar suporte à fantasia ideológica e fazer da perversão uma estrutura subjetiva dominante, capaz de levar o sujeito a lidar de forma ambivalente com a lei e sua transgressão sem que isso cause qualquer tipo de ansiedade psicopolítica.

Ao ter sido lançado somente agora no Brasil, sob o peso de um atraso talvez sintomático, a Crítica da razão cínica pode funcionar como um antídoto atualizado contra a indiferença e a descrença com as quais temos nos relacionado com nossas instituições e seus representantes. Se não há mais a possibilidade de um “desmascaramento” ideológico, nada impede que tentemos recriar os modos de usarmos nossas próprias máscaras. Atrasado, porém bastante bem-vindo e com uma eficiente tradução do presidente da Sociedade Brasileira de Fenomenologia, Marco Casanova, esse lançamento precede a aguardada tradução do primeiro volume da trilogia de Sloterdijk, intitulada Esferas, sistematização filosófica sobre a relação simbiótica entre o homem e o meio ambiente. 

FREDERICO FEITOZA, jornalista e doutorando em Comunicação pela UFPE.

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