No primeiro momento do livro, ele promove uma revisão das formas críticas que impulsionaram os mais importantes debates filosóficos e políticos nos últimos dois séculos. Do marxismo à psicanálise, com especial atenção à crítica kantiana à razão pura, Sloterdijk se concentra em pensá-las como modos paradigmáticos da crítica esclarecida à ideologia, que se tornaram, um a um, incipientes, diante dos processos defensivos do poder hegemônico.
Em outro momento, abertamente escatológico, ele se concentra em localizar o cinismo no corpo, de acordo com uma análise fisionômica escrachada: o sorriso malicioso na boca do cínico, o piscar de olhos, a sua relação com as fezes e com a flatulência. A categoria “merda”, ele diz, deve ser trazida para a filosofia como um modo de entender, por meio de nossas relações animalescas com os excrementos, o comportamento ambivalente dos homens com seus próprios interesses e formas de recusa. Filósofos kynicos são aqueles que nunca se sentem nauseados, afirma, quando lembra que Diógenes pode ser admitido para a galeria ancestral das consciências escatológicas, as quais levam em conta a nossa animalidade inevitável, enquanto produtora de bosta em escala industrial.
Filósofos atuais reconhecidos, como o esloveno Slavoj Zizek e o brasileiro Vladimir Safatle, conferem ao cinismo, e à falsa consciência esclarecida, um importante dispositivo da ideologia ou pós-ideologia e das disposições subjetivas em nossa cultura. O modo de racionalização cínico diante do esvaziamento de uma verdade referencial pelo qual atravessamos é entendido por Safatle como uma solução problemática capaz de estabilizar situações de crises. Assim, o sistema de normas e valores estaria sempre passível de se inverter no momento mesmo de sua aplicação: “Como se fosse capaz de transformar o ‘sofrimento de indeterminação’ em motivo de gozo”, escreve ele em Cinismo e falência da crítica. Também utilizando a fórmula de Sloterdijk da falsa consciência esclarecida para recriar formas efetiva de crítica, Zizek pensa que o cinismo é fundamental para dar suporte à fantasia ideológica e fazer da perversão uma estrutura subjetiva dominante, capaz de levar o sujeito a lidar de forma ambivalente com a lei e sua transgressão sem que isso cause qualquer tipo de ansiedade psicopolítica.
Ao ter sido lançado somente agora no Brasil, sob o peso de um atraso talvez sintomático, a Crítica da razão cínica pode funcionar como um antídoto atualizado contra a indiferença e a descrença com as quais temos nos relacionado com nossas instituições e seus representantes. Se não há mais a possibilidade de um “desmascaramento” ideológico, nada impede que tentemos recriar os modos de usarmos nossas próprias máscaras. Atrasado, porém bastante bem-vindo e com uma eficiente tradução do presidente da Sociedade Brasileira de Fenomenologia, Marco Casanova, esse lançamento precede a aguardada tradução do primeiro volume da trilogia de Sloterdijk, intitulada Esferas, sistematização filosófica sobre a relação simbiótica entre o homem e o meio ambiente.
FREDERICO FEITOZA, jornalista e doutorando em Comunicação pela UFPE.