“Sou um fotógrafo de paisagem humana”
Cearense, Tiago Santana se diz profundamente identificado com a região, fato que se destaca na sua obra, em que predominam contrastes do preto e branco e a temática social, tratada de modo afetivo
TEXTO André Valença
01 de Junho de 2012
Tiago Santana
Foto Celso Oliveira/Divulgação
Nascido no Crato, conterrâneo de Padre Cícero, o fotógrafo Tiago Santana fez como milhares de romeiros que visitam anualmente a terra dos cariris cearenses: peregrinou. No entanto, não se limitou a visitar a cidade vizinha de Juazeiro do Norte, onde realizou seu registro fotográfico Benditos, nem a ir ao interior alagoano, ponto de partida para o livro O chão de Graciliano, que, produzido em parceria com Audálio Dantas, é considerado uma das mais proeminentes obras sobre o autor de Vidas secas. A partir do semiárido, Tiago ganhou o mundo, com suas imagens predominantemente focadas nesse território e seus enredos.
Em março de 2011, a lendária coleção francesa de livros de bolso Photo Poche – que vem editando há quase 30 anos obras de autores como Cartier-Bresson, Michael Ackerman e Robert Frank – lançou o título Sertão, com ensaios de Tiago (sem previsão de lançamento no Brasil). Antes dele, apenas Sebastião Salgado havia representado o Brasil na coleção idealizada por Robert Delpire.
O cubano Eduardo Manet, autor dos textos publicados em Sertão, vê nas fotos de Tiago uma “profunda fecundidade do caos”. Nota que “os santos e os anjos não são de um céu abstrato, mas fazem parte da terra árida, da paisagem tormentada, dos elementos anárquicos”. Em entrevista para a Continente, Santana analisa sua trajetória e observa em seu trabalho esse tom dicotômico, que acredita ser inerente à cultura popular nordestina.
CONTINENTE A região do Cariri educou de alguma forma o seu olhar fotográfico?
TIAGO SANTANA Não tenha dúvida. O lugar foi responsável por me tornar fotógrafo. Uma pessoa que passa a infância lá sente um impacto visual muito forte. É engraçado porque nasci lá por acaso. Meu pai é de Quixeramobim e minha mãe, de Fortaleza. Ele foi trabalhar na Petrobras na Bahia. Como era envolvido em questões políticas, sindicato, foi demitido na época da ditadura militar, e então foi para o Crato. Meu pai é engenheiro, tinha uma fábrica sendo montada lá, na época. Ele só ia passar uns dias, acabou passando 20 anos. Eu brinco que a única coisa boa que pode ter saído da ditadura é o fato de eu ter nascido no Crato. Quando Padre Cícero fundou o Juazeiro do Norte, atraiu muita gente, muitas famílias de artesãos, por exemplo. Aquele lugar virou uma espécie de síntese do Nordeste.
CONTINENTE Não só seu pai, mas por dois anos você também cursou Engenharia. Por que desistiu? Era um entrave à fotografia?
TIAGO SANTANA Não, é porque, até então, eu não sabia o que a fotografia significava para mim. Meu pai fotografava, tinha um laboratório improvisado em casa. Usou muito super- 8 na época, que usei também. Inclusive, comecei com super-8 antes de começar com a fotografia. Lembro que fiz um filme sobre a volta de Miguel Arraes do exílio, quando foi visitar o Crato. Foi um pequeno documentário. Meu pai era muito ligado a ele por questões políticas. Inclusive, quando meu pai morou esses 20 anos no Cariri, na época da ditadura, ele recebia muitos militantes que passavam por lá se escondendo. Uma vez, ele desapareceu por 15 dias. Mas você perguntou sobre Engenharia e eu mudei de caminho, falei de super-8...
CONTINENTE É, mas continua...
TIAGO SANTANA Pois é, o super-8 entrou na minha vida por conta do meu pai. O filme era, na época, o que é hoje o homevideo. Todo mundo usava pra família, festa de aniversário, essas coisas. Foi meu primeiro contato. Aí, segui minha vida, fiz o ginásio, segundo grau e comecei Engenharia Mecânica, tudo em Fortaleza. Dentro da universidade, aconteceu um fato que considero marcante, um evento ligado ao Instituto Nacional da Fotografia, que era da antiga Funarte do governo Collor. Eles promoviam as Semanas Nacionais de Fotografia. Eram itinerantes e uma delas aconteceu em Fortaleza. Acho que existe um momento na fotografia brasileira antes das Semanas Nacionais e depois, porque elas possibilitaram o intercâmbio entre fotógrafos do país inteiro. Lembro bem as palestras, as projeções no auditório da reitoria, no museu... Foi então que percebi que a fotografia não era uma coisa isolada, o homem e a câmera. Era muito maior que isso. Existia gente pensando, refletindo. Isso detonou um processo na minha cabeça, era uma coisa muito maior do que eu imaginava. Aos poucos, fui me desligando da Engenharia e mergulhando mais nisso aí. É bom lembrar que sou de uma época em que não existia formação em fotografia, ou a gente pagava uma cadeira no curso de Jornalismo ou eram cursos livres, esses momentos de encontro – e o livro: sou da época que não tinha internet. Foi isso aí: as Semanas de Fotografia e o Cariri foram fundamentais para cimentar minha forma de ver o mundo. Eu voltei lá pra fazer o trabalho Benditos. Você viu o Benditos?
Foto: Divulgação
CONTINENTE Sim. Em Benditos, há uma relação interessante entre os rostos velados e desvelados. É intencional? Você é adepto da máxima que diz que o rosto humano é a mais vasta das paisagens?
TIAGO SANTANA Ah, sim. Sou um fotógrafo de paisagem humana, de gente. É isso que você falou sobre o rosto velado, incompleto, algo que falta. Mas tem certas coisas que só se descobrem mais tarde. Logo depois que fiz o livro, um jornalista perguntou se essa fotografia fragmentada tinha alguma coisa a ver com os ex-votos. Os ex-votos são umas esculturas de madeira que os romeiros doentes mandam fazer da parte do corpo que está ruim; tem coração, perna... tem muito lá em Juazeiro do Norte. Eles levam esses ex-votos para a sala de milagre pra fazer promessa. Caiu a ficha. Descobri que a minha forma de fotografar tinha muito a ver com aquilo, aquela coisa fragmentada, meio cortada. E, às vezes, não se tem total consciência disso. Está na sua cabeça e você acaba construindo o seu trabalho em cima disso sem saber. Outra coisa do Benditos que tem a ver com isso é o mistério. Aquela fotografia que não conta tudo. A foto direta, óbvia, clara, não acho que tem tanta força.
CONTINENTE E a respeito dos suportes? Normalmente, você usa analógico ou digital?
TIAGO SANTANA Até hoje uso o suporte analógico. Por uma questão de processo mesmo. De relação tátil com o negativo. A própria questão de fazer a foto e não ter o filme revelado na hora, aquele tempo de processo. Tudo isso faz parte do meu trabalho. No Chão de Graciliano, uso uma câmera panorâmica com filme 120mm, que é para extrapolar essa coisa do espaço. Ponho um filme nessa câmera e ela só faz quatro poses. Voltando ainda mais para trás na experiência de fotografar.
CONTINENTE Na sua opinião, o equipamento digital acaba com a ternura da fotografia?
TIAGO SANTANA Não, não acho. Acho o digital genial. Conheço muita gente produzindo maravilhosamente com o digital. O que me preocupa é a questão da memória e da preservação. Vejo que os álbuns sumiram, mesmo os amadores. Quando a gente pega álbuns de 30, 40 anos atrás, mesmo os de família, eles são importantes para contar a história, a transformação do lugar, dos costumes. Tem que se ter muito cuidado para não se perder a memória. Mas o digital é fantástico, como a história do fotojornalismo mesmo. Você tira uma foto e já está sendo enviada em questão de segundos. Mas, no meu trabalho, que precisa de uma dedicação e maturação mais profundas, é mais interessante trabalhar com filme. Não quer dizer que eu não faça. Estou aprendendo esse universo também. É uma questão de processo. Todas as formas de produzir imagem podem ser interessantes.
Foto: Divulgação
CONTINENTE E o preto e branco na sua obra? É uma escolha pessoal ou o tema demanda?
TIAGO SANTANA Tenho muita coisa guardada nas gavetas, também em cor, que ao longo da vida vai se acumulando e ainda não faz parte de um projeto maior. Fica lá esperando seu momento. Em um trabalho como Benditos, acho que a cor dispersaria a atenção do que eu queria contar. Com o p&b, você fica mais focado nas expressões humanas, nos traços. Além disso, o meu p&b tem a ver com xilogravura, aquele preto no branco bem duro. Outro fator é a dicotomia do sagrado e profano, dos dois lados que estão sempre presentes. É da forma que eu queria contar. Conheço trabalhos feitos no Juazeiro, em cor, que são ótimos, mas cada um tem que encontrar o seu caminho.
CONTINENTE No ano passado, trabalhos de sua autoria foram publicados na coleção Photo Poche com o título Sertão, palavra e conceito bem brasileiros. As palavras conseguem traduzir o Sertão lá fora, ou a fotografia é mais incisiva?
TIAGO SANTANA Acho que a fotografia. Mas posso voltar um pouquinho antes de chegar em Sertão? Uma das relações da minha história é com o livro. A própria coleção Photo Poche, idealizada por Robert Delpire, foi fundamental para mim e para uma determinada geração de fotógrafos. Tenho vários livros dela. Quando comecei a trabalhar com fotografia, tive a ideia de fazer livros. Eles consolidam um trabalho, vão para bibliotecas, escolas, rodam por aí. E foram os livros que me levaram a ser publicado na Photo Poche. Tanto Benditos como O chão de Graciliano chegaram às mãos de Robert Delpire, um dos maiores editores de fotografia do mundo. Ele os recebeu por intermédio de outro fotógrafo e quis me encontrar. Fui conhecê-lo e fiquei maravilhado pela sua delicadeza e simplicidade. Tinha tudo para ser aquele francês sisudo, meio metido, mas ele foi ótimo. Na conversa, me convidou para participar da coleção. Confesso que quase caí da cadeira. Aquilo ali marcou minha carreira. Eu me tornei fotógrafo vendo os autores da coleção. Depois desse encontro, levou uns dois anos de produção e lançamos o livro. Foi o próprio Delpire quem sugeriu o título Sertão. Ele falou que a palavra, para o francês, é muito simbólica, misteriosa. É difícil de traduzir, mas é entendida no imaginário europeu de alguma forma, através do cinema de Glauber Rocha, da literatura de Graciliano Ramos, de Guimarães Rosa. Eu até tinha tido outras sugestões para o título, mas achei acertada a sua escolha.
CONTINENTE O livro será editado no Brasil?
TIAGO SANTANA A Cosac Naify comprou os direitos autorais da coleção para o Brasil. Ela já publicou cinco títulos, vai publicar mais cinco em português. Provavelmente, vão publicar o Sertão.
CONTINENTE Além de fotógrafo, você também atua como editor. Criou a Tempo d’Imagem com o intuito da autoedição?
TIAGO SANTANA De certa forma, fomos forçados a montar uma editora para poder viabilizar esses projetos. Se observarmos, 15 anos atrás, não existiam muitos livros do gênero. No meu caso, não há um intuito comercial. Claro que a venda e a distribuição são importantes, mas o fundamental é que os livros sejam publicados e distribuídos para os lugares onde eles devem estar: livrarias, bibliotecas... Promover o encontro da fotografia com os outros. A fotografia, para mim, é encontro. É o encontro do autor com ele mesmo, com o seu mundo, seus afetos, com o outro que ele está fotografando. Com o escritor, com os outros fotógrafos, com o editor, com o curador. E o fundamental é isso. Até brinco que a fotografia é só um pretexto para ter essas experiências de vida, essas trocas. E os encontros com essas pessoas e esses lugares são tão intensos, que nem sempre a foto dá conta da eternidade deles. A gente tenta traduzir em imagens, mas o mais importante é isso, é muito maior do que a própria fotografia. A intensidade dessas relações, quando você tem esse olhar aberto, é muito maior do que o resultado final.
ANDRÉ VALENÇA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.