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José Condé: Um regionalista posto à margem

Relegado ao ostracismo, escritor caruaruense tem relançado o romance 'Terra de Caruaru', primeiro volume de uma série que pretende recuperar sua obra

TEXTO Danielle Romani

01 de Junho de 2012

Escritor posa descontraído, com seu cachorro, para a imprensa carioca

Escritor posa descontraído, com seu cachorro, para a imprensa carioca

Foto Reprodução

O romance regionalista teve seu ápice nas décadas de 1930 e 1940. Foi uma resposta ao movimento modernista, que instigou os artistas brasileiros a rever e a valorizar a identidade nacional. Muitos autores se destacaram no gênero que ajudou o Brasil a se conhecer melhor e a entender sua diversidade. Jorge Amado revelou uma Bahia colorida, mística, negra, sensual; o gaúcho Érico Veríssimo criou romances épicos, a partir da saga de ocupação dos pampas; José Lins do Rêgo registrou a miséria e a opressão geradas pelos canaviais paraibanos; e Guimarães Rosa apresentou os sertões e o vasto universo mítico das Minas Gerais.

Em Pernambuco, o regionalismo centrou-se na figura de Gilberto Freyre, por meio de artigos e ensaios e, de certa forma, em obras de poetas como Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, que elegeram a terra natal como temática. Mas o romance regional teve também um representante que obteve menos notoriedade que os já citados, o caruarense José Condé, responsável por, pelo menos, uma dezenas de narrativas enfocando o agreste pernambucano – em especial, Caruaru, onde nasceu.

Esquecida por editoras, críticos e meio acadêmico durante as últimas três décadas, a obra de José Condé está sendo relançada por iniciativa de seu conterrâneo, o empreendedor cultural Walmiré Dimeron. “Da mesma forma como Condé, outros grandes nomes amargaram e ainda amargam um certo ostracismo. É intrigante um autor como ele, em vida, saudado por nomes como Otto Maria Carpeaux e Renard Perez, aos poucos tornar-se figura pouco presente na crítica literária”, aponta o editor.

O primeiro volume que traz de volta aos leitores a obra do escritor caruaruense pelo selo WDimeron Editora é Terra de Caruaru, marcando a estreia do produtor na área de editoração. “A partir dele já tive pedidos de relançamento de outros títulos. Mas, no momento, concentro-me em divulgar este, em procurar sua inserção no meio acadêmico, para pensarmos e sugerirmos outros lançamentos de Condé”, explica Walmiré, que contou com o apoio da família do autor para colocar em prática seu projeto.

“Na última vez que voltei a Caruaru, tive a lamentável surpresa de entrar na principal livraria do centro para comprar um livro do meu pai. Lá, fui informada pelo dono que muitas pessoas iam procurar livros dele, especialmente Terra de Caruaru, mas que a obra estava esgotada e seus herdeiros não deixavam reeditá-la. A iniciativa de Walmiré veio a calhar e desfazer o mal-entendido”, explicou Maria Luiza Condé na inauguração da Casa de Cultura José Condé, instalada em Caruaru em janeiro deste ano e que consiste numa das iniciativas para reavivar o nome e o trabalho de um dos mais importantes romancistas estaduais, que nasceu em 1917 e morreu em 1971, no Rio de Janeiro.

Quanto à escolha do livro Terra de Caruaru para reabrir o catálogo de José Condé, ela se deu por motivos evidentes: é o mais emblemático, o que mais capta a essência da cidade, seus tipos, suas relações políticas e sociais. A obra retrata uma época em que a então “Princesinha do Agreste” começava a repudiar o coronelismo e as relações quase “feudais” impostas por famílias que detinham o poder na cidade. Um tempo em que Caruaru se preparava para aderir à modernidade, esboçada a partir do final dos anos 1920.


Graciliano Ramos (D), era um dos amigos e interlocutores constantes de Condé.
Foto: Reprodução

“O livro é o clássico caruaruense, nordestino, brasileiro. Foi a obra que alçou Condé à galeria dos grandes nomes da moderna literatura nacional e, junto com ele, projetou sua cidade. É emblemático porque está no inconsciente de gerações de caruaruenses, um patrimônio”, enfatiza o editor.

Editado originalmente em 1960, Terra de Caruaru é um trabalho de fôlego. Em primeiro lugar, porque o autor aproveita o livro para fazer uma homenagem a uma Caruaru que ficou no passado. Mas que, ao ser vislumbrada nas páginas do romance, torna-se real, quase palpável. Unindo ficção e realidade, o autor remonta, com seu olhar de adulto, a cidade em que viveu durante a infância. “Como que retirados de sua memória afetiva, os personagens com os quais Condé povoou as páginas do romance são, no dizer do ensaísta Otto Maria Carpeaux, de um passado meio vivido, meio sonhado”, explica Walmiré.

O livro é estruturado em três tempos. No primeiro, são mostrados os primórdios, quando a cidade ainda não existia, e tudo que havia era um rancho para pernoite das boiadas vindas do Sertão. Nessa época, a guerra declarada aos índios cariris provocava intensos combates e ameaçava aos que por ali pousavam. Em 1771, após dizimar os índios, o fazendeiro José Rodrigues de Jesus tomou posse das várzeas, onde hoje se encontra a cidade, mandando construir uma igrejinha sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição.

Num segundo momento, já em 1790, o autor mostra o povoado às voltas com a disputa territorial entre dois coronéis. Uma luta brutal, que tem como marca a violência desmedida, não mais entre os brancos e índios, mas entre colonizadores. O terceiro tempo da narrativa se dá num passado recente, a década de 1920. Época em que o algodão trazia fartura e riqueza à cidade, que já se apresentava como uma das mais desenvolvidas de Pernambuco, comandada por um grupo político que enriquecia e interferia, diretamente, na vida dos cidadãos.

O que é mais agradável nesse livro, assim como em outras obras de Condé, é a conjunção de relato histórico a uma diversidade de personagens e paisagens. No romance, ele não apenas refaz os roteiros, as ruas, os lugarejos – hoje já perdidos – de uma Caruaru centenária, como recria uma galeria de tipos, perfis humanos e sociais presentes na cidade.

Cada um dos personagens representa um segmento importante na configuração dos acontecimentos que sustentam o romance. Chico Lima, o jornalista, sintetiza a imprensa combativa que começa a se firmar e se faz presente contra o poderio político e econômico; Reinaldo, o forasteiro carioca com ideias revolucionárias, o novo que ameaça e fascina o status quo; Taveira, o juiz, o poder judiciário à mercê das decisões políticas, que tem sua carreira ameaçada, toda vez que tenta fazer vigorar a lei. Antônio, o jovem advogado, traz a energia idealista da juventude. Jovina, a mulata, é a mulher do povo, que se identifica com as massas. Os empresários Almeida e Gonzaga são o poder econômico, inicialmente omisso, depois atuante. Os Ribas, pais e filho, expressam o poder político ditatorial, que se mantém à base de influência e violência. Zica Soares, o prefeito, é o “pau-mandado” dos donos do poder. Dondom, a amante do coronel Ribas, o pai, representa o poder pardo e o “falso moralismo” de uma elite que se sustenta nas aparências e nas maledicências contra o próximo.


Mauro Mota (E), José Condé e Gilberto Freyre: autores pernambucanos que valorizaram o regionalismo

INSISTÊNCIA
O universo de Condé, portanto, une o grandiloquente, o “oficial”, às mesquinharias humanas, comuns em toda parte, em especial nas pequenas cidades. Apesar do tom de denúncia social, o narrativa possui humor velado, sensualismo latente, que podem ser vistos em outros livros do autor, a exemplo de Pensão Riso da Noite: rua das mágoas (1966) e Como uma tarde em dezembro (1969).

Alguns críticos, a exemplo de Edson Tavares, afirmam que o livro foi escrito, principalmente, devido à insistência dos amigos. “Conta a lenda que ele teria sido instado a escrevê-lo por Jorge Amado. O próprio Condé afirma, no preâmbulo do livro, que o autor baiano o obrigara a escrever. O fato é que a obra veio a lume e se tornou numa quase unanimidade editorial e literária nacional quando foi lançado”, explica Edson, no posfácio de Terra de Caruaru.

A importância do livro pode ser medida por alguns estudos realizados em torno da sua temática. Na monografia Falas da cidade, apresentada à pós-graduação de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), José Veridiano dos Santos lembra que não apenas Terra de Caruaru, mas outros livros do autor foram escritos quando ele se encontrava no Rio de Janeiro, onde morava desde a década de 1930.

“Escrever sobre Caruaru, no Rio de Janeiro, parece ter sido a forma que Condé encontrou para lidar com o conflito identitário que viveu a partir dos anos 1930, quando trocou a pacata cidade no interior pernambucano pela vida frenética na capital da República, em processo de modernização. Aliás, foi servindo-se de imagens de Caruaru que o escritor ingressou na imprensa carioca desde muito cedo. No final da década de 1930, ele já publicava em O Cruzeiro o poema Feira de Caruaru, inaugurando uma temática recorrente tanto em sua produção quanto em outros gêneros, que da imagem da feira se utilizariam para caracterizar a cidade”, escreveu Veridiano.

Transferido para o Rio de Janeiro devido à morte do pai, sob os cuidados do irmão Elisio, José Condé formou-se em Direito e, em seguida, trabalhou em diversos jornais, produzindo crônicas e outros textos de caráter literário. Caminhos na sombra, seu primeiro livro, foi publicado em 1945, com o selo da José Olympio Editora. Em 1950, editaria Onda selvagem. Ainda nesse período, trabalharia no Correio da Manhã, com Álvaro Lins, no qual assinaria uma coluna literária. Juntamente com os seus irmãos João e Elísio, fundou, em 1949, o Jornal das Letras. Em 1959, publicaria a novela Um ramo para Luísa. Terra de Caruaruseria editado em Portugal em 1961.

Com a reinauguração da Casa de Cultura José Condé, que foi restaurada e reúne um acervo de objetos pessoais, manuscritos e de edições originais de livros do autor , fica a expectativa de que a sua obra seja novamente divulgada e resgatada. “Esperamos despertar o interesse dos jovens e do mundo acadêmico”, diz Walmiré. 

DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente

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