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Câncer: Uma doença que já se ousa nomear

Embora ainda cercada de tabus, enfermidade encontra mais espaço no debate público, através de campanhas de prevenção, do noticiário e de livros voltados aos leigos

TEXTO Marcelo Robalinho

01 de Junho de 2012

Ilustração de Nicolas-Henri Jacob para o tratado de anatomia de Marc Bougery

Ilustração de Nicolas-Henri Jacob para o tratado de anatomia de Marc Bougery

Imagem Reprodução

Doenças costumam ultrapassar o domínio privado e incidir também sobre a esfera pública. A dimensão biológica torna-se, então, insuficiente para compreendê-las em sua completude, sendo necessário expdir a análise para o contexto sociocultural. Nele, o câncer é emblemático. Apesar de antigo, é considerado um flagelo moderno, pela progressão e visibilidade assumida nos últimos dois séculos. Em 2010, mais de sete milhões de pessoas morreram no mundo das mais diferentes formas de neoplasias. Tamanho impacto justifica, em parte, o título da obra O imperador de todos os males, lançado em fevereiro deste ano no Brasil (Companhia das Letras).

Concebido pelo oncologista indiano Siddhartha Mukherjee, ganhador do Prêmio Pulitzer 2011 na categoria não ficção nos Estados Unidos, o livro tem a curiosa proposta de traçar uma “biografia” do câncer. Partindo da experiência na pós-graduação em imunologia do câncer e no treinamento em oncologia realizado no Dana-Faber Cancer Institute, em Boston, o médico transforma a doença num personagem metafórico, uma espécie de “ator social” concretizado através dos vários fatos que compõem o enredo geral. Por trás dessa licença poética, o objetivo é saber se a morte e a erradicação do câncer são possíveis no futuro.

Difícil indagação, sobretudo pelo caráter múltiplo e complexo da enfermidade. Hoje, existem documentados mais de 200 tipos de cânceres e 500 subtipos histológicos – considerando as diferentes espécies de um mesmo tumor. Todas as formas são chamadas de câncer por comungarem de uma característica biológica comum: o aumento anormal (maligno) do número de células, que invadem tecidos e órgãos e podem se espalhar para outras partes do corpo (metástase) e matar. As semelhanças, em geral, param por aí, já que cada gênero de tumor tem uma especificidade própria.


Casal Pierre e Marie Curie descobriu o elemento rádio. Foto: Reprodução

Em linguagem de crônica e dividida em seis partes, a obra de Mukherjee recupera histórias contadas em outros livros, pesquisas e artigos científicos, além de documentos e relatos médicos. Retorna a um passado distante a fim de determinar o “nascimento” do câncer. Sendo assim, descobrimos que os primeiros registros datam de um papiro egípcio do século 7 a.C. de cinco metros de comprimento, comprado ou roubado (não se sabe ao certo) de um vendedor de antiguidades, em Luxor, no Egito, em meados do século 19.

Traduzido em 1930, esse documento conteria os ensinamentos de Imhotep, famoso médico egípcio que viveu em torno de 2625 a.C. e descreveu uma “massa saliente no peito”, possivelmente um câncer de mama, sem indicação de terapia. Dois milênios depois dessa descrição egípcia, o câncer volta a ser relatado na historiografia grega, por volta de 400 a.C., através de Heródoto. Ele registra o caso de Atossa, rainha da Pérsia, subitamente acometida por uma doença incomum, um caroço que lhe sangrava o peito, provavelmente uma forma malévola do câncer de mama.


Empenho da socialite Mary Lasker rendeu-lhe o apelido de “fada madrinha
da pesquisa do câncer”. Foto: Reprodução

CARANGUEJO
Do ponto de vista gramatical, a doença é ligada a dois termos também gregos. Um deles é karkinos, que significa “caranguejo”, sendo usado para designar tumores grandes com vasos sanguíneos inchados à sua volta e visíveis a olho nu, motivo pelo qual fez Hipócrates, o pai da Medicina na Grécia Antiga, pensar na imagem desse crustáceo como sendo ligado ao câncer. Outro termo, onkos, originou a palavra oncologia e foi utilizado para descrever tanto tumores grandes e facilmente observáveis quanto uma máscara específica na tragédia grega que denotava a carga psíquica suportada por um personagem. Em ambos os significados, porém, preexistia o sentido de algo sendo carregado, seja na saúde ou na arte.

Repleto de idas e vindas de acontecimentos, O imperador... narra diversas etapas do câncer, fazendo com o que o leitor tome conhecimento dos avanços científicos e tecnológicos, além das dificuldades de aplicação dessas descobertas no seu combate. Um desses avanços foi o conhecimento da anatomia patológica, em fins do século 18, que lançou as bases para a extração cirúrgica dos tumores, a exemplo da mastectomia. Bastante rudimentar no início, essa técnica de extração da mama foi se aperfeiçoando a ponto de se tornar radical, a fim de evitar a reincidência do câncer. Acabou sendo questionada, posteriormente, devido ao grau de mutilação das pacientes e à mortalidade registrada tempos após a operação.

O desenvolvimento da radioterapia e da quimioterapia também foi outra importante contribuição registrada neste trabalho. Surgida com a descoberta do elemento químico rádio, no final do século 19, pelo casal Pierre e Marie Curie, na França, a radioterapia significou um novo domínio terapêutico contra o câncer, especialmente para os tumores mais localizados. Porém, ainda na fase de experimentação da técnica, muitas pessoas morreram, inclusive alguns dos cientistas realizadores dos testes, tendo em vista que a própria radiação provoca câncer. “A radiação era uma faca poderosamente invisível – mas ainda assim uma faca, que, por mais ágil e penetrante que seja, tem utilidade limitada na batalha contra o câncer”, descreve Siddhartha.


Museu da Saúde Pública Emílio Ribas guarda importante acervo de peças publicitárias dos anos 1940. Imagem: Reprodução

Já a descoberta da quimioterapia foi possível graças a um acaso. Numa operação militar, realizada na Segunda Guerra Mundial, constatou-se que pessoas expostas acidentalmente ao gás de mostarda sofriam uma diminuição dos leucócitos (células sanguíneas oriundas da medula óssea). Deduziu-se, então, que a droga introduzida por via intravenosa poderia ter efeito similar em pacientes com linfoma. A experiência acabou sendo bem-sucedida e hoje é considerada uma das principais estratégias para controle do processo de reprodução celular de vários tipos de cânceres.

Evidentemente, há guerras perdidas contra o câncer. Como o próprio Siddhartha frisa, entre promessas de vitórias e recaídas, tratamentos como a mastectomia e a própria quimioterapia passaram por períodos de radicalizações, diante dos experimentos realizados nas pesquisas biomédicas. Esse talvez seja um dos pontos altos do livro. “A dramaticidade do câncer ensejou, em diversas fases, atitudes heroicas em muitos profissionais que lidaram com a doença, como forma de buscar resultados improváveis”, comenta o médico Marco Porto, professor da Universidade Federal Fluminense e ex-coordenador de Ações Estratégicas do Instituto Nacional de Câncer (Inca).


Imagem: Reprodução

É o caso, por exemplo, do médico Barry Marshall, um dos personagens enfocados na obra. Sem verba para realizar o seu estudo, ele próprio decidiu se submeter a uma experiência, em 1984, com a bactériaHelicobacter pylori (localizada próximo da válvula de saída do estômago), ingerindo-a para comprovar se ela era causa da gastrite e predispunha ao câncer de estômago. Submetido a uma série de biópsias depois da ingestão voluntária, o médico acabou sendo “diagnosticado com uma forma altamente ativa de gastrite, com uma densa camada de bactérias no estômago e crateras ulcerosas por baixo – exatamente o que encontrara em seus pacientes”, conforme relata o livro.

Além dele, outras pessoas importantes têm suas histórias contadas. Um deles é o pequeno Jimmy, ou Einar Gustafson, criança que se tornou símbolo de uma campanha milionária de arrecadação de fundos para combater o câncer, após se curar de um linfoma, no final da década de 1940, nos Estados Unidos. Mary Lasker, socialite de Manhattan, também é uma pessoa importante dessa “biografia”, segundo o autor. Exemplo de determinação e persistência, ela se une a Sidney Farber (considerado o pai da quimioterapia), a partir dos anos 1940, para fazer lobby político e levantar fundos para realização de pesquisas médicas. Tamanho empenho lhe rendeu o título de “fada madrinha da pesquisa do câncer”.

MÉDICO BRASILEIRO
Para os brasileiros, uma curiosidade é a menção ao oftalmologista Hilário de Gouvêa. Atuando no Rio de Janeiro, ele identificou casos de retinoblastoma (forma rara de câncer no olho) na família de um paciente que, quando criança, desenvolveu a doença e precisou ter o olho extraído na segunda metade do século 19. Ao se tornar pai, duas de suas filhas acabaram morrendo do mesmo problema. Na época, o médico relatou o caso como um enigma desconcertante, por não saber sobre a genética – não se tinha conhecimento sobre a matéria ainda, embora alguns especialistas já notassem a hereditariedade em alguns cânceres. Só recentemente a pesquisa genética tornou possível desvendar os mecanismos dessa doença, incorporando as descobertas à terapêutica.


O médico Siddartha Mukherjee recebeu o Pulitzer 2011 pela obra O imperador
de todos os males. Foto: Divulgação

Para as mulheres, especialmente, a obra vale como curiosidade ao explicar o surgimento do exame papanicolau. O nome surgiu a partir da contribuição do citologista grego George Papanicolau no desenvolvimento do teste que identifica estados patológicos de doenças ginecológicas ao raspar células cervicais. Considerada “inútil” no começo, a invenção acabou adiantando, com o passar do tempo, a detecção do mal em quase duas décadas, o que modificou a lógica da enfermidade de predominantemente incurável para curável.

Além de recuperar fatos relativos ao passado distante, Siddhartha busca explicar o presente do câncer. Para tanto, entrelaça informações atuais com histórias de pacientes. Inclusive, ele aparece no enredo, em primeira pessoa, relatando casos de que tratou, como contraponto para as narrativas sobre o câncer em terceira pessoa. Um dos destaques tratados pelo médico indiano é o da professora de jardim de infância em Ipswich, Massachusetts, Carla Reed. Acometida de uma hora para outra por uma leucemia aguda (variação especial cancerígena que atinge o sangue), em 2004, Carla se vê obrigada a iniciar uma série de tratamentos para combater a doença. Sua história é usada como ponto de partida da biografia e permeia toda a obra, chegando até o final da narrativa como forma de conferir um caráter mais humano ao assunto árido.


O austríaco Karl Gussenbauer inicia intervenção para tratamento de tumor cerebral, 1897. Imagem: Reprodução

Apesar de reais, esses casos parecem adquirir, no texto de Siddartha, contornos mais ficcionais pela forma como descreve as situações vividas por ele e seus pacientes. Isso torna mais leves os principais aspectos culturais e políticos que envolvem os diversos cânceres, sem perder a densidade da história. A estratégia literária também ajuda a construir uma narrativa, em certa medida, unificadora; um modo de contar marcado pelo medo e pela dor de uma moléstia que, até bem pouco tempo, era denominada sinistramente de “aquela doença”.

Esse termo sem caracterização específica não é em vão. Tratado historicamente como uma maldição, o câncer equivalia a uma sentença definitiva de morte ao doente. Pouco se sabia sobre a doença e era nula a capacidade dos médicos em evitarem o sofrimento e a morte das pessoas. Além disso, a sociedade do passado pouco a percebia, por ser típica da idade adulta e da velhice, num momento em que a evolução demográfica ainda não tinha se consolidado como hoje, com nações essencialmente formadas por pessoas mais velhas.

Para os franceses Claudine Herzlich e Philippe Adam, o medo relacionado ao câncer é semelhante ao de epidemias do passado, por isso “continua sendo obcecante ainda hoje”, segundo escreveram no livroSociologia da doença e da Medicina. Antes pensado como um desequilíbrio dos fluidos e um problema orgânico mais geral, que desaconselhava cirurgias e uso de medicamentos nas pessoas, somente no século 18 o câncer passou a ser visto como uma doença localizada no corpo, permitindo um maior conhecimento da anatomia patológica e do funcionamento das células. Justamente pela falta de informações mais consistentes, e voltadas à noção da morte, o câncer foi atrelado a imagens punitivas, sendo o sujeito responsável pelo surgimento da sua doença, e não o ambiente externo.


Susan Sontag, autora de A doença como metáfora, em que refletiu sobre os significados negativos associados aos males degenerativos. Foto: Divulgação. Foto: Divulgação

“É o câncer que desempenha o papel de enfermidade cruel e furtiva, um papel que conservará até que, algum dia, sua etiologia se torne tão clara e seu tratamento tão eficaz quanto se tornaram a etiologia e o tratamento da tuberculose”, previu a escritora Susan Sontag, em 1978, no célebre ensaio A doença como metáfora. Segundo a ativista americana, ela própria vítima de um câncer nos anos 1970 e falecida em 2004, o câncer é uma doença polêmica, usada para propor novos padrões de saúde individual e exprimir um descontentamento para com a sociedade. “As metáforas da doença são usadas para julgar a sociedade, não como desequilibrada, mas como repressiva”, explica. Não à toa, a Aids – denominada, no início da epidemia, de “câncer gay” – impulsionou uma ressignificação semântica pelo fato de as duas doenças guardarem entre si uma função intrinsecamente degenerativa.

Ao final do livro, Siddhartha reconhece que a trajetória do câncer em direção ao futuro ainda é imprevisível, dada a falta de um maior conhecimento sobre a base biológica da enfermidade. Por isso, ele acredita que uma saída possível seja prolongar a vida, em vez de eliminar a morte a todo custo. “Talvez a melhor maneira de ‘vencer’ a guerra contra o câncer seja redefinir o conceito de vitória”, defende. Nessa nova relação com a saúde, a instabilidade dos sentidos das coisas nos ajuda a compreender melhor a mudança entre o cultural e o biológico, justo por revelar um traço diferenciado da doença no meio social. A vida do câncer seria “um resumo da vida do corpo, sua existência é um espelho patológico da nossa”. 

CAMPANHAS ANTIFUMO 2011


Imagem: Divulgação

No Brasil, desde 2001, os fabricantes de cigarros são obrigados por lei a inserirem nas suas embalagens imagens alertando sobre os riscos do tabagismo, sendo o segundo país no mundo a adotar esse tipo de medida (o primeiro foi o Canadá). Essas advertências têm o objetivo de mostrar os malefícios causados pela fumaça do cigarro, conforme as evidências científicas divulgadas no século 20. Hoje, o país está na terceira geração das imagens de advertência. A última mudança ocorreu em 2008 e representou uma inovação. Pela primeira vez, a sua produção saiu das mãos de uma agência de publicidade e passou a ser feita por um grupo técnico do Departamento de Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e pelas áreas de Psicofisiologia da UFF (Universidade Federal Fluminense) e da UFRJ, em parceria com o Inca e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, algo inovador no mundo. Todas as imagens foram criadas e testadas previamente, ganhando um apelo mais dramático e aversivo, com base em três grandes grupos: as metafóricas, as realistas com abordagem científica e as de teor jornalístico. Além de uma palavra de ordem, foram inseridas fotos com maior apelo dramático, frases relacionadas às imagens mais fáceis de serem compreendidas pelo público e o logo do Disque Saúde. Algumas das ideias criadas no Brasil chegaram a ser copiadas no Uruguai e no Chile. Para a jornalista Cristina Ruas, que analisou em sua dissertação de mestrado Os processos de produção e circulação das 29 imagens de advertência produzidas entre 2001 e 2008, o uso dessas imagens é uma tendência internacional para afastar o consumidor do produto e tornar a embalagem menos atrativa. “Ao longo dos últimos 10 anos, as imagens de advertência foram ficando cada vez mais aversivas, no Brasil, levando o fumante a pensar sobre os riscos envolvidos com o cigarro e a evitá-los”, afirma. Na sua opinião, um dos desafios para a área da saúde está nos sentidos provocados pela campanha antitabagista, que utiliza o senso comum e a moral vigente para chocar através das imagens, e na necessidade de refletir sobre a manutenção do efeito de choque e a aversão ao longo do tempo. 

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