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Biografia: A vida como ela pode ter sido

Os vários métodos de criar narrativas sobre personagens do mundo real vão desde a pretensa isenção do biógrafo ao escancaramento do processo de elaboração da obra, que expõe suas naturais lac

TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Junho de 2012

Ilustração Renato Alarcão

O heterônimo Alberto Caeiro, em versos famosos, registrou: “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia/ Não há nada mais simples/ Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte/ Entre uma e outra coisa todos os dias são meus”. No entanto, o seu “mentor”, o escritor português Fernando Pessoa, foi o primeiro a se preocupar em criar histórias de vida para suas várias identidades literárias – inclusive para o bucólico Caeiro –, como se assim delimitasse melhor o estilo de cada um. Ir além da nascença e da morte, investigar (ou criar) uma travessia, é um exercício vacilante. O jornalista Sergio Vilas-Boas, pesquisador do gênero há anos, define o texto biográfico como uma tentativa de atribuir sentido à existência humana. De certa forma, era o efeito que o poeta parecia buscar ao criar uma narrativa de vida para seus heterônimos. No caso de Pessoa, criar biografias estava atrelado a um universo ficcional, remetendo à invenção. Mas passando ao campo da não ficção, em que o gênero, de fato, está alocado, não deveríamos, ainda assim, reconhecê-lo também como exercício criativo?

Embora possamos encontrar o texto biográfico em diferentes culturas e épocas, é perceptível o crescimento de produção desses escritos no período renascentista, quando o individualismo começa a se tornar um valor central para a sociedade. Naquele momento, eles eram estrategicamente publicados junto aos prefácios de obras de literatos, como relembra o teórico Peter Burke, no artigo A invenção da biografia e o individualismo renascentista: “Esta questão do contexto da publicação não é trivial. Ela ilustra a ascensão do conceito da individualidade da autoria, o pressuposto de que as informações sobre um escritor nos ajudam a entender suas obras”. Esse pensamento, aliás, também ajuda a melhorar o entendimento sobre o porquê dos textos de Pessoa. Nas suas reflexões, Burke ressalta ainda a mutabilidade das convenções relacionadas ao gênero que fez com que julgássemos o modelo renascentista amorfo, digressivo e fragmentado.

Atualmente, é reconhecido o caráter transdisciplinar do texto biográfico e também sua tendência subjetiva inevitável, porém vislumbramos uma variação mínima de linguagem. No livro Biografias & biógrafos(2002), Vilas-Boas esboçava sua primeira definição do gênero, dizendo que “biografia é o biografado segundo o biógrafo”. Para ele, o modelo amplamente reproduzido hoje – “onisciente, pretensamente isento, com cara de jornalismo investigativo” – chega a ser cansativo. Ainda assim, ele avalia o boom mercadológico desse setor como positivo e necessário para o amadurecimento cultural da nação. “Mais que um painel sobre as realizações de um indivíduo, a biografia é um arcabouço de revisões sobre o viver e o pensar. Sendo assim, precisamos dela como bem cultural. Mas, claro, para emergir algo que realmente valha a pena guardar para reler, é inevitável que se produza muito lixo.”


Ernest Jones (acima, ao centro) biografou o psicanalista Sigmundo Freud (abaixo à esq.).
Foto: Reprodução

As recentes estratégias e metodologias do fazer biográfico geraram a ilusão de que é possível esgotar a pluralidade de uma vida em uma narrativa. Irrefletidamente, fala-se em “biografia definitiva” que, para Sergio, é sinônimo de antibiografia. O termo gera um desserviço à reflexão sobre o gênero, visando apenas à publicidade do livro. Foi a consciência sobre a impossibilidade do texto de não ficção dar conta da realidade que conduziu Freud a recusar a proposta de Arnold Zweig, seu ex-paciente, de biografar sua vida. Na carta em que explica sua decisão, o psicanalista escreve: “Aquele que empreende uma biografia está comprometido com mentiras, dissimulação, hipocrisia, disfarces, bajulação... A verdade biográfica não existe”. Ironicamente, o episódio é citado por Ernest Jones, biógrafo de Freud.

É evidente que esclarecer essa incompletude não deslegitima o gênero, apenas reconhece seus limites. A elucidação das estratégias do autor na pesquisa e construção do texto raramente é feita e, ao leitor, é oferecida uma narrativa opaca, que não revela o seu caráter processual. No livro Biografismo (2008), a problemática da transparência é um dos principais pontos abordados por Sergio, que questiona o fato de a maioria dos biógrafos não compartilhar os rumos intelectuais e perceptivos escolhidos. Além disso, uma construção narrativa de não ficção que é mais aberta e zelosa deveria ter mais credibilidade que a centralizadora e impositiva.

Arriscando uma comparação com o cinema documental, é como colocar lado a lado um filme que almeja mascarar as imprecisões da construção de um discurso – tentando causar um efeito de realidade – e outro que reconhece a sua natureza subjetiva. Como essas questões no âmbito do documentarismo já foram postas e repostas, a discussão sobre deixar transparecer o processo chega a ser redundante. Porém, para o biografismo, ela parece urgente, até mesmo para estimular uma diversificação estilística verdadeira. “Não é difícil encontrar diversas biografias responsáveis abordando a mesma pessoa, às vezes até com visões divergentes. Por outro lado, seria tarefa duríssima identificar diferenças significativas de linguagem de uma obra para outra”, avalia Vilas-Boas.


Nelson Motta narrou a trajetória de Tim Maia no livro Vale tudo. Foto: Reprodução

Essa não inclusão do processo colabora para que o leitor brasileiro se mantenha atento apenas à história do personagem, o que ofusca o percurso do biógrafo. Aos olhos do apreciador ligeiro, basta o que é revelado e não o modo como isso se desenrola. Uma das razões para esse fenômeno, na opinião de Sergio, é o despreparo da própria crítica cultural para comentar os textos de não ficção. A academia parece também ter uma dívida com o gênero, que não possui uma historiografia própria. Outra justificativa é a relação utilitária daqueles que são apenas “consumidores” de biografias e, por isso, “compram” apenas um personagem.

DOIS MÉTODOS
De um lado, O anjo pornográfico e Estrela solitária. Do outro, Vale tudo e A primavera do dragão. Ruy Castro e Nelson Motta são amigos há mais de 40 anos, encontram-se constantemente no calçadão carioca e... escrevem biografias. Os jornalistas, cujos métodos são diferentes, já conversaram bastante sobre o assunto. Na percepção de Ruy Castro, a diferença central é o fato de ele trabalhar prioritariamente a memória das fontes, enquanto Nelson Motta une às pesquisas as próprias lembranças sobre o biografado. A respeito do uso da memória pessoal, o autor de O anjo pornográfico questiona: “A memória costuma trair, não?”. No entanto, concorda com o fato de que ter familiaridade com o cenário, a época e os coadjuvantes facilita o trabalho. O autor de Vale tudo observa: “Quando você conhece alguém muito de perto, como o Ruy conheceu Nelson Rodrigues, ajuda muito. Claro que me ajudou a compor os meus personagens o fato de eu saber qual o jeito deles falar, seus gestos, ritmos, estilo”.

Em Noites tropicais, a visão distanciada seria mesmo impossível a Nelson Motta, já que os personagens que biografou eram amigos próximos e foi, antes de tudo, o sentimento que estimulou a escrita. “O primeiro impulso para escrever essas biografias foi o amor, a amizade, a admiração que eu tinha por eles (Tim Maia e Glauber Rocha). Não tive a pretensão de fazer história, só contar a vida desses queridos do meu jeito”, comenta o crítico musical, que não se considera biógrafo. Apesar das intenções serem as melhores, ele não escapou da intolerância de determinadas fontes e leitores. Seu trabalho mais recente, justamente a biografia do cineasta Glauber Rocha, que saiu no final do ano passado, recebeu críticas por conter falhas, sobre as quais o escritor se posiciona: “Os equívocos foram mínimos e pontuais, prontamente assumidos e corrigidos”.


Ruy Castro conheceu de perto o biografado Nelson Rodrigues. Foto: Reprodução

Por essas e outras, Ruy Castro, que tem lançado regularmente obras de não ficção, estabeleceu critérios rigorosos que incluem não biografar personagem vivo e buscar se certificar sobre o que é mentido e omitido por uma fonte. “Depois de um ano de trabalho duro em cima do personagem, o biógrafo sabe quando o sujeito está mentindo, omitindo ou apenas se enganando. Mas a experiência demonstra que as fontes não têm muito interesse em mentir. Podem, apenas, exagerar um pouco a própria participação na história”, comenta.

Os amigos afinam na percepção de que o texto biográfico é híbrido e que a preocupação com a organização das informações, para que essas se distribuam de forma atraente, é fator sine qua non. Discordam, entretanto, quando se fala em “biografia romanceada”, que, para Nelson, não soa como uma expressão paradoxal, pois remeteria apenas ao estilo e não à ficcionalidade, enquanto Ruy acredita que o termo é inadmissível, pois, nas suas palavras, “biografia romanceada não é biografia, é romance”.

Há, ainda, outra semelhança entre eles: estão distantes do fazer biográfico, engajados em outras atividades. Nelson reconhece seus livros como homenagens e confessa que, no momento, não pensa em biografar mais ninguém. Atualmente, está trabalhando num musical sobre a época da casa noturna Dancin’Days. Ruy Castro, por sua vez, está organizando um festival sobre Nelson Rodrigues para o Sesi de São Paulo e se preparando para lançar O melhor da Senhor, um apanhado da revista que circulava no início da década de 1960, editada pela Imprensa Oficial de São Paulo. Quando questionado sobre a biografia do recém-falecido Millôr Fernandes, projeto que já demonstrou interesse em desenvolver, o escritor é categórico: “Tão cedo, neca de biografia, nem mesmo a do Millôr”. 

GIANNI PAULA DE MELO, repórter da Continente Online.

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