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A idade

TEXTO José Cláudio

01 de Junho de 2012

'Monumento ao Maracatu', na Praça das 5 Pontas, bronze, 4 x 3m, 2008, de Abelardo da Hora

'Monumento ao Maracatu', na Praça das 5 Pontas, bronze, 4 x 3m, 2008, de Abelardo da Hora

Foto Tiago Corrêa

Bem verdade que ultimamente estou ficando sensível. Noto que não sou mais daqueles que podem ver qualquer coisa e sair incólume. Vou fazer 80. Atualmente qualquer besteira me deixa abalado. Até cinema. Acho que a censura, em vez de botar “impróprio até 14 anos”, deveria botar “proibido para idosos”. Me perturbo. Começo a ter medo. Como criança que ouvia história de trancoso e não queria dormir. “Você não devia ver essas coisas”, gostaria que alguém me dissesse e desligasse o DVD para me poupar de certos desfechos. Ou deviam fazer uma versão para os velhos, como aqueles livros para o uso do delfim. É melhor ficar lendo sobre arte, os comentários de Goethe sobre a Catedral de Colônia, coisas desse tipo, como o artista deve se posicionar ante a natureza ou, digamos, ler a poesia de Lucrécio. E isso é um grande privilégio do velho: os moços não têm tempo para degustações assim, os moços correm atrás de finalidades. Fiquei encantado com a descoberta de Goethe de que a melhor luz para ver esculturas era a luz de tochas. Eu até disse a Abelardo da Hora quando suas esculturas estavam expostas no Parque Dna. Lindu. Propor à prefeitura que apagasse todas as luzes e acendessem tochas (Abelardo respondeu, pensando que ainda estava no tempo da ditadura, que iam dizer que era ideia de comunista, tentativa de tocar fogo na cidade, como disseram que Miguel Arraes tinha mandado tocar fogo nos canaviais).

Não sei se deva concluir daí esteja me sentindo frágil, como se a fortidão moral e física uma dependesse da outra e precisassem ambas de algum embrutecimento, uma certa rusticidade, carapaça que o tempo vai desgastando. Nem sempre. Há velhos em que tal carapaça, principalmente de ruindade, é cada vez mais empedernida. Já no meu caso parece que pouco a pouco, muito de pouquinho, estou me tornando bom, digo, sensível.

Já pensei em deixar de ler jornal, ver noticiário de televisão, lembrando o que disse não sei se Beaudelaire, que abrir um jornal de manhã cedo é como tomar um copo de pus em jejum, publicado como lema de um jornalzinho do Rio de Janeiro escrito a mão, quem sabe Flor do Mal, de vida efêmera.

Bem que invejo aquele brasileiro que vive num mosteiro na Inglaterra sem nenhum contato com o mundo exterior, “as trevas exteriores”. Parece que o Brasil tinha acabado de ganhar a Copa do Mundo no Japão e o repórter perguntou se já ouvira falar de Ronaldo Fenômeno. O monge, rapaz ainda moço, demonstrando vivo interesse, perguntou: “Quem é?” Até hoje morro de inveja. E não é da boca para fora. Vaidade das vaidades. Tanto esforço para querer ser alguém na vida, querer saber de tudo. Esforço vão de querer ser quando já o éramos, o somos, em toda plenitude. Por isso me atrai tanto a patrística. A invulnerabilidade daqueles homens. Eles já eram divinos aqui na terra. Por isso, pouco lhes interessavam as contingências humanas, inclusive essa superficialidade: a felicidade. As implicações do mundo de hoje.

Entrei uma manhã dessas na Basílica de N. S. do Carmo. O ambiente é bem mais fresco do que na rua, sombra ampla criando um microclima, por causa da altura do teto, a dimensão da nave, a claridade suave nos dando a sensação de bem estar, convidando-nos ao silêncio e à calma, um encanto enfim. Deveria haver uma zona de silêncio em torno da basílica como a área em torno do túmulo de Dante, em Ravena, na Itália, não passar carro, nenhum tipo de zoada. Mas, com a brisa agradável que entra pelas enormes portas, vem também, menos doce, o estardalhaço dos vendedores de discos de músicas gritantes a que nenhuma concentração resiste. Bem atrás de mim, duas idosas, em que a ancianidade não diminuiu a tagarelice, dialogavam com outras pelo celular de uma delas, que dava vontade de a gente dizer: “Minhas senhoras, silêncio: aqui é a casa de Deus”. Mas será que hoje alguém ainda atenderia a esse convite? Se algum legislador propusesse essa área de silêncio seria acusado de arrogância ou sei mais o que, receberia o repúdio de outras igrejas cristãs ou não. Já houve lugar não sei onde aqui no Brasil em que foi proibido tocar sinos. Nada mais politicamente correto, embora eu possa invocar meu direito inalienável de ouvir os sinos. Não conseguiria imaginar Ipojuca onde nasci nem Recife nem Olinda sem o som dos sinos. Uma vez fiquei extasiado ao meio-dia ouvindo as badaladas do sino da Igreja de Santo Antônio bem na calçada da igreja na Rua Nova. Uma das maiores riquezas do Recife. Algo de grandioso nos suscita na alma. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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