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'A divina comédia' segundo Romero

Artista trabalha num projeto de tradução da obra de Dante Alighieri que agrega textos e ilustrações

TEXTO PAULO CARVALHO
FOTOS BRENO LAPROVÍTERA

01 de Junho de 2012

Romero de Andrade Lima prepara-se para a tradução do 'Paraíso'

Romero de Andrade Lima prepara-se para a tradução do 'Paraíso'

Foto Breno Laprovítera

O ano era 1304. Idade Média. Dante Alighieri (1265-1321) encontrava-se exilado de sua Florença, de onde os guelfos da facção branca haviam sido expulsos pelos da facção negra. Enquanto se manteve na vida pública, o poeta tentou estar acima da briga entre os gibelinos e os guelfos, grupos políticos que dominavam Florença. Era rigoroso com ambos. Sua família e seu grande amigo Guido Cavalcanti, expulso pelo próprio Dante da república florentina, alguns anos antes de seu exílio, filiavam-se aos guelfos. Guido, com quem se encontraria em comovente passagem de A divina comédia, era um radical. Assim como ocorrera ao amigo, a política apresentou-se terrível para o poeta. Quando os guelfos se dividiram em brancos e negros, ele estava no final do seu mandato de prior e aderiu aos primeiros, para defender-se das manobras do papado. Estava sem nenhum bem, condenado a ser queimado vivo, se caísse em poder da administração local. Dante não voltaria a Florença. Nem quando morto.

Foi naquele início do século 14, na cidade universitária de Bolonha, frequentando os círculos eruditos, que o exilado Dante compôs – como aulas de um professor visitante – a obra precursora da ciência filológica moderna. De vulgari eloquentia (Sobre a eloquência em língua vernácula) é um tratado de filologia que esmiúça os dialetos e as línguas vulgares de tronco latino. Vulgares, isto é, as línguas que as crianças aprendiam no colo das mães. No vernáculo italiano, Dante identificou pequenos dialetos. Havia os que admirava, como o de Bolonha. Na mesma árvore do italiano, Dante encontraria um “vernacular nobre”, sem identificação com nenhum outro dialeto, falado em todas as cidades. Por essa contribuição de filólogo e por usar a linguagem vernacular em A divina comédia, Dante é considerado o patrono da língua italiana.

Com um interesse duplo pela obra do poeta florentino e pelas traduções que tem recebido para outras línguas ao longo de vários séculos, o artista plástico e encenador recifense Romero de Andrade Lima, 54 anos, encampou um projeto fascinante, que está prestes a concluir. Insatisfeito com as traduções para a língua portuguesa de A divina comédia, ele empreendeu a própria tradução de todos os 100 cantos da obra. Romero também ilustrou as principais cenas das partes do Inferno e do Purgatório. Prepara-se para desenhar o Paraíso. “É uma parte praticamente feita só de luz. Não é tão fácil, tanto que as ilustrações de Gustave Doré para o Paraíso são as mais desinteressantes”, comenta ele, em entrevista à Continente. O trabalho começa a ser disponibilizado no endereço eletrônico de uma “instituição imaginária” criada pelo artista, independente de qualquer patrocínio público ou privado, a Santa Sophia.


Ilustrações são criadas ao mesmo tempo em que o artista traduz

NO MEIO DO CAMINHO...
De acordo com Romero, trata-se de uma tradução que busca facilitar a leitura do texto vertido. “Não busquei criar uma releitura. O fato é que existe um leitor que não quer se deparar com a recriação de uma obra. Principalmente de um autor como Dante, para quem cada palavra é escolhida com esmero e tem, muitas vezes, um significado metafísico. Suas palavras, não raro, não pedem outra, senão a tradução literal”, explica.

A sintaxe muda. Mas muda muito pouco, segundo o pernambucano. “Veja: ‘No meio do caminho da nossa vida...’, esse verso já é lindo por si. Mas o tradutor geralmente é um poeta que tem pudor de reproduzi-lo, como se fosse quase uma regra a necessidade de algum tipo de releitura, de modificação. O tradutor, principalmente aqueles do século 19, tem algum receio de ser simples.”

Tomando a crítica do artista como referência, podemos observar traduções feitas para o verso “Nel mezzo del cammin di nostra vita”. O verso que abre A divina comédia foi traduzido por José Pedro Xavier Pinheiro (1822-1882) como “Da nossa vida, em meio da jornada”. Por Augusto de Campos (1931) como “No meio do caminho desta vida”. “Nesse último caso, abre-se mão do ‘nossa’, que tem um sentido muito mais forte. Uma palavra que aproxima o leitor. Se você tenta ler essas traduções sem um original por perto e sem explicações menos rocambolescas, você desiste, tal o esforço que eles fazem para manter a métrica e a rima. Obviamente, a métrica e a rima, apesar de muito belas, são menos necessárias que o sentido exato”, comenta Romero.

O texto do poeta italiano não é composto de maneira simples. São três livros divididos em 33 cantos, introduzidos por um de abertura. Cada canto possui pouco mais que uma centena de versos. Os versos são decassílabos e o metro é o terceto encadeado. Ou seja, no esquema da terza rima, na qual as estrofes rimam continuamente: ABA, BCB, CDC, DED, EFE, e assim por diante. É um esquema que dá a sensação de movimento. Uma vez na Comédia, o leitor é conduzido até ao seu final. O número três também estrutura o conteúdo da viagem ao Inferno, ao Purgatório e ao Paraíso, planos divididos em nove círculos, cada. No conjunto, é narrada a história da conversão de um pecador. Trata-se de uma obra doutrinária, de edificação, não obstante a abundância de ironia, humor negro e brincadeiras que o autor faz com seus contemporâneos de Florença. A divina comédia é como uma “suma” em que o poeta reúne todo o saber científico, filosófico e teológico de seu tempo.


A ideia de Romero é intercalar os versos originais aos que verte ao português

A LIRA DOS 500 ANOS
Romero conta que conheceu o livro quando era estudante do ginásio. Ficou fascinado com os desenhos de Gustave Doré, publicados nas Edições de Ouro. A intenção de realizar um trabalho semelhante àquele, voltado ao didatismo, também não é recente. Nasceu com o desenvolvimento de um projeto para as escolas de São Paulo, em que realiza montagens teatrais e oficinas, desde os anos 1980. Para cada mês do ano, pensou em um material didático diferente, que pode ser replicado em custo baixíssimo por professores e educadores. “A ideia é não usar nada que precise de dinheiro, para não colocar nenhum obstáculo para qualquer professor ou escola”, explica. Esse grande projeto recebeu o nome de A lira dos 500 anos, e é levado à frente por um grupo de oito pessoas. Juntam-se ao projeto de A divina comédia trabalhos semelhantes em torno do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, entre outros.

“A proposta do trabalho é ser didático, no sentido melhor da palavra. Espero que ele possa ser transmitido e espalhado. Por isso resolvi criar uma instituição imaginária, que chamei de Fundação Santa Sofia. Quando se trabalha com um autor como Dante, não se pode correr o risco de se envolver em coisas não muito corretas, obscuras, como acontece de vez em quando com os editais de patrocínio e, de uma maneira geral, com o marketing cultural. Em relação a essa edição de Dante, a minha ideia é intercalar na página o texto original e o traduzido, colocando as notas explicativas ao lado (homenageados, personagens e de onde vem cada ideia), além dos desenhos, que serão os primeiros a serem divulgados.”

O artista comenta que, para a realização das ilustrações, se inspirou nos livros de horas, populares na Idade Média. Não deixa de ser curioso que, hoje, assim como ao novo de trabalho de Romero, só tenhamos acesso a muitos desses livros (o mais famoso são As riquíssimas horas do Duque de Berry) através da internet. O manuseio deles é vetado.

Dante foi autor de transição da Idade Média para a Idade Moderna, como eventualmente ele é apresentado. Seu conhecimento é tratado de maneira controversa durante a Renascença, apesar da reverência que recebe dos humanistas do século 15. “Para alguns estudiosos, a Renascença é que foi uma decadência. A vitória de uma burguesia mundana, torradora de dinheiro, guerreadora. Na Idade Média, organizou-se todo conhecimento antigo, preservaram-se todos os livros contra a destruição das invasões bárbaras. A Idade Média, ao contrário do que se diz, é que foi realmente a da luz. Uma idade de grande preservação do conhecimento, de reedição dos livros antigos (através dos copistas)”, arremata Romero. Uma época que tem muito a dizer à nossa, portanto. 

PAULO CARVALHO, repórter do Diario de Pernambuco.
BRENO LAPROVÍTERA, fotógrafo.

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