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O Horror

Foi com o aparecimento da estética do Romantismo que o assustador e o macabro intencionais começaram a conquistar a literatura europeia e, depois, mundial

TEXTO Roberto Beltrão

01 de Maio de 2012

Ilustração Indio San

Na noite silenciosa, onde reina a luminosidade baça da lua cheia, um encontro com vaporosas aparições, espectros macabros, vampiros com dentes pontiagudos, feiticeiras que lançam pragas, lobisomens em busca de presas e toda a sorte de monstrengos e assombrações que têm em comum a capacidade de fazer o sangue gelar de pavor. Mas o cenário em que se apresentam esses seres medonhos só pode ser visitado por meio da imaginação: o devaneio de quem reserva algumas horas para atravessar as páginas de um livro de horror. O leitor franze a testa e arregala os olhos a cada susto revelado pelo texto, mexe-se nervosamente na cadeira por causa das reviravoltas da trama, chega a suar frio quando percebe que nenhum final feliz é possível – e, mesmo assim, não larga o volume enquanto não passar a vista na última letra impressa. Na hora de dormir, é possível que seja acometido por terríveis pesadelos. Mas isso não o impedirá de, no dia seguinte, ir à livraria e adquirir uma obra tão ou mais assustadora quanto a que acabou de ler.

São apreciadores fiéis do trabalho de escritores que se dedicam à arte refinada de provocar medo. Esses criadores, muitas vezes ignorados pela maioria do público e desprezados pela crítica literária, são herdeiros dos contadores de histórias que reproduziam lendas e mitos nas pequenas aldeias e vilas, desde os primeiros séculos da humanidade. Guardam também semelhança com as tias e avós que, antes da chegada da televisão e da internet, amedrontavam as crianças recitando contos protagonizados pelo “velho do saco”, pelo “bicho-papão” ou pela “mula sem cabeça”. Criaturas do universo bizarro que formam o “ciclo da angústia infantil”, segundo a classificação do folclorista potiguar Luís da Câmara Cascudo, na sua Geografia dos mitos brasileiros. Muitos fãs dos livros de horror adquiriram esse gosto incomum ao buscar reviver os sentimentos conflitantes – medo e curiosidade – provocados pelos relatos assombrados que ouviram quando crianças.

Foi assim com a jornalista e escritora Jaqueline Couto, leitora compulsiva de tudo o que foi publicado por Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft, Stephen King ou Anne Rice. Ela relembra que aprendeu a gostar de novelas ou contos sombrios com a avó. “Vovó tinha a mania de me colocar para dormir contando histórias de horror, assombrações. Por isso me tornei uma caçadora de fantasmas, uma pesquisadora cada dia mais curiosa”, conta Jaqueline, que diz acreditar no poder que uma história assustadora bem contada tem de influenciar as pessoas. “O que trata do lado negro, das forças ditas estranhas, do oculto, fascina o ser humano desde tempos remotos.”

Provavelmente, sem a narrativa folclórica não haveria o que se convencionou chamar de literatura de horror – embora esta tenha chegado a um estágio tão sofisticado e detalhista de estranhamento (ondas intensas de calafrios), que já não pode mais, nem de longe, ser comparada às tradicionais historietas mal-assombradas repetidas pelos nossos pais e avós. “Até o surgimento das ciências e da racionalidade moderna, entre os séculos 18 e 19, essas narrativas não eram consideradas fantasiosas ou folclóricas. Antes, as histórias apavorantes contadas pelos mais velhos eram lições de vida”, explica a historiadora e pesquisadora da literatura, Maria Edith Rivelli de Oliveira, ligada à Academia de Letras, Ciências e Artes de Ponte Nova, em Minas Gerais.


A barca de Dante, pintura de Eugène Delacroix, de 1822, inspirada na Divina Comédia. Imagem: Reprodução

Seres incomuns e amedrontadores nem sempre foram considerados visitantes estranhos ao mundo material. “Esse pensamento está muito ligado ao conceito medieval de mirabilia, segundo o qual fantasmas e monstros também estão dentro da ordem do universo”, explica André de Sena, professor de Teoria Literária do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco.

No livro Esquecidos por Deus, a historiadora Mary Del Priore registra que antigos aventureiros e estudiosos europeus garantiam existir em terras distantes, do Oriente, aberrações como o homem com cabeça de cachorro, peixes com cabeça humana e até homens sem cabeça e com olhos nos ombros. Del Priore cita o pensamento de Santo Agostinho sobre homens e monstros: “Faziam parte do mundo e concorriam para sua beleza”. “Mesmo se não pudermos explicar por que Deus os criou, devemos confessar a nossa ignorância e recusar a ideia de considerá-los erros da Natureza.”

Para que o horror se consolidasse como gênero literário, foi necessária uma longa depuração. Entidades sobrenaturais sempre se fizeram notar na literatura ocidental. “Dante foi um pioneiro na captura clássica da atmosfera macabra”, teoriza o escritor americano Howard Phillips Lovecraft, no livro O horror sobrenatural na literatura, único ensaio do autor que apavorou várias gerações com romances e contos produzidos nas primeiras décadas do século 20 e se tornou uma referência inevitável nesse campo. Lovecraft se referia aos castigos excruciantes aplicados pelos demônios aos pecadores – punições narradas nos versos que descrevem o Inferno na Divina comédia, composta pelo poeta de Florença, no século 14. Muito antes disso, na antiguidade grega, sereias e ciclopes já atormentavam os humanos nos acontecimentos relatados pelos versos da Odisseia de Homero.

Personagens vindos do além também figuram nos enredos tecidos por William Shakespeare, na Inglaterra elisabetiana do século 16. Em Hamlet, o príncipe da Dinamarca encontra o atormentado fantasma do próprio pai que exige vingança contra o irmão que o assassinou. E são bruxas asquerosas que profetizam a chegada de Macbeth ao trono da Escócia – um presságio que o levará a cometer uma série de crimes sob a influência da esposa ambiciosa. Mas nenhuma dessas obras clássicas tinha a intenção de provocar arrepios no leitor (no caso de Shakespeare, na plateia do famoso Teatro Globe, em Londres).

A historiadora Maria Edith diz que “a partir do ceticismo moderno, as narrativas sobrenaturais entram em xeque, e daí teremos o surgimento do gênero literário fantástico, em que a descrença e a tradição sobrenatural se digladiam. Nesse momento, há uma cisão entre real e sobrenatural, folclore e conhecimento”. Foi com o aparecimento da estética do Romantismo que o assustador e o macabro intencionais começaram a ter lugar na ficção europeia.


Ensaio do autor H. P. Love Craft tornou-se referência no
estudo do gênero. Imagem: Reprodução

Para a maioria, essa afirmação vai parecer contraditória, pois tudo o que é romântico “é muito confundido com o lacrimoso, o melodramático”, lembra o professor Sena. Todavia é preciso observar que a corrente romântica, surgida no século 18, foi de encontro ao classicismo baseado nos cânones greco-romanos e também ao racionalismo iluminista. O Romantismo valorizou a subjetividade e, por conseguinte, o sentimento amoroso, o escapismo, o sonho, o delírio e a fantasia. Dentro desse vagalhão de emoções, ganhou força a arte gótica: uma estética que já perpassava a arquitetura e o estatuário da Europa medieval e traduziu-se em literatura com ajuda do pensamento romântico.

Entre as primeiras expressões do gótico nas letras estão as chamadas “poesias de cemitério”, compostas na Inglaterra nas primeiras décadas do século 18. “Os poetas de cemitério muitas vezes eram monges, religiosos que escolheram o espaço do cemitério, o espaço crepuscular, para pensar a transitoriedade da vida”, esclarece Sena. “Essa atitude não desperta horror, ao contrário: ela é até certo ponto pacificadora – pensado na transitoriedade da vida, elege-se o cemitério como lugar para reflexão. Um sinal da obscuridade gótica, mas como território religioso, metafísico, sublime, embora muito melancólico.”

A intenção de levar medo ao público leitor surgiu nos anos seguintes, com o advento do romance gótico. O inglês Horace Walpole foi o pioneiro de uma extensa linhagem de escritores de horror. É dele a obra chamada O castelo de Otranto, publicada em 1764. O livro conta a história do príncipe Manfredo, atormentado por forças sobrenaturais referentes a uma maldição que ronda o tal castelo, do qual o nobre tenta de todas as formas se apossar. Veio daí o paradigma cenográfico dos filmes de horror mais tradicionais, como na recente produção hollywoodiana A dama de preto: uma construção antiga (castelo/ casarão) decorada por móveis escuros e vistosas teias de aranha, na qual são ouvidos gemidos e portas batendo, o arrastar de correntes, e onde desfilam vultos e aparições lúgubres.

Já no fim do século 18 e começo do século 19, autores românticos germânicos trariam uma perspectiva diferente para o horror literário. Ludwig Tieck e Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann – conhecido como E. T. A. Hoffmann – pertencem a diferentes fases do romantismo alemão, mas têm em comum a criação de novelas e contos nos quais o horror não vem de uma ameaça externa (o fantasma que atormenta os moradores do castelo, o vampiro que quer beber o sangue dos aldeões), mas, sim, da própria mente conturbada dos personagens. Nessas narrativas, há uma área sombria, esfumaçada, na qual não é possível distinguir o real do imaginado, o concreto do sobrenatural.


O escritor inglês Horacle Walpole foi pioneiro entre os autores de horror.
Imagem: Reprodução

“Em Tieck e Hoffmann começam os fantasmas interiores, a alucinação, o delírio, o inconsciente, outras recorrências frequentes da estética romântica”, detalha André Sena. “Por exemplo: a maioria dos personagens dos contos de Tieck – que só teve textos traduzidos pela primeira vez aqui, no Brasil, em 2009 – os desvãos ocorrem no imaginário.” Feitiço de amor e outros contos reúne seis tramas com pormenores lúgubres e mistérios que escondem pecados inconfessáveis. De Hoffmann, que também era um músico talentoso e admirador de Mozart (daí o “Amadeus” no nome), podemos citar obras como O elixir do Diabo e Noturnos. “Muito do que Edgar Allan Poe aprende vem de Hoffmann, que, por sinal, é mais assustador do que Poe”, opina o professor Sena, referindo-se ao escritor norte-americano, que se tornaria um sinônimo de histórias de horror.

Nascido na cidade de Boston, em 1849, Edgar Allan Poe produziu poemas de versos soturnos como O corvo: “Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!/ Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,/A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,/ A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais/Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!/Disse o corvo, ‘Nunca mais’ ”.

Foi o talento de Poe para produzir contos que contribuiu para imortalizá-lo. A precisão milimétrica e o desejo de desafiar o poder de dedução do leitor em obras como Os assassinatos da Rua Morgue e A carta roubada criaram um modelo para o conto policial, que seria imortalizado por Arthur Conan Doyle e Agatha Christie.

Em Poe, a melancolia e o equilíbrio narrativo se uniram em contos como A queda da casa de Usher e Ligeia, criando referências definitivas na literatura de horror. Nas palavras de Lovecraft, o autor “compreendia tão perfeitamente o exato mecanismo e fisiologia do pavor e da estranheza”, que seguia “cada etapa principal em direção ao pavoroso”. O autor de O barril de amontilado também foi exemplo para o escritor argentino Julio Cortázar: “Há em nós uma presença obscura de Poe, uma latência de Poe (...) ele foi um dos grandes porta-vozes do homem, aquele que anuncia o seu tempo noite adentro”.

OS POPULARES
Do outro lado do Atlântico, artistas com estilos muito menos marcantes conseguiram fama criando personagens de horror, que se tornariam ícones da literatura (e depois do cinema) de horror. Se não fosse pelo monstro de Frankenstein, a britânica Mary Shelley possivelmente teria a biografia resumida à frase “esposa do poeta Percy Shelley”. Em 1816, durante uma temporada em Genebra, na Suíça, ao lado de Lord Byron e John William Polidori, o casal aceitou o desafio de produzir histórias assombrosas como divertimento. Byron criou o relato macabro The burial; Polidori escreveu The vampyre – ancestral de sanguessugas que viriam a dominar a cultura pop séculos depois; Percy redigiu o conto The assassins; e Mary trouxe à tona uma novela intitulada Frankenstein ou o moderno Prometeu, em que um jovem cientista obtém sucesso unindo partes de cadáveres para formar um novo homem, mas este se revolta com seu criador e se torna um assassino.


Contos de Edgar Allen Poe viraram referência, como O corvo e O gato preto.
Foto: Reprodução

Ainda mais famoso que o monstro de Mary Shelley, tornou-se um fidalgo saído da imaginação do irlandês Bram Stoker, em 1897. Baseado em lendas da Europa Oriental sobre mortos que voltam do túmulo e tem o péssimo hábito de beber o sangue dos viventes, ele tira o Conde Drácula das sombras para uma jornada rumo ao estrelato. Como vimos, Stoker não foi um pioneiro nas histórias de vampiro, mas reforçou no monstro dentuço um explícito caráter sedutor, que iria ser associado ao vampirismo.

No livro A dança macabra, o escritor americano Stephen King teoriza que “muito do que nos atrai nas histórias de horror é que elas nos permitem exercitar aqueles sentimentos e emoções antissociais” e “Drácula não é um livro sobre sexo normal; não tem nenhum ‘papai e mamãe’ rolando aqui”. (Certamente, o vitoriano Bram Stoker não iria gostar nada dos vampiros açucarados e castos da Saga Crepúsculo, de Stephenie Meyer, febre entre as adolescentes deste século 21.)

Se os monstrengos e vampiros conquistaram a fama a partir de obras que abraçaram o gótico sem pudor, coube a um escritor realista do fim do século 19 criar o mais intrigante conto sobre fantasmas.

O norte-americano naturalizado inglês Henry James oferece em A volta do parafuso (The turn of the screw) um enigma psicológico: uma governanta é contratada para tomar conta de duas crianças órfãs de mãe que vivem sem a presença do pai num casarão antigo (sempre ele!). Logo, a mulher percebe que os espectros da governanta anterior e do amante dela,ambos defuntos, rondam o local e parecem ter uma estranha ligação com as crianças. Mesmo depois do desfecho dessa trama, o leitor não sabe se as almas penadas existem ou estão apenas nos delírios da protagonista – uma dúvida que alguns críticos comparam aos questionamentos de Bentinho com relação a Capitu, no clássico machadiano Dom Casmurro. A volta do parafuso se encaixa perfeitamente na definição do linguista búlgaro-francês Tzvetan Todorov, expressa no famoso ensaio Introdução à literatura fantástica: para ele, o “fantástico” reside na incerteza, na ambiguidade, e não na convicção dos personagens (e do leitor) de que o sobrenatural existe.


O autor americano Stephen King é um dos mais celebrados da atualidade. Foto: Divulgação

OUTRAS NARRATIVAS
Nas últimas décadas do século 19 e nos primeiros anos do século 20, outros escritores trouxeram valiosas contribuições à literatura de horror: o francês Guy de Maupassant, o inglês Algernon Blackwood, o escocês Robert Louis Stevenson, o indo-britânico Rudyard Kipling, o estadunidense Ambrose Bierce, o galês Arthur Machen.

Mas, para muitos dos fãs do gênero, ninguém soube horrorizar o público como um autor que surgiu na geração seguinte: o já citado Howard Phillips Lovecraft. Os títulos de seus trabalhos são reveladores:Um sussurro nas trevas, Sombras perdidas no tempo. Ele definia o clima de pesadelo extremo de sua ficção, publicada a partir de 1917, como “horror cósmico”.

Para o professor André de Sena, Lovecraft “é o coroamento de toda uma história que vem lá do século 18, porque escreve grandes contos de horror de forma totalmente autoconsciente” – ou seja, com a intenção de mergulhar o pobre leitor num escuro de pesadelos. O escritor incorpora lições aprendidas com os mestres do gótico (Tieck, Hoffmann, Poe) e vai além. “Lovecraft tem muito de um hibridismo que reúne “o cientificismo típico da época em que viveu, o horror e o ‘mal do século’ do Romantismo” – a imbricação de teorias positivistas e uma influência tardia do Ultrarromantismo.

Depois de Lovecraft, o que apareceu de novo ou relevante na literatura de horror? Surgiram escritores de sucesso, sim, nomes como os já mencionados Stephen King e Anne Rice, e também Clive Barker. Mas, desde meados do século passado, foi o cinema de horror que caiu na preferência dos aficionados pelo gênero (leia o texto a seguir). Na visão de André de Sena, isso ocorreu porque as imagens projetadas na tela grande têm mais poder para causar medo do que a narrativa literária. Principalmente nestes tempos dominados pelos efeitos especiais e pela computação gráfica, recursos que transformam qualquer sonho em (quase) realidade do tipo 3D. Essa força é tão grande, que, de acordo com o professor, “as obras literárias de horror, hoje, seguem a estética cinematográfica, com linguagem de roteiro, quadro a quadro. Parece que você está vendo o movimento da câmera, não é pior nem melhor que os livros de outros tempos: é preciso analisar caso a caso, lembrando que, na época do Romantismo, também surgiu uma vasta produção de romances medíocres de horror”. 

ROBERTO BELTRÃO, jornalista, fundador do site O Recife Assombrado e autor de três livros sobre o tema horror.

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