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Lições dos dicionários

TEXTO Evanildo Bechara

01 de Abril de 2012

Evanildo Bechara

Evanildo Bechara

Foto Fábio Motta/AE

Um dicionário é uma obra de ciência, ainda que construída sob a orientação técnica de um grande escritor, como é o caso de Antônio Houaiss e Aurélio Buarque de Holanda, no Brasil, ou Caldas Aulete e Cândido de Figueiredo, em Portugal. Isto se não nos quisermos reportar ao fluminense Antônio de Morais Silva, que, em 1789, inaugurou a produção de dicionários monolíngues do português, só levando em consideração nossa língua, e não o português em relação com outro idioma, geralmente o latim, como acontecia até o aparecimento de Morais. Como todo produto científico, o dicionário se estrutura por critérios metodológicos. Como bem comenta Diderot, numa contribuição ao orgulho da cultura francesa que foi a Encyclopédie de Diderot e d’Alembert: “La langue d’un peuple, son vocabulaire: le vocabulaire est une table assez fidèle de toutes les connaissances de ce peuple” (V. pág. 637, ed. 1755). O dicionário reparte o verbete em seções que distribuem os vocábulos segundo as ciências a que pertencem, e os matizes semânticos em que são empregados na linguagem comum do dia a dia. Por isso, o dicionário espera que o consulente saiba lê-lo, para dele tirar as informações que registra sobre as palavras e expressões que ele recolhe. Há palavras que o leitor já conhece do seu repertório lexical ativo, mas dessa mesma palavra desconhece sentidos decorrentes de franjas semânticas de outros contextos, ou de palavras usuais ou raras inexistentes do seu saber idiomático. Assim, o dicionário não é tão somente o registro do léxico corrente na contemporaneidade do consultador, mas também o testemunho veicular de ideias, concepções e juízos que o passado legou ao presente e que vigem como relíquias culturais. Geralmente tais resíduos são apresentados nos verbetes com o rótulo de sentido figurado ou pejorativo. Muitas vezes quando se apresentam ao consulente estão desligados do conceito originário, ou guardam com este ligação remota. A palavra cigano na acepção posta no banco dos réus pelo Ministério Público Federal de Belo Horizonte é um desses exemplos de sentidos figurados de que vimos falando.

Será um crime de lesa-cultura se for verdadeira a notícia segundo a qual será eliminada do verbete do Dicionário Houaiss a alusão ao sentido figurado da palavra cigano. Tal medida é empobrecer a obra de nosso Confrade do aspecto histórico que a distingue quando comparada com suas congêneres, ao mesmo tempo que a separa dos léxicos de línguas em que se registra o termo cigano com a mesma conotação figurada.

Como vivemos num mundo às avessas, podemos entender os dois seguintes episódios antagônicos, tão distantes um do outro no tempo. Tibério, na Antiguidade clássica, advertido por Ateio por ter usado uma palavra não latina, tranquilizou o gramático, dizendo: “Quando o imperador romano usa uma palavra, ela passa a ser latina”. Ao que respondeu o outro: “César manda nos romanos, mas não na língua”.

Nos nossos dias, em Belo Horizonte, o MPF cassa de um excelente dicionário da língua portuguesa a palavra cigano numa acepção que há séculos faz parte do imaginário coletivo no âmbito cultural luso-brasileiro. 

EVANILDO BECHARA, professor, gramático e filólogo, membro da Academia Brasileira de Letras.

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