Um bom exemplo é a família de Manoel Soares dos Santos, que desde a década de 1960 vive numa casa em uma das curvas da ladeira. Ele conta que, quando morava em Alagoas, teve sucessivos sonhos que indicavam que ali não era o seu lugar. Em um deles, o Padre Cícero em pessoa apareceu e ordenou que arrumasse as malas e pegasse a estrada rumo a Juazeiro. Hoje, sentado numa velha cadeira de balanço, Manoel vê toda a sua família trabalhar na fabricação das tradicionais estátuas de gesso com a figura do “Padim”. A calçada vive abarrotada de pequenos “padrinhos cíceros” brancos que secam sob o escaldante sol do Cariri. Toda a casa foi transformada em oficina e três gerações trabalham na produção das disputadas peças religiosas. Além da tradicional imagem do líder cearense segurando seu cajado, a família recupera antigas imagens sacras, e, em épocas como a Semana Santa e o Natal, aproveita para fabricar soldados romanos açoitando Jesus ou presépios inteiros em variados formatos e estilos. “A maior estátua que fiz foi a de um beato de mais de cinco metros, sob encomenda de um comerciante de Santa Brígida, na Bahia”, diz Cícero dos Santos, filho mais velho de seu Manoel, enquanto retira da fôrma mais um “Padim Ciço” novinho em folha.
O alagoano Manoel Soares mudou-se para a cidade nos anos 1960 e passou a produzir estatuária com a família
No entanto, antes de comprar as estátuas que irão abençoar as salas de milhões de casas nordestinas, os romeiros fazem fila no mais concorrido endereço da Ladeira do Horto. Ali, numa casa de vários cômodos, com uma sala repleta de imagens de santos, uma senhora de 98 anos resguarda a tradição da reza. Também natural de Alagoas – de longe, o estado que mais exporta devotos migrantes ao Juazeiro –, Alzira Mendes do Nascimento chegou ao local ainda criança, trazida pelas mãos de “Mãe Dodô”, devota contemporânea do Padre Cícero e que ficou célebre como a mais poderosa rezadeira da região. Com a morte de “Mãe Dodô”, em 1998, Alzira herdou a casa e, junto com ela, a missão de rezar os milhares de romeiros que batem à sua porta. Em romarias maiores, ela diz que chegou a atender a mais de 600 pessoas por dia. Hoje, com alguns problemas de saúde, ela não consegue manter o mesmo ritmo. Em Juazeiro do Norte, território em que a oração está na ordem do dia, as rezadeiras estão em todos os lugares, cada uma com o seu jeito próprio de exercer o dom. Francisca da Silva, outra devota do Padre Cícero, usa uma garrafinha com água, que coloca na cabeça de quem vai ser rezado. Outras usam ramos de plantas e apenas algumas palavras.
No Museu Vivo do Padre Cícero, há uma sala dedicada ao polêmico episódio do milagre da hóstia
Dando sequência à subida da ladeira, depois de passar pela estação em que Jesus cai pela segunda vez, encontramos Maria Luíza Nunes trançando a palha da carnaúba e encorpando os chapéus que protegerão as cabeças dos romeiros, já devidamente rezadas algumas casas abaixo. Confeccionando as peças há mais de 30 anos, Maria Luíza trabalha hoje ao lado da sua mãe, Maria Izabel, uma senhora de 78 anos que lamenta que apenas um dos cinco filhos tenha aprendido o ofício. “Mas, por um lado, eu acho bom, porque eles estão estudando e podem ter melhores condições de vida”, espera. A artesã nasceu na própria região e, desde criança, é testemunha das cenas de devoção que fazem do caminho o mais autêntico palco para o espetáculo da fé sertaneja. Na famosa Missa do Chapéu, realizada anualmente na Igreja Matriz da cidade, milhares de romeiros se espremem para receber a benção e abanar no ar o chapéu de palha amarelo carregado de esperanças. A exemplo de Maria Luíza, diversos outros artesãos vivem ao longo da Subida do Horto, produzindo esse que talvez seja o mais tradicional item da indumentária do romeiro, depois, é claro, do onipresente escapulário com a imagem do “Padim”.
Objetos que simbolizam promessas e graças alcançadas estão no acervo popular de Juazeiro do Norte
Depois de apreciar a Santa Ceia esculpida na base da estátua do Padre Cícero, os romeiros se emocionam ao “encontrar” seu líder espiritual em tamanho natural, bem ali, na frente dos olhos. O Museu Vivo do Padre Cícero é, na verdade, a origem da famosa Ladeira do Horto. Foi aquele casarão que o religioso escolheu para fazer suas orações e passou a viver durante muitos anos em companhia dos devotos. No local, estão réplicas de cenas cotidianas dele em momentos de descanso, de oração ou mesmo numa reunião com políticos locais na sala de jantar. A riqueza de detalhes impressiona os romeiros que, enfim, são recompensados pelo esforço vivenciando uma espécie de audiência particular com o seu guia espiritual. Não raro, as pessoas confessam algo para um Padre Cícero estático ou simplesmente deixam bilhetes aos seus pés com pedidos de cura e agradecimentos por graças alcançadas.
Desde 1998, a beata Alzira Mendes tem a missão de rezar
milhares de romeiros que batem à sua porta
No altar da capela, ao lado do casarão, há uma imagem do Padre Cícero ladeada pela da Beata Maria de Araújo, protagonizando a cena que transformou a história de Juazeiro do Norte e que custou ao padre sua excomunhão por parte de Roma. Em 1889, durante a missa, uma hóstia teria se transformado em sangue na boca da beata. O suposto milagre teria se repetido várias vezes e rapidamente a notícia de um milagre no Sertão começou a atrair verdadeiras multidões para a cidade, dando origem às romarias que hoje percorrem a ladeira. Atualmente, os estados de Alagoas e Pernambuco lideram a lista de romeiros que chegam a Juazeiro. O resultado faz parte de um levantamento feito a partir de informações cedidas por 178 mil devotos ao Mapeamento da Nação Romeira, uma pesquisa que somou dados estatísticos durante as comemorações do centenário de Juazeiro do Norte, em 2011, e que confirmou que a devoção ao “santo do povo” continua crescendo ano após ano. Ainda hoje, pesquisadores tentam explicar o fenômeno da religiosidade popular que, em apenas um século, transformou uma vila de poucos casebres no maior centro religioso do Ceará e uma das mais importantes cidades do Nordeste.
Se pouco mais de dois quilômetros separam o início da Ladeira do Horto da emblemática estátua erguida em homenagem ao Padre Cícero, a diversidade de personagens e de histórias que se concentram nesses dois mil metros, no entanto, é variadíssima. Além das rezadeiras e dos artesãos, penitentes também identificaram no lugar o metro quadrado mais sagrado do mundo. Para muitos deles, Juazeiro e Jerusalém não são semelhantes apenas na primeira letra de seus nomes. O nome “Ladeira do Horto”, a propósito, é uma homenagem ao bíblico Horto das Oliveiras, onde Judas teria beijado Jesus e dado início ao seu martírio. No imaginário popular, até mesmo o rio Salgadinho, que corre na base do morro, é uma espécie de réplica espiritual do famoso rio Jordão. Não é à toa que, depois de subir a ladeira, passando pelas estações que marcam o trajeto de Jesus rumo à crucificação, o caminho naturalmente siga até o Santo Sepulcro onde, numa gruta transformada em oratório, os devotos ascendem velas e cantam benditos que falam sobre a prisão, o julgamento e a morte de Jesus. No cume do trajeto, imponente em seus 27 metros de concreto e com o olhar direcionado para a planura, o Padre Cícero parece abençoar o esforço dos romeiros.
AUGUSTO PESSOA, jornalista e fotógrafo.