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Olha só o que fizeram à Bela Adormecida!

Depois dos super-heróis, bruxos e vampiros, personagens de contos infantis protagonizam adaptações “mais adultas” para o cinema

TEXTO Ingrid Melo

01 de Março de 2012

Versão perturbadora de 'A bela adormecida', conto dos Irmãos Grimm, concorreu à Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 2011

Versão perturbadora de 'A bela adormecida', conto dos Irmãos Grimm, concorreu à Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 2011

Foto Divulgação

Era uma vez, em uma cidade muito distante, uma jovem linda, de pele muito branca e cabelo de cor vermelho-ouro. Um dia, uma mulher igualmente bela lhe ofereceu uma xícara de chá que a fez adormecer profundamente. Então, essa senhora retirou as roupas da jovem e a repousou em uma cama de um quarto com ares de palácio, no qual ingressou um senhor bem vestido e já idoso. Ele se despiu, enquanto tragava um cigarro, deitou-se ao lado da inerte garota e acariciou seu corpo. Depois, encostou impiedosamente a brasa do cigarro na nuca da menina, ao mesmo tempo em que passeou a língua pelo seu rosto e lhe sussurrou palavras obscenas.

No filme Beleza adormecida (2011), da diretora estreante Julia Leigh, não há espaço para fadas madrinhas e final feliz. O longa, que concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes, no ano passado, traz uma versão perturbadora do conto imortalizado pelos Irmãos Grimm e baseado nos escritos de Charles Perrault. Na história, Lucy, uma universitária imersa em um mundo de drogas e apatia, aceita um trabalho peculiar: ela deverá ingerir um sonífero para satisfazer o fetiche por necrofilia dos clientes. Pode-se perceber que a adaptação pouco tem a ver com a animação lançada em 1959 pela Disney, cuja princesa adormece devido à maldição de uma rainha má e acorda com o beijo apaixonado de um príncipe.

O filme é uma amostra do tratamento que tem sido dado às adaptações de contos de fadas para o cinema. Ainda no ano passado, essa tendência pôde ser observada em longas como Alice no País das Maravilhas (Tim Burton), A Fera (Daniel Barnz) e A garota da capa vermelha (Catherine Hardwicke). Neste semestre, duas clássicas fábulas infantis chegam à tela grande em versão live-action (com atores reais): Branca de Neve e os sete anões João e o pé de feijão. Até 2013, pelo menos mais cinco releituras estão previstas.


Dirigido por Bryan Singer (X-Men 1 e 2), o filme João e o pé de feijão apresenta a história de forma sombria. Foto: Divulgação

Segundo o professor do curso de Cinema da Universidade Federal de Pernambuco, Rodrigo Carreiro, a recriação dos contos de fadas decorre da ampliação dos recursos da adaptação literária à sétima arte, que se mostrou viável comercialmente. “As versões existem desde as primeiras produções e se tornaram mais comuns depois de sucessos como E o vento levou O mágico de Oz, nos anos 1930. Quando a história faz sucesso em outra mídia, o cinema sabe que ali existe potencial. Como fazer um filme é caro, é natural que se queira arriscar menos em tramas originais. Daí, a atual opção pelas fábulas infantis: são histórias que já foram testadas em várias gerações e funcionaram”, explica.

A professora Ângela Prysthon, também da UFPE, concorda. Para ela, esse interesse nas histórias infantis é cíclico em Hollywood. “Esse fenômeno compreende desde versões mais ou menos fiéis (como as da Disney), passando pelas paródias (Branca de Neve e os três patetas, dirigido por Walter Lang e Frank Tashlin, em 1961), até versões mais estranhas (A companhia dos lobos, Neil Jordan, 1984). Nessa leva recente, um aspecto interessante é a ‘adolescentização’ das histórias, em uma proximidade com outros gêneros, como os filmes de vampiros, que pode ser observada nas versões de contos de fadas pensadas por Dario Argento (Suspiria, 1977) e Luchino Visconti (Noites brancas, 1957) ”, conta.

As fábulas modernas pegam carona na lacuna deixada por produções como Harry Potter e a saga Crepúsculo, além de se valerem de sua posição destacada na memória afetiva dos espectadores. Como se caracterizam por obras de domínio popular repletas de nuances psicológicas e obscuras, é mais simples modificar as histórias e torná-las atraentes ao público, que tem sua curiosidade sobre a nova versão aguçada.

A roupagem inusual da história de Chapeuzinho Vermelho foi o maior mérito de A garota da capa vermelha. Dirigido pela primeira diretora da saga dos vampiros e lobisomens, a trama, repleta de suspense e romance, tinha como alvo os fãs da série. Não à toa, nos cartazes de divulgação, o nome de Catherine Hardwicke se destacava. Não fosse a exploração da sexualidade e dos conflitos psicológicos, como o medo do desconhecido presente nas primeiras versões da Chapeuzinho, o filme estaria destinado ao fracasso, posto que a direção de Catherine não convence. De modo semelhante, A Fera, de Daniel Barnz, seria apenas mais um romance adolescente açucarado, se não abordasse, ainda que superficialmente, questões atuais como o bullying.


Clássico dos contos infantis, Branca de Neve vai ganhar duas adaptações neste ano, uma delas traz Charlize Theron como a Rainha Má. Foto: Divulgação

ESPELHO, ESPELHO MEU
Outro grande catalisador das adaptações das fábulas infantis para o cinema está no fato de as heroínas dessas histórias serem, em sua maioria, jovens mulheres. A maior parte dos frequentadores de cinema são do sexo feminino, na faixa etária que vai dos 13 aos 30 anos. “estudos sobre o fenômeno do blockbuster apontam que o público jovem é o que mais vai ao cinema. As mulheres costumavam ser neglicenciadas, até os pesquisadores perceberem que todos os filmes de bilheterias estrondosas tinham personalidades femininas fortes em sua trama: Titanic (1997) e Avatar (2009), a saga Star Wars...”, lembra Carreiro.

Como um dos principais méritos para o sucesso de um filme está na identificação do público com seus protagonistas, as produtoras enxergam no filão dos contos de fadas uma maneira de fisgar ainda mais essas espectadoras, que veem a tela grande como um espelho e as mocinhas como um reflexo. As duas primeiras adaptações que chegam às salas de projeção este ano, por exemplo, são versões para a Branca de Neve, estreladas pelas “namoradinhas de Hollywood” Julia Roberts e Charlize Theron, e as incensadas Kristen Stewart e Lily Colins.

Em Espelho, espelho meu, dirigido por Tarsem Singh (estreia no dia 6 de abril), Roberts vive a Rainha Má e Colins, a Branca de Neve. O enredo traz uma ambiciosa rainha, que precisa se casar com um príncipe para salvar-se da falência. O mocinho, porém, está apaixonado por Branca de Neve e, para concretizar seus planos, a personagem de Roberts resolve se livrar da princesa, mas ela se junta aos sete anões para recuperar o seu reino.

Em Branca de Neve e o caçador, de Rupert Sandres (nos cinemas nacionais em junho), o mote é uma guerra entre a Rainha Má (Theron) e a Princesa (Stewart). Mas aqui o caçador é bem mais do que um coadjuvante. A personagem de Theron – em uma versão mais maligna que a de Roberts – é a única pessoa capaz de destruir a princesa vivida por Stewart. Mas o que a malvada não imaginou é que a mocinha vinha treinando a arte da guerra com o caçador contratado para matá-la...


Trama com suspense e romance, A garota da capa vermelha teve como público alvo os fãs de Crepúsculo. Foto: Divulgação

VARINHA MÁGICA
Outra vilã dos contos de fadas ganhará destaque no cinema: Malévola, a rainha má de A Bela Adormecida, em filme dirigido por Robert Stromberg, com Angelina Jolie. O roteiro ficou a cargo de Linda Woolverton, que assinou as páginas do Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton, e o filme mistura computação gráfica e live-action. A tecnologia é uma varinha mágica para as atuais releituras das fábulas infantis no cinema. “É incrível como filmes com atores de verdade se esforçam para parecer irreais, com aspecto de desenho animado, remetendo à escola de fantasia de Georges Méliès. Ao mesmo tempo, desenhos animados querem parecer mais reais que a realidade. Isso mostra que, em comum aos filmes-fábula, está a fantasia explícita. Já essa fantasia está cada vez mais possível de realizar, graças à liberdade de criação da tecnologia digital. Hoje, pode-se adaptar ao cinema praticamente tudo. O 3D facilita a ilusão e o momento é extremamente oportuno”, analisa o crítico de cinema André Dib.

Como exemplo, estão os filmes Hansel e Gretel: caçadores de bruxas, longa dirigido por Tommy Wirkola, que estreia no próximo semestre, e Jack the giant killer, de Bryan Singer, que será lançado em junho. Ambos possuem a tecnologia 3D e, enquanto o primeiro atualiza a fábula de João e Maria, o segundo dedica-se a recriar a história de João e o pé de feijão. Além desses, há o superaguardado Pinóquio, de Guillermo Del Toro (O labirinto do fauno, 2006), cuja versão também em 3D e em stop-motion está prevista para 2013. O mexicano não para por aí: tem engatilhada uma adaptação de A Bela e a Fera, que ele começará a filmar no ano que vem, e já possui até protagonista definida – Emma Watson, a Hermione de Harry Potter.

“Quando a tecnologia dá um salto grande, faz com que os filmes do passado pareçam velhos ou malfeitos. Outro dia, por exemplo, fiquei chocado com os efeitos especiais de De volta para o futuro (Robert Zemeckis), que pareciam tão perfeitos em 1985. Refilmar é uma boa maneira de despertar o interesse das novas gerações, que rejeitam esses filmes antigos porque narrativa ou estilisticamente não estão no padrão a que eles estão acostumados”, afirma Carreiro.

Então, não se espantem se, no próximo ano, ao assistirem à versão de A pequena sereia, de Shana Festa, se depararem com a Ariel cometendo suicídio em 3D – a versão é bem mais sombria que a do clássico da Disney. O casamento entre contos infantis, tecnologia e o cinema para adultos parece estar fadado ao “felizes para sempre” – e com gerações e gerações de herdeiros. 

INGRID MELO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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