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Menus: As circunstâncias para se dispor pratos em lista

Restaurantes apostam na figura do chef consultor, que cria e executa cardápios, treina equipes e orienta proprietários para se destacarem no mercado

TEXTO EDUARDO SENA
FOTOS RICARDO MOURA

01 de Março de 2012

Imagem Karina Freitas

O músico francês Henri Salvador não imaginaria que os versos “Il fait dimanche au bord de l’eau/ Vin blanc glacé sous les glycines”(em tradução literal: “É domingo à beira d’água/vinho branco gelado sobre as glicínias”), de sua canção Il fait dimanche, pudessem inspirar a concepção de cardápio de um bistrô recifense. Tal feito partiu do chef Leandro Ricardo, que viu na união do vinho branco e das glicínias (um tipo de arbusto que bota flores de cor lilás) à sensação repousante do domingo o ponto de partida para o trabalho.

Há 21 anos trabalhando com cozinha, sendo os últimos 10 desses também dedicados à área de consultoria gastronômica, o chef concluiu que a casa não poderia servir apenas café e acepipes óbvios que rimassem com a bebida; poderia ir além. Imbuído da elegância de Il fait dimanche, apresentou sua proposta à contratante – um projeto que transformaria o antigo café num bistrô, em que se pudesse fazer uma refeição típica de uma casa do gênero, mas com a simpatia de um café. Assim nasceu o Giardino Bistrô, em 2009.

O experiente chef lembra, entretanto, que nem sempre é o poético que desencadeia o processo de criação. “Restaurante é, antes de tudo, um negócio. E, se o mercado está aquecido e movimentado, é preciso redobrar as atenções para as demandas e particularidades dele, para atendê-lo da melhor maneira”, alerta Leandro, que não abre mão de um estudo minucioso do mercado nas adjacências da casa que está para abrir, respeitando a lei de oferta e demanda. “É preciso pesquisar para não se repetir. O chef consultor cria conceitos e produtos diferentes para o cliente e não para ele. É como gerar um filho e entregá-lo.”

Igualmente especialista nesse métier, o chef paulista – radicado há uma década no Recife – Hugo Prouvot, que já prestou consultorias para casas como Mingus, Ferreiro Café e Bistrot du Vin, defende a importância de um chef consultor, quando o assunto é criação de menus. “Existe uma distância muito grande entre o ser chef e ser chef consultor. Enquanto o primeiro se especializa na criação e execução, o segundo, além dessas características, traz uma bagagem mercadológica que lhe permite menor chance de erros diante de sua atuação no mercado”, pontua.


Leandro Ricardo não dispensa estudo de mercado do entorno
da empresa em que vai intervir

Prouvot lançou recentemente a empresa Gastronomika, responsável por desenvolver, estudar e implantar um trabalho com base e capacitação profissional nos estabelecimentos. Ele lembra que um dos primeiros passos de uma consultoria começa na contratação de pessoal. “Se eu tenho um restaurante francês, sei que a variedade de molhos com os quais tenho que trabalhar é muito maior, a aptidão para a delicadeza de confecção e montagem também é levada em conta. Já em um italiano, a possibilidade de molhos é menor, no entanto, é um trabalho mais rústico e braçal, até. Essas minúcias devem ser consideradas na hora da contratação dos cozinheiros e auxiliares”, exemplifica.

A quantidade de lugares na casa também é outro ponto importante no processo de concepção do menu. “Num bom restaurante de 60 lugares, o ideal é ter, entre todas as opções, um total de 35 pratos”, calcula Hugo. A premissa faz parte da equação de funcionamento da cozinha, que determina: “Quanto menos itens no cardápio, mais atenção na comida, resultando na excelência do produto”. O cálculo é motivo de impasse entre consultores e proprietários.

Segundo o chef, empresários inexperientes no ramo imaginam que quanto mais extenso o cardápio, maior a credibilidade e o giro econômico da casa.

Depois de muita conversa entre consultor e proprietário – com concessões de todos os lados, e definida a quantidade de pratos do menu –, os chefs entram em fase de estudo para conceber o cardápio, de acordo com o rótulo da casa. “Para além de uma pesquisa sobre cozinha regional, por exemplo, precisamos perceber de que forma podemos melhor apresentá-la e interpretá-la na casa em questão; devemos estar atentos a questões geográficas, como sazonalidade do produto, de que forma ele vai chegar até à casa. Sempre queremos ingredientes frescos e da melhor qualidade”, explica a chef Taciana Teti que, junto à chef Lícia Maranhão, mantém o Ateliê das Chefs, no qual desenvolve o trabalho de consultoria e personal chef.

Para Taciana, o norte para a concepção é sempre o desejo do cliente. “Como consultora, faço apenas intromissões no sentido de lapidar a ideia do contratante, e situá-lo das condições reais de uma cozinha. Algo como: ‘Você quer carne de javali no seu restaurante? Então, saiba que carne de javali é comprada em grande quantidade e é pouco pedida pelos clientes. Onde vamos armazenar essa grande quantidade de carne? Vai ficar sempre congelada? E a qualidade do produto, já que não teremos o produto consideravelmente fresco?’”. A partir daí, o consultor elabora e sugere o menu ao contratante, que acata ou não, fazendo as suas intervenções. “Um grande vício que os empresários têm é o de querer estender o seu gosto pessoal ao cardápio, tentando tornar excentricidades gastronômicas em algo universal. Nem todo mundo gosta de carne de tatu, por exemplo”, diz a chef Lícia Maranhão.


Contratação de pessoal é um dos primeiros aspectos considerados
pelo chef consultor Hugo Prouvot (D)

TREINAMENTO
Após a definição do cardápio, dá-se início à parte mais dinâmica do trabalho, processo que compreende da seleção de fornecedores à escolha de louças. “Até nesse aspecto, a importância de um chef experiente é importante. Por ter passado por várias consultorias, ele vai indicar os melhores fornecedores e promover parcerias, otimizando o processo de elaboração da casa”, defende Leandro Ricardo. “Se houver oportunidade, dou ‘pitaco’ na arquitetura da casa e até na música que vai tocar. Cozinha é holística, por isso mesmo deve ter uma equipe homogênea, na qual todo mundo deve se ajudar. Com essa sinergia, o resultado sai totalmente harmonioso”, sugere.

Já Hugo Prouvot faz questão de escolher cada utensílio que a cozinha terá, da panela usada na cocção à louça que vai à mesa. “Quem pensou o cardápio, sabe do que realmente precisa para aquele prato ser executado da maneira correta. Não é uma questão de capricho, é técnica. Existem insumos que, para atingir o seu ponto ideal, precisam de fornos especiais, maçaricos, mixers. A louça também vai definir a forma mais apropriada do prato vir à mesa, que é critério de primeira ordem da clientela gastronômica atual: apresentação”, explica.

Compras devidamente realizadas, começa o trabalho mais nevrálgico no processo de consultoria: o treinamento da equipe. Sim, porque o chef foi contratado para desenvolver o cardápio, repassá-lo para o cozinheiro residente e supervisioná-lo durante algum tempo (definido previamente no contrato). “Costumo dizer que preciso criar pratos com 200% de perfeição porque, invariavelmente, metade da excelência do prato se perde nesse repasse. Sendo assim,a casa em questão sempre terá um prato com 100% de qualidade”, pontua Leandro Ricardo.

De olho na qualidade futura, o chef Hugo Prouvot prepara todo o cardápio para a equipe inteira do restaurante, incluindo garçons e “pratos” (funcionários responsáveis pela lavagem de louças). A ideia é que toda a equipe tenha uma referência correta do que deve ser apresentado ao cliente, a fim de fomentar a compreensão do bom nível do serviço que deve ser prestado.


O trabalho de Taciana Teti e Lícia Maranhão é orientado pelo
propósito do cliente

A dupla Lícia Maranhão e Taciana Teti também partilha da mesma ideia no que diz respeito ao aspecto determinante do treinamento para o sucesso do empreendimento. Para isso, as chefs acham fundamental a abertura da casa no esquema soft open (abertura não oficial para período de testes) e se dedicam integralmente à cozinha nessa fase. “É preciso passar confiança para os cozinheiros e assistentes que irão levar o trabalho adiante. Confeccionamos toda a demanda de pedidos com eles, mostrando as técnicas de armazenamento, cocção, temperatura e montagem. É quase que um ‘pegar na mão’ para fazer”, explica Taciana Teti. “Além do que, a soft open tira um pouco da pressão, minimizando os erros – se porventura eles acontecerem, temos essa benesse do ‘não oficial’ e vamos reequacionando a dinâmica da cozinha da melhor forma possível”, esclarece Lícia.

CAMINHOS SEGUROS
Nessa sucessão de etapas, os chefs consultores buscam um lugar seguro para minimizar as chances de erro num cardápio. Não existe fórmula infalível, mas a manutenção de clássicos nos cardápios é inevitável, por exemplo. Naturalmente, aqueles cujo rótulo permite. Na segmentação do menu de um restaurante variado, por exemplo, os pratos, comumente, estão divididos entre carne vermelha, peixes, aves, frutos do mar e caprinos. Nas plagas pernambucanas, nada vende mais do que medalhões de filet mignon sobrepostos por um molho escuro e camarões com molho de queijo, ambos acompanhados por uma massa, atestam os chefs. No entanto, o desafio é sempre o de reinventar o clássico, dando-lhe o toque de quem o assinou.

Esse foi o trabalho encarado pela dupla Lícia e Taciana, ao ser incumbida de criar um menu para uma sorveteria. Ora, sorveterias, como o próprio nome faz supor, são casas cujo principal produto é sorvete na sua forma mais bruta. No máximo, recebem uma calda e pequenas guloseimas por cima. A responsabilidade ainda foi maior, por se tratar de um projeto pioneiro da Fri-Sabor que, fundada no Recife em 1957, sobreviveu a diversas fases, à concorrência cada dia mais acirrada e refez-se em grande estilo.

No cardápio, 12 sobremesas elaboradas com a matéria-prima da casa, claro. “O mais desafiante foi deixar o sorvete com cara de gourmet, enxergando nele outras possibilidades. Do outro lado, os pratos tinham que ser rápidos, sorveteria é rotativa, ninguém espera muito. Come-se e vai-se embora”, explica Taciana Teti. Mas engana-se quem pensa que as consultoras se limitaram ao sabor doce do gelado. “Pensamos também em salgados, para aplacar aquela pequena fome de belisquetes rápidos. E foi uma grande surpresa: atualmente, uma das coisas que mais se vendem na casa são os sanduíches especiais”, diz Lícia. 

EDUARDO SENA, jornalista. 
RICARDO MOURA, fotógrafo, estagiário da Continente.

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