Contra a força bruta? Palavras!
Livros avaliam a atuação da “imprensa nanica”, profusa nas décadas de 1960 e 1970, e produzida por sindicalistas, intelectuais e anônimos que resistiram à ditadura militar
TEXTO Marcelo Abreu
01 de Março de 2012
Fundado em 1975, o jornal Movimento cobriu as greves e o surgimento do líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva
Foto Juca Martins/ Olhar Imagem
A imprensa alternativa brasileira, que marcou época nos anos 1960 e 1970 como instrumento de resistência à ditadura militar, volta a ser tema de debate com a publicação de três livros que tratam do assunto, além de uma série de depoimentos lançados em vídeo. Os chamados jornais nanicos variavam muito em qualidade editorial, na apresentação gráfica, no perfil dos colaboradores, na capacidade de chegar aos leitores através de assinaturas ou de vendas avulsas em bancas e eventos políticos. Muitos não passavam dos primeiros números. Mas todos tinham em comum a coragem de enfrentar o sistema, a censura e as ameaças e marcar sua posição política com clareza e determinação.
O livro As capas desta história, lançado pelo Instituto Vladimir Herzog, é possivelmente a publicação mais completa já feita sobre os alternativos. Coordenada pelo jornalista Ricardo Carvalho, a obra, em grande formato (38cm x 29cm), quase no tamanho original, reproduz capas de jornais não convencionais e clandestinos que circularam no Brasil desde o começo do século 20 até o fim da ditadura militar, em meados dos anos 1980. O forte são as publicações de esquerda e as ligadas à contracultura dos anos 1970. O livro traz também um acervo de capas de jornais e boletins lançados no exterior, em línguas como o italiano, francês e sueco, que exerceram o papel de veículo entre os exilados e de apoio aos ativistas políticos brasileiros.
As capas demonstram a riqueza da cena cultural nacional na oposição ao regime militar. Dependendo de quem fazia o jornal, as linhas editoriais iam do deboche humorístico às discussões teóricas a respeito do processo revolucionário brasileiro dentro da ótica marxista, da luta sindical ao desbunde contracultural. No livro, estão fac-símiles de publicações, como a revista PifPaf (lançada por Millôr Fernandes, em 1964, e considerada como iniciadora do período mais fértil da imprensa alternativa no Brasil), de O Sol, jornal que circulou diariamente durante alguns meses de 1967, e do Opinião(semanário muito importante criado pelo empresário nacionalista Fernando Gasparian, em 1972).
De matriz trabalhista, A Hora Social teve origem entre 1919 e
1920, no Recife. Imagem: Reprodução
Há curiosidades, como o jornal anarquista O Inimigo do Rei, publicado na Bahia. A Tribuna Metalúrgica, lançada em 1971 pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, tinha como diretor um certo Luiz Inácio da Silva. O católico O São Paulo era da arquidiocese, comandada por Dom Paulo Evaristo Arns. O Coojornal, de Porto Alegre, era formado por uma cooperativa de jornalistas. Novos Rumos foi o jornal oficial do PCB até 1964. Tição, do Movimento Negro Unificado, apareceu em 1978. O Porantim, do Conselho Indigenista Missionário, teve sua primeira edição no mesmo ano e existe até hoje.
Estão também lá o Amanhã, do Grêmio da Faculdade de Filosofia da USP, e A Classe Operária, órgão oficial do PCdoB, que virou apenas um boletim mimeografado nos anos mais pesados da repressão;O guerrilheiro, da Ação Libertadora Nacional de Carlos Marighella; a Tribuna da Luta Operária, do PCdoB, e a Voz da Unidade, do PCB, que surgiram já no processo de redemocratização, em condições menos adversas.
O grande formato de As capas desta história proporciona também uma apreciação sobre os padrões gráficos usados na época, as inovações estéticas às vezes feitas em oficinas gráficas clandestinas e muito precárias.
Hebdomadário carioca, de 1969, O Pasquim reuniu elenco competente
de redatores e desenhistas. Imagem: Reprodução
Sendo um dos principais títulos da imprensa alternativa brasileira, um jornal em especial mereceu estudo somente para ele. Trata-se do livro Jornal Movimento – uma reportagem, de Carlos Azevedo, da Editora Manifesto. Em 336 páginas, a obra conta, a partir de novos depoimentos, a trajetória da publicação que circulou entre 1975 e 1981. Os personagens que participaram da elaboração do Movimentorelembram como decidiram sair do Opinião e fundar o novo semanário, criando uma espécie de cooperativa de jornalistas que vendia ações aos simpatizantes. Tinha entre seus apoiadores a nata da intelectualidade progressista da época. Nomes como Fernando Henrique Cardoso, Chico Buarque de Holanda e Hermilo Borba Filho faziam parte do conselho editorial.
O grande personagem do Movimento é o jornalista pernambucano Raimundo Rodrigues Pereira, nascido em Exu e radicado em São Paulo desde criança. No livro, Pereira passa em revista as dificuldades para criar e manter o jornal, as constantes polêmicas internas, a luta contra a censura e a decisão de fechar a publicação, em 1981.
FENÔMENO MUNDIAL
A imprensa alternativa foi, durante boa parte do século 20, um fenômeno mundial. Em 1973, o filósofo Jean-Paul Sartre caminhava pelas ruas de Paris vendendo exemplares do Libération, diário de tendência maoísta do qual foi diretor por um ano. Nos Estados Unidos, jornais como The Village Voice e o The East Village Other, ambos de Nova York, eram a voz da cultura underground.
O impresso De Fato foi criado, em 1976, por jornalistas que se demitiram
do Jornal de Minas, que defendia as ações do regime militar.
Imagem: Reprodução
A própria Rolling Stone, hoje publicada em vários países, começou como uma revista alternativa na Califórnia, em 1967. A existência de um conselho de redação no qual todos tinham voz e voto, como existia no francês Le Monde, nos anos 1970, fascinava os jornalistas de muitas partes do mundo que buscavam uma imprensa mais independente e engajada.
O Recife também teve sua imprensa alternativa (não citada nos livros acima). Ainda que tenham sido experiências muito incipientes, houve por aqui jornais que ajudaram a movimentar intelectuais, poetas, jornalistas e cartunistas no início dos anos 1980, com títulos como O Rei da Notícia, Universo, O Eventualloyd, Papa Figo, Príncipe e Oxente.
Os livros sobre a imprensa alternativa de décadas passadas suscitam uma série de discussões importantes sobre os motivos que causaram a diminuição no ímpeto de contestação através das palavras impressas em jornais e revistas.
Idealizada por Millôr Fernandes, Pifpaf
inaugurou, em 1964, o ciclo da imprensa
alternativa contra a ditadura no país.
Imagem: Reprodução
Diante da diversidade e quantidade de publicações do passado, é inevitável que se pergunte como foi possível que a redemocratização do país e as facilidades atuais de publicação não tenham, paradoxalmente, ajudado a imprensa alternativa. Seria necessário um regime de exceção a fim de que jornalistas, pensadores e intelectuais se mobilizassem para questionar o sistema através da palavra escrita? Que papel teria o surgimento da internet na dispersão dos interesses, num momento em que tudo pode ser publicado (pelo menos, online) e todo mundo fala, mas parece que ninguém escuta?
Raimundo Pereira, respeitado por ter transitado entre órgãos da grande imprensa, como Veja e Realidade e os principais alternativos, como Opinião e Movimento, acredita que a imprensa nanica ainda é necessária porque “acabou a ditadura militar, mas veio a ditadura do capital financeiro”. Pereira diz que blogs independentes não substituem o jornalismo alternativo de qualidade. “Não se pode combater fatos apenas com opiniões. É preciso uma apuração jornalística profissional. É um delírio liberal achar que cada um pode fazer sozinho um jornal em casa, através da internet”, afirma.
O empresário Fernando Gasparian foi o criador do jornal
Opinião. Foto: Reprodução
DOCUMENTOS DA CENSURA
Outro livro que trata da relação entre a palavra impressa e o regime militar é Repressão e resistência – censura a livros na ditadura militar, publicado pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp). A autora Sandra Reimão reúne artigos, escritos originalmente para revistas acadêmicas, que detalham a atuação dos censores no caso de livros hoje famosos, como Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós. Aborda também a censura a revistas como a Status.
O trabalho de Reimão tem a virtude de resgatar, nos arquivos, os originais dos despachos das autoridades, que são interessantes para se observar a lógica que determinava as decisões de tirar de circulação uma publicação jornalística ou um trabalho artístico. Os pareceres emitidos pelo serviço de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal são particularmente ilustrativos. Através de números, o livro deixa claro como a repressão não funcionava em todos os momentos, deixando passar muita coisa que só era apreendida depois de chegar ao comércio. Repressão e resistência mostra também que as sugestões para a censura de livros e revistas partiam, muita vezes, de reclamações feitas por leitores que escreviam ao ministro da Justiça pedindo providência para que determinados assuntos não fossem abordados em livros escolares, por exemplo.
O jornalista pernambucano Raimundo Pereira (4º à esq.) editou os jornais Movimento e Opinião. Foto: Reprodução
Os protagonistas desta história – a imprensa alternativa, clandestina e no exílio no período 1964 - 1979 (do golpe à anistia), também do Instituto Vladimir Herzog, é uma série de 12 DVDs que reúne 60 entrevistas com personagens que vão de Ziraldo (Pasquim) e Ana Arruda Callado (O Sol) a Bernardo Joffily (Tribuna da Luta Operária). Lá também se encontram depoimentos de jornalistas que, não tendo se notabilizado exatamente na imprensa alternativa, foram importantes com seu trabalho na resistência à ditadura, como Fernando Morais, Juca Kfouri e Fernando Pacheco Jordão.
Por ironia da história, a trajetória desses jornais que combatiam o governo militar e o capitalismo chega hoje aos leitores com patrocínio oficial do Ministério da Cultura, de órgãos estatais e até do grande capital privado. A Petrobras, por exemplo, financiou a coleção de DVDs e o livro sobre o Movimento. O BNDEs financiou As capas desta história, que teve o apoio também de grandes empresas privadas, como Souza Cruz e Camargo Corrêa. Repressão e resistência foi publicado com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
MARCELO ABREU, jornalista, professor universitário, autor de livros-reportagem e de viagem, como De Londres a Kathmandu.