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'Clara dos Anjos': A pele que o autor habita

Reedição do romance corrobora as referências autobiográficas na abordagem ficcional de Lima Barreto sobre conflitos raciais no Brasil

TEXTO Pedro Paz

01 de Março de 2012

Lima Barreto

Lima Barreto

Imagem Janio Santos

Um dos desvios que podem acometer a crítica literária é inclinar-se, exageradamente, à biografia de um escritor em detrimento da avaliação técnica da sua obra. As circunstâncias pessoais não são aspectos que devam ser relevantes na interpretação da obra ficcional. Contudo referências à vida do autor às vezes se tornam incontornáveis. No caso do romancista carioca Lima Barreto (1881-1922), vivências amargas são inseparáveis da sua produção literária. Sua intenção, por exemplo, de promover debate em torno de questões de raça na sociedade brasileira estão em Clara dos Anjos, cuja primeira edição ocorreu em 1948.

Reeditado pela Penguin Companhia, o romance é acompanhado de textos dos críticos Sérgio Buarque de Holanda, Lúcia Miguel Pereira e Beatriz Resende, que confirmam elementos autobiográficos na abordagem do preconceito de cor e raça pelo autor. A edição também apresenta um conjunto de notas explicativas de Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Galdino que auxiliam na interpretação textual por meio da explicação de metáforas e autorreferências presentes na narrativa.

Lima Barreto anotou situações de preconceito por ele enfrentadas. Seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, teve acesso a esses registros confidenciais antes mesmo da publicação deles em livro, em 1956, pela editora Brasiliense, sob o título de Diário íntimo. Na época, o material foi cedido a Sérgio Buarque de Holanda, que, na primeira publicação de Clara dos Anjos, relata um desses acontecimentos que marcariam a vida do escritor até o seu perecimento: “Numa entrada correspondente ao mês de novembro de 1904, ano em que trabalhava na versão primitiva de Clara dos Anjos, consta que, de volta da Ilha do Governador, onde fora pagar uma dívida do pai, encontrou um desafeto, que passeava ‘como me desafiando’, diz, ao lado da esposa. ‘O idiota’, prossegue, ‘tocou-me na tecla do sensível, não há como negá-lo’. Ele dizia com certeza: ‘Vê, seu negro. Você pode vencer nos concursos, mas nas mulheres não. Poderás arranjar uma, mesmo branca como a minha, mas não desse talho aristocrático’ ”.

No prefácio que escreveu para o livro, Sérgio Buarque de Holanda afirma que a obra de Lima Barreto é, em grande parte, uma confissão mal-escondida de ressentimentos, de malogros pessoais, que, nos seus melhores momentos, ele soube transfigurar em arte. Compara Lima a Machado de Assis, escritor também mulato. “A verdade é que Lima Barreto não foi o gênio de que suspeitam alguns dos seus admiradores e nem é possível, sem injustiça, equipará-lo ao autor de Brás Cubas. Ele não conseguiu forças para vencer, ou sutilezas para esconder, à maneira de Machado, o estigma que o humilhava”, aponta.

De fato, Lima Barreto não foi tão elegante quanto Machado de Assis no trato daquilo que o afligia. Antes de abordar aspectos do problema do mestiço em Clara dos Anjos, o romancista já o deixa transparecer em vários escritos. Em Isaías Caminha, por exemplo, há o episódio em que um caixeiro atende mal o personagem que lhe pede troco, ao passo que recebe com prazer a reclamação de outro freguês, este louro, e não mestiço, como Isaías. Uma curiosidade em Clara dos Anjos é que a sedução da protagonista por um malandro menos humilde ocorreria em 13 de maio, dia em que foi proclamada, como nos diz a história oficial, a Abolição da Escravatura.

PROJETO INICIAL
Na apresentação que faz à obra, intitulada Em defesa de Clara dos Anjos, a doutora em literatura comparada Beatriz Resende afirma que, segundo o projeto inicial do autor, a história de clara deveria se desdobrar em outras, tomando tons épicos que a aproximariam de um “germinal negro”.

Essa ideia está anotada no diário do autor, em janeiro de 1905: “Registro aqui uma ideia que me está perseguindo. Pretendo fazer um romance em que se descrevam a vida e o trabalho dos negros numa fazenda. Será uma espécie de Germinal negro, com mais psicologia especial e maior sopro de epopeia”. Para a especialista, a competência do escritor o impediu de escrever tal relato de inspiração naturalista, mas a intenção de colocar em sua obra o debate em torno de questões de raça permaneceu até a realização de Clara dos Anjos, no final da vida do escritor. “Clara tornou-se o oposto da famosa Rita Baiana, mulata sedutora de O cortiço, do naturalista Aluísio Azevedo, ou das inúmeras mulatas que irão povoar o universo literário de Jorge Amado”, relaciona.

Ao fazer uma análise de Clara dos Anjos, é interessante observar que o modelo de produção folhetinesco, advindo da experiência de Lima Barreto como jornalista, trouxe diversas qualidades à sua narrativa. A ensaísta Marlyse Meyer aponta que, entre os ganhos que disso resultam, estão a mobilidade da narrativa, que pula de um personagem para outro como condutor da ação e o intercalar dos capítulos dedicados ao desenrolar da trama com outros, ocupados com a reflexão sobre a vida nos subúrbios, o empobrecimento da população e o total desamparo do estado ao cidadão comum.

Outros méritos de sua escrita são a criação das personagens e as múltiplas formas de manifestação do narrador. Beatriz Resende aponta ainda que, no caso de Lima Barreto, a voz do narrador, sem dialogismo, arrisca-se a apresentar cada uma das figuras – que pelos subúrbios se movem – como esquemáticas, naturalistas ou exóticas. “O discurso do eu-lírico cola-se ao personagem em um momento; em outro, cede lugar a uma construção do romance ao ponto de vista de sua criatura. A liberdade em relação aos padrões restritos de uso da linguagem, a tentativa de incorporar o linguajar popular, inclusive dos negros pobres, sem identificar-se, porém, com o ideário modernista, faz com que o romance habite um espaço pouco definido na avaliação crítica.”

A primeira versão de Clara dos Anjos é o conto publicado em Histórias e sonhos, coletânea organizada pelo próprio autor em 1920. A narrativa foi publicada na Revista Souza e Cruz. O capítulo inicial, no entanto, aparece na revista Mundo Literário, de maio de 1922, como O Carteiro, seguido da indicação: “Página inédita do romance Clara dos Anjos a sair brevemente”. O folhetim terminou sendo publicado após a morte de Lima Barreto, de janeiro de 1923 a maio de 1924, e a citada primeira edição em livro, de 1948, saiu pela Editora Mérito. 

PEDRO PAZ, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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