Na apresentação que faz à obra, intitulada Em defesa de Clara dos Anjos, a doutora em literatura comparada Beatriz Resende afirma que, segundo o projeto inicial do autor, a história de clara deveria se desdobrar em outras, tomando tons épicos que a aproximariam de um “germinal negro”.
Essa ideia está anotada no diário do autor, em janeiro de 1905: “Registro aqui uma ideia que me está perseguindo. Pretendo fazer um romance em que se descrevam a vida e o trabalho dos negros numa fazenda. Será uma espécie de Germinal negro, com mais psicologia especial e maior sopro de epopeia”. Para a especialista, a competência do escritor o impediu de escrever tal relato de inspiração naturalista, mas a intenção de colocar em sua obra o debate em torno de questões de raça permaneceu até a realização de Clara dos Anjos, no final da vida do escritor. “Clara tornou-se o oposto da famosa Rita Baiana, mulata sedutora de O cortiço, do naturalista Aluísio Azevedo, ou das inúmeras mulatas que irão povoar o universo literário de Jorge Amado”, relaciona.
Ao fazer uma análise de Clara dos Anjos, é interessante observar que o modelo de produção folhetinesco, advindo da experiência de Lima Barreto como jornalista, trouxe diversas qualidades à sua narrativa. A ensaísta Marlyse Meyer aponta que, entre os ganhos que disso resultam, estão a mobilidade da narrativa, que pula de um personagem para outro como condutor da ação e o intercalar dos capítulos dedicados ao desenrolar da trama com outros, ocupados com a reflexão sobre a vida nos subúrbios, o empobrecimento da população e o total desamparo do estado ao cidadão comum.
Outros méritos de sua escrita são a criação das personagens e as múltiplas formas de manifestação do narrador. Beatriz Resende aponta ainda que, no caso de Lima Barreto, a voz do narrador, sem dialogismo, arrisca-se a apresentar cada uma das figuras – que pelos subúrbios se movem – como esquemáticas, naturalistas ou exóticas. “O discurso do eu-lírico cola-se ao personagem em um momento; em outro, cede lugar a uma construção do romance ao ponto de vista de sua criatura. A liberdade em relação aos padrões restritos de uso da linguagem, a tentativa de incorporar o linguajar popular, inclusive dos negros pobres, sem identificar-se, porém, com o ideário modernista, faz com que o romance habite um espaço pouco definido na avaliação crítica.”
A primeira versão de Clara dos Anjos é o conto publicado em Histórias e sonhos, coletânea organizada pelo próprio autor em 1920. A narrativa foi publicada na Revista Souza e Cruz. O capítulo inicial, no entanto, aparece na revista Mundo Literário, de maio de 1922, como O Carteiro, seguido da indicação: “Página inédita do romance Clara dos Anjos a sair brevemente”. O folhetim terminou sendo publicado após a morte de Lima Barreto, de janeiro de 1923 a maio de 1924, e a citada primeira edição em livro, de 1948, saiu pela Editora Mérito.
PEDRO PAZ, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.