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Truffaut: Os ecos de um francês na tela

Cineasta, que completaria 80 anos neste mês, é uma das influências mais constantes no cinema contemporâneo

TEXTO Luiz Joaquim

01 de Fevereiro de 2012

François Truffaut

François Truffaut

Foto Reprodução

Ainda está em cartaz, em alguns cinemas do país, o filme francês A guerra está declarada (2011). Sob direção de Valérie Donzelli, a partir do roteiro do ex-marido Jérémie Elkain, o enredo traduz uma experiência pessoal do casal, que gerou um bebê diagnosticado com câncer. Quem assiste à obra fica impactado não pelo tema já bastante abordado no cinema, mas pela maneira bem-humorada, às vezes irônica, com que esse jovem casal de classe média trava a batalha para vencer a doença do filho.

O mais importante é que, para emoldurar a temática, Donzelli apropriou-se de uma narrativa ágil, sempre protagonizada por personagens falantes e com muita pressa. Algumas estratégias técnicas – como aplicar um zoom num objeto inanimado (um telefone, por exemplo) que terá uma função determinante na dramaturgia, ou a utilização de um círculo que vai se fechando para destacar um detalhe dentro do enquadramento (comum também no cinema mudo) – são facilmente identificadas como próprias do cinema francês.

Poucos atentam, entretanto, que essa associação não se refere ao cinema francês clássico, mas, sim, ao que surgiu só no final dos anos 1950, movido pelos preceitos da liberdade criativa da chamada Nouvelle Vague (nova onda) – movimento criado pelos então jovens críticos de cinema Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Eric Rohmer, Jacques Rivette e François Truffaut, todos da revista Cahiers du Cinéma.

Passadas mais de cinco décadas, não restam dúvidas de que os filmes de Truffaut – que completaria 80 anos no dia 6 de fevereiro deste ano – tornaram-se os mais populares daquele grupo. A partir dali, suas produções viraram referências, não apenas para a própria cinematografia francesa – até os dias de hoje –, mas para todo o mundo.

Fosse em como tratar o comportamento das crianças (Os pivetes, 1957; Os incompreendidos, 1959; O garoto selvagem, 1970; A idade da inocência, 1976), ressaltar a arte da literatura (Fahrenheit 451, 1966; A história de Adele H, 1975), refletir sobre o próprio ofício do cinema (A noite americana, 1973; O último metrô, 1980) ou, sobretudo, em como traduzir num filme o inexorável e infinito encantamento que o mistério das mulheres proporciona aos homens (As duas inglesas e o amor, 1971; O homem que amava as mulheres, 1977; A mulher do lado, 1981; e as quatro últimas aventuras do personagem Antoine Doinel), seria em Truffaut que se pensaria dali em diante.

Um exemplo: quando esbarramos num triângulo amoroso numa obra cinematográfica contemporânea, com dois homens e uma mulher – como Os 3 (2011), de Nando Olival, ou Antes que o mundo acabe (2009), de Anna Luíza Azevedo (só para citar dois recentes brasileiros) –, fica difícil não vincular a situação a Jules e Jim: uma mulher para dois e à liberdade nas relações amorosas (com suas complicações), razão pela qual este filme já chamava a atenção em 1962.

Cria de Jean Renoir, Roberto Rossellini e Alfred Hitchcock, a educação sentimental sempre foi um tema caro a Truffaut, que transcreveu para o curta-metragem Antoine e Colette (1962), uma experiência bem pessoal, quando mudou de endereço na adolescência para ficar próximo da garota que amava, mesmo sem ser correspondido. Para ele, não havia homens maduros. Diante da mulher e do amor, todos se comportavam um pouco como crianças.


Jean-Pierre Léaud (D) interpretou Antoine Doinel, personagem alterego de Truffaut (E), que surge em Os incompreendidos, filme que deu início à Nouvelle Vague. Foto: Reprodução

UMA CERTA TENDÊNCIA
Importante destacar que, mesmo antes de tornar-se um cineasta respeitado, o crítico Truffaut, com apenas 21 anos, chacoalhou a maneira de se perceber um filme com seu primeiro e famigerado artigo, publicado na edição de janeiro de 1954 da Cahiers du Cinéma. O texto Uma certa tendência do cinema francês criticava a chamada “tradição de qualidade” do cinema que se fazia na França até então.

A ideia por ele proposta era redefinir radicalmente os padrões e a maneira de filmar, fosse pela fotografia, enquadramentos, montagem ou interpretação, quebrando as tradições sedimentadas no período do cinema clássico – a de um cinema linear, com narrativa contínua e rigor técnico e performático. Três anos depois, Truffaut, junto ao seu mentor Andre Bazin (editor da Cahiers), criaria a Política dos Autores.

Por ela, o conceito por trás de um filme seria de responsabilidade de uma única pessoa, geralmente o diretor, que centralizaria todas as respostas do ponto de vista de criação dessa obra. Assim sendo, um filme deveria ser feito e visto quase como uma assinatura desse autor, e ela deveria ser estudada com igual importância, independentemente do seu valor orçamentário.

As palavras do jovem crítico ecoaram pelo mundo, influenciando realizadores dos mais diversos países, como a Polônia (Roman Polanski), Itália (Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasollini), Alemanha (Rainer Fassbinder, Werner Herzog e Wim Wenders), entre outros.

No Brasil, em particular, essas duas vertentes do legado de Truffaut – uma, como o pensador que buscava a reflexão crítica sobre a autoria e o alcance político de um filme, e a outra, como o cineasta que destrinchou a alma de seus personagens guiados pelo amor – encontrariam dois discípulos bem distintos e celebrados em sua competência: Glauber Rocha e Domingos Oliveira.

Se Glauber soube como ajustar a linha de pensamento da Política dos Autores para criar um cinema inovador em sua perspectiva estética e ainda fazê-lo politicamente corrosivo, como em Deus e diabo na terra do sol (1964), Oliveira, como nenhum outro, soube transcrever com elegância para o universo carioca o interesse e a fascinação masculina de Truffaut sobre as mulheres, como aparece em Todas as mulheres do mundo (1965), ou Edu, coração de ouro (1968).

Pensando além da indústria cinematográfica, Truffaut, falecido em 1984, aos 52 anos, vítima de câncer, dizia que a vida era muito valiosa para desperdiçá-la dentro de uma sala de cinema. Sendo assim, a única maneira que ele encontrava para respeitar seu espectador com seus filmes era oferecendo ao público toda a beleza com a qual a Sétima Arte pudesse traduzir o amor. Dessa forma, mostrava-se fiel ao espectador, mas também ao próprio cinema, sendo este, talvez, o mais rico ensinamento deixado pelo eterno cineasta que amava as mulheres. 

LUIZ JOAQUIM, crítico de cinema, mestre em Comunicação Social e curador do Cinema da Fundação.

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