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A receita de ternura e ousadia de Truffaut

Impacto do modo de filmar do diretor é percebido em diversas produções cinematográficas atuais, inclusive na obra de realizadores pernambucanos

TEXTO Ingrid Melo

01 de Fevereiro de 2012

François Truffaut

François Truffaut

Foto Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de "Claquete" | ed. 134 | fevereiro 2012]

Na biografia de François Truffaut, escrita por Antoine de Baecque e Serge Toubiana, consta que, em sua primeira carta aos pais, após ser internado em um reformatório, o garoto fez um único pedido: queria que lhe enviassem “um pote de geleia e suas anotações sobre Charles Chaplin e Orson Welles”. Nesse desejo infantil, muito se revela sobre o que, 80 anos após o nascimento do cineasta expoente da Nouvelle Vague, é apontado como um de seus maiores legados. Nenhum outro diretor conseguiu filmar a ternura tão livremente e de maneira tão “doce” – uma mistura perfeita de Chaplin, Welles e geleia. Contudo, se não é possível copiar com rigor a fórmula, é comum observarmos no trabalho de outros cineastas algumas pitadas dela. E, não raro, encontramos traços de Truffaut no cinema de Pernambuco.

Em Viajo porque preciso, volto porque te amo (2011), de Marcelo Gomes (Cinema, aspirinas e urubus, de 2005) e Karim Aïnouz (Madame Satã, de 2002, e O céu de Suely, de 2006), a receita ganha um tempero sertanejo. No filme, um geólogo viaja para fazer uma pesquisa em que percorre todo o sertão nordestino. Durante a jornada, relata para sua “Galega” as pessoas que conheceu, os lugares pelos quais passou e a sensação de vazio que, aos poucos, o domina. É impossível não nos envolvermos com o personagem que nem sequer tem um rosto, pois apenas sua voz, em off, conta a história. Também não há como permanecermos apáticos diante de imagens repletas de poesia, em que quadros do cotidiano culminam por revelar uma paixão dilacerada. Aliados a isso, estão o misto de documentário e ficção, a linguagem ousada e o experimentalismo. Afeto e vanguarda: totalmente Truffaut. “Ele é uma grande inspiração para o meu trabalho, com sua noção de cinema de autor, olhar particular, assinatura. Além disso, tem o fato de bagunçar a gramática cinematográfica, fundir estilos e, principalmente, focar o personagem. Tudo o que me intriga e impressiona – e que eu não entendo – coloco nos personagens que crio. Meu desejo é construir uma narrativa emocional para eles”, conta Gomes.

A preocupação com os personagens também faz com que Luiz Otávio Pereira (Boa sorte, meu amor, de 2012) se identifique com o cineasta francês. Ele conta que, quando pensa em um filme, antes de escrever a história, precisa ter os sujeitos bem-delineados. No curta Sobre a minha melhor amiga (2012), com seu roteiro e direção, a influência de Truffaut fica clara no tom pessoal do enredo (o cineasta francês afirmava que, no futuro, o cinema seria feito por jovens – eles contariam em primeira pessoa suas descobertas sobre a vida) e na temática abordada: a morte, uma das mais recorrentes na obra truffautiana, presente em produções como Atirem no pianista, Jules e Jim, e A noiva estava de preto. “O filme conta a história de uma menina de 10 anos que sofre de insônia, é órfã de mãe e, logo no começo do curta, perde também outro parente. A intenção é abordar como ela lida com essa ideia do fim, e vem de uma inquietação minha, inspirada nas noites em claro que eu passei quando menino”, afirma Pereira.


Marcelo Lordello, Luiz Otávio Pereira, Kleber Mendonça Filho e Leonardo Lacca são alguns dos cineastas que se identificam com o olhar truffautiano. Fotos: Divulgação

A infância, outro tema caro a Truffaut (O garoto selvagem e sua obra-prima autobiográfica Os incompreendidos), pode ser observada, ainda, nos filmes do cineasta Marcelo Lordello. O longa Eles voltam (2012) conta a história de uma menina de 12 anos que está desaparecida. O espectador acompanha toda a trajetória desse desaparecimento, pela ótica da garota. “Eu gosto dessa ideia de tentar compreender a mente infantil e usá-la como metáfora para o desbravamento. Acho muito interessante como Truffaut faz isso com Antoine Doinel e me fascina poder acompanhar a vida desse personagem ao longo de cinco filmes”, diz Lordello. Eles voltam lembra Nº27 (2009), aclamado curta do pernambucano no qual observamos um dia na vida de um estudante. Por meio do personagem Luís, de quem quase invadimos a mente – assim como ocorre com a menina de Eles voltam –, Lordello aborda os medos adolescentes, tal como Truffaut fez com Doinel.

Medo é também um dos assuntos tratados em Ela morava na frente do cinema (2011), curta mais recente de Leonardo Lacca. O filme fala sobre a mudança das pessoas, da cidade – menos da protagonista, que a teme. Presa ao passado, a um relacionamento que não parece dar certo e a um emprego sem muitas perspectivas, ela vivencia, em uma quase inércia, o passar do tempo. A cena final, em que a protagonista caminha em direção à tela do cinema, poderia ser uma alegoria ao filme dentro do filme, retratada em A noite americana, de Truffaut. Contudo, Lacca ressalta outras afinidades: “A relação forte com o cinema como espaço, a referência à infância e recorrentes personagens femininos filmados com contemplação são elementos convergentes. Além disso, há uma pequena homenagem em um momento do filme: na frente da sala do cinema, aparece o pôster de O homem que amava as mulheres”, revela.

Em O homem que amava as mulheres, o protagonista Bertrand afirma que “com algumas mulheres, você se pergunta se elas se interessam por amor; outras o têm estampado no rosto”. O mesmo ocorre com os cineastas e Truffaut claramente está no grupo que tem o sentimento impresso em cada filme, seja para afiançá-lo, seja para destruí-lo. No curta Noite de sexta, manhã de sábado (2007), Kleber Mendonça Filho faz ambos: insinua o amor só para desmanchá-lo em uma frase e reacendê-lo na seguinte. Não que os personagens não se queiram. Ocorre que eles já não podem se ter, como Bernard e Mathilde em A mulher do lado. “Noite de sexta... é um filme Nouvelle Vague e, provavelmente, é a minha obra que mais tem influência de Truffaut; entretanto, não é a única. Acho que o diretor francês é um dos faróis do cinema. A liberdade que ele tem de falar de amor sem parecer piegas, sua delicadeza e seu senso crítico não vejo ninguém repetir de maneira tão intensa”, conta Kleber. Nada como a dose exata de Chaplin, Welles e geleia. 

INGRID MELO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente

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