FOTOS LEO CALDAS
01 de Dezembro de 2011
O artista alemão Heinrich Moser foi o responsável pelos vitrais da Matriz de N. S. das Graças
Foto Leo Caldas
O vitral é uma modalidade artística que exige trabalho coletivo, e cujos princípios de feitura pouco se modificaram através dos séculos. Consolidada nas catedrais góticas europeias, a partir dos anos 1100, é uma técnica extremamente complexa, que exige reflexão, conhecimento apurado sobre as variações de luminosidade, composição de vidro e de cores, além de interpretações em torno da história e da teologia.
“Os vitrais carregam uma linguagem narrativa do homem medieval para o homem moderno. Banhados pela luz e pela cor, imprimem ao espaço arquitetural uma atmosfera mística, propositalmente reflexiva, condutora entre o real e o divino”, explica Suely Cisneiros, professora do departamento de Teoria da Arte da Universidade Federal de Pernambuco. Para montar um vitral, torna-se necessária uma equipe de, no mínimo, três pessoas: o vitralista, o artesão de estruturas metálicas e o artesão dos perfis de chumbo e da montagem das grades.
As etapas de confecção, ontem como hoje, são praticamente as mesmas. Em primeiro lugar, estuda-se o tema. Em seguida, faz-se um projeto de adaptação do desenho para o metal. O passo seguinte é a composição das estruturas metálicas e imediato tratamento delas, para evitar corrosão. O corte dos vidros, que normalmente são importados da França, Bélgica ou Alemanha (apesar de existirem exemplares nacionais), é a próxima etapa. As pinturas sobre essas lâminas, que exigem várias queimas para se atingir a cor que se quer realçar, são a parte mais delicada, e exigem conhecimento técnico apurado.
“Depois de tudo isso, iniciamos a amarração dos perfis de chumbo para cada quadro do vitral, fazemos a calafetagem, para impermeabilizar, e efetuamos a moldagem do chumbo sobre cada pedaço de vidro. Aí, damos o acabamento final e um polimento”, que, como suportes para a grade metálica, podem ser usados o ferro, o latão ou o inox, detalha Suely.
Especialista em Design e Artes Plásticas, com mestrado em Arqueologia e Preservação Patrimonial, Suely é também vitralista e restauradora, ofício que aprendeu com a única discípula viva do mestre alemão Heinrich Moser: Aurora de Lima, hoje uma senhora de 96 anos que, até a década de 1970, ensinava a técnica de vitral na Escola de Belas Artes.
O vitral Os anfitriões, também de Moser, está no hall do Clube Internacional do Recife
Estudiosa do tema, há décadas, Suely explica que o Recife, como o Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, é uma das cidades que reúnem um dos mais preciosos acervos em vitrais do país. Diz, também, que nessas capitais eles se multiplicaram “devido às mudanças sociais e, sobretudo, econômicas, que representaram a ascensão de grupos ou classes, e a fixação de artistas nesses estados”, a exemplo do que aconteceu com a vinda e permanência de Heinrich Moser no Recife, a partir de 1910.
“A importância e proliferação dos vitrais refletem diferentes linhas estilísticas – do Barroco para o Neoclassicismo, em seguida, para o ecletismo e estilos franceses de pujança cultural, como a art nouveau – aliadas a uma projeção econômica das famílias mais abastadas do Recife, naquele final do século 19 e começo do século 20”, observa o arquiteto, historiador e filósofo Fernando Guerra, que também é mestre em História e doutor em Arqueologia e Conservação do Patrimônio Histórico.
Até hoje, em várias localidades recifenses, em espaços públicos ou privados, é possível encontrar obras de Conrado Sorgenicht, Heinrich Moser, Aurora de Lima, da Oficina de Gastão Formenti, Marianne Peretti, Suely Cisneiros, e mesmo de Francisco Brennand, que emprestou seus traços para a confecção de um vitral que adorna a escadaria principal da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), no Bongi, zona oeste do Recife.
PIONEIRO NO PAÍS
Os vitralistas europeus chegaram ao Brasil na segunda metade do século 19, juntamente com o ecletismo. O alemão Conrado Sorgenicht foi o precursor da técnica no país, onde desembarcou em 1874, mas só se instalou na capital paulista em 1888, aos 52 anos. Na sua chegada, vivia-se o impacto da Lei Áurea, que aboliu a escravidão. “Ele iniciou seu trabalho, portanto, numa época de grandes mudanças de uma sociedade que procurava se renovar e se desenvolver”, conta Suely Cisneiros, que indica duas belas obras desenvolvidas pela Casa Conrado, administrada no Recife pelo artista da Renânia (região da Alemanha) e, posteriormente por seus filhos Conrado II e Conrado III.
A alegoria da Revolução Pernambucana foi produzida pela oficina italiana Formenti
A mais grandiosa é a encontrada na Igreja Matriz do Espinheiro, na qual a Casa Conrado, que tinha vários mestres na confecção de vitrais, seguiu a narrativa hagiográfica, assinalando a vida de Jesus. Outra peça com a assinatura da Casa pode ser vista no prédio principal do Museu do Estado. Lá, um vitral raro, em formato horizontal, servindo principalmente como claraboia, retrata dois anjos adornados por flores.
“Existem obras da Casa Conrado em várias cidades brasileiras. No Recife, que sempre aderiu aos modismos importados da Europa, em especial os da França, não poderia ser diferente. Conrado era um hábil desenhista de paisagens, de motivos florais, angelicais e da fauna. Utilizava, em suas primeiras composições, gravações a ácido em vidros lisos. Era adepto da art nouveau, com vidros coloridos, desenhos barrocos e formas complexas, acompanhando a entrada do Brasil no Modernismo”, detalha Fernando Guerra. Ele lembra que a Casa Conrado continua produzindo vitrais em São Paulo.
Outra oficina especializada em vitrais, só que de origem italiana, fez história em Pernambuco. A Formenti & Cia chegou ao Rio de Janeiro no século 19, e foi a ela, no governo de José Rufino Bezerra Cavalcanti (1919-1922), que foram encomendados os dois vitrais instalados na escadaria principal do Palácio do Campo das Princesas.
O primeiro deles, localizado no topo do primeiro lance de escadas da sala de recepção, é conhecido como A alegoria à Revolução Republicana de 1817. Uma composição sobre a derrota dos revoltosos e sobre os ideais libertários estaduais. Um marco histórico retratado pela empresa italiana. “Nele, um homem, de pé, avança carregando a bandeira de Pernambuco. Em primeiro plano, deitado, um leão faz repousar sua pata sobre uma coroa. Uma data encima o vitral: 1817, que revela o sentido da alegoria, símbolo da nossa marcante Revolução Republicana de emancipação política do Brasil”, explica Fernando Guerra, que coordena o programa de visitação do Palácio.
O outro vitral pertencente à sede do governo pernambucano fica longe do olhar dos visitantes – está localizado sobre a escadaria do segundo andar. Igualmente suntuoso, é uma alegoria à República, também grandiloquente, mas sem a expressividade do consagrado à Revolução Pernambucana.
O vitral europeu, de autoria desconhecida, foi remontado no castelo do Instituto Ricardo Brennand (IRB)
A casa Formenti ainda foi responsável pela peça que adorna a sede da Associação Comercial de Pernambuco, e que deverá ser submetida a uma restauração em 2012. Na obra, que reúne cerca de 20 vitrais, em exposição no hall do Salão Nobre e no do 2º andar, podem ser admirados símbolos da indústria e do comércio, motivos florais e adornos no estilo art nouveau.
VIRTUOSISMO DE MOSER
É possível que, depois de observar os variados estilos e autores vitralistas encontrados no Recife, o apreciador chegue à conclusão de que dificilmente terá visto peças de maior perfeição e delicadeza que aquelas executadas pelo alemão Heinrich Moser. Entre os vitralistas clássicos, herdeiros da tradição medieval, ele foi o mais perfeccionista, e suas obras são descritas pelos estudiosos como incomparáveis.
“Heinrich Moser participou da fundação da Escola de Belas Artes, em 1932. Começou a fabricar vitrais para residências, geralmente para caixas de escadas. Realizou sua maior obra com o arquiteto Giacomo Palumbo, também para uma caixa de escadas, esta monumental, do Palácio da Justiça de Pernambuco. Usou vidros coloridos de fabricação industrial, nos quais pintava com a tecnologia que pôde empregar em Pernambuco”, explica o arquiteto José Luiz Mota Menezes, no prefácio ao livro Restauração dos vitrais da Chesf, de Jobson Figueiredo.
A pesquisadora Angela Távora Weber, no livro Moser, um artista alemão no Nordeste, descreve o trabalho realizado no Palácio da Justiça como integrante da série de vitrais profanos do artista alemão. Ele representa a cena de abertura do primeiro Parlamento Democrático da América, comandada pelo conde Maurício de Nassau. “Este mural é reconhecido nacional e internacionalmente como um raro exemplo de harmonia de conjunto, cor, luz, sombra, traço e fidelidade histórica. Trabalhava principalmente com vidros coloridos, cujos matizes chegavam aproximadamente a 200 tonalidades”, escreve. Muitos autores o consideram o mais importante do acervo pernambucano.
Símbolos de casas reais também podem ser vistos nas peças
pertencentes ao IRB
No Clube Internacional do Recife, outro trabalho excepcional de sua autoria pode ser apreciado. Na escadaria principal, no hall, o vitral Os anfitriões (1939) é prova da perícia e supremacia do artista. Entre as obras religiosas, são de Moser os painéis que adornam as paredes da Matriz de N.S. das Graças, que narram a vida de Nossa Senhora.
Admirador do alemão, Fernando Guerra o classifica como “o grande mestre”. “Nele, nota-se a utilização das cores fortes e quentes do Nordeste, além de um desenho aprimorado em relação ao estilo clássico – na representação das suas figuras humanas, as rendas de tecido e o panejamento das vestes. O carmim do artista alemão é inigualável”, diz.
A supremacia do alemão também é defendida por Suely Cisneiros, que ressalta algumas particularidades de sua obra. “O efeito dos veludos e das rendas e a perfeição das mãos. Essas são suas marcas registradas”, diz a professora. Além de excelente artista, Moser também ajudou a difundir os vitrais na cidade. Antes da sua chegada, esses elementos eram privilégio da elite, que podia importar as peças de outros países ou capitais. “A vinda dele permitiu que mais pessoas pudessem encomendar um vitral”, aponta Suely.
AURORA E BRENNAND
Aluna de Moser, Aurora de Lima conheceu o mestre durante aulas de Composição Decorativa, na Escola de Belas Artes, e difundiu a arte dos vitrais até meados da década de 1970, quando ministrava uma disciplina sobre o tema na mesma instituição em que estudou. “Fiquei trabalhando com Moser nos vitrais, nos tempos de seu pleno vigor artístico, nos tempos da doença, após sua morte, e, quando o ateliê foi desfeito, eu o refiz, continuando o trabalho que ele executou e que deixou no Brasil, em Pernambuco, especialmente no Recife. Nos seus vitrais, estão transportadas as cores quentes e vibrantes do nosso colorido nordestino, que ele, como europeu, soube interpretar com tanta arte e vigor”, declarou Aurora de Lima, em entrevista publicada no livro Moser, um artista alemão no Nordeste.
Aurora de Lima ornou com florais as paredes do Cinema São
Luiz, no Recife
Hoje aposentada, Aurora também tornou-se referência de maestria. “Discípula única de Moser, trazia em suas obras aquela mensagem clássica do seu professor. Empregava as cores naturais em seus lindos florais, a exemplo dos vitrais do Cinema São Luiz, no Recife, e da Biblioteca Central da UFPE, na qual realizou um grandioso trabalho de composição mista, entre figuras geométricas e florais”, situa Fernando Guerra. “No Arquipélago de Fernando de Noronha, produziu um vitral para o Palácio de São Miguel, sede da administração da ilha, sob o título A imagem do arcanjo São Miguel, em 1947.” Assim como Moser, Aurora tem dezenas de obras espalhadas por igrejas e residências particulares recifenses.
Na sede da Companhia Hidroelétrica do São Francisco, no Bongi, o visitante é surpreendido pela existência de dois vitrais. O maior deles, que ocupa todo o vão da escada principal da entidade, tem 10 metros de altura por sete metros de largura, é assinado por Francisco Brennand. Com motivos florais e frutais, esse vitral possui um colorido quente. Restaurado em 2009, por Jobson Figueiredo, teve toda sua estrutura de ferro substituída por aço inox. Apenas seu desenho é de autoria de Brennand, sua concepção foi encomendada à Arte Sul, na década de 1970.
Na sala contígua ao hall, encontra-se um painel com uma cena de feira, desenhado por José Ferreira na mesma década. Ele também foi restaurado por Jobson e entregue ao público em 2010.
ESCOCESES, INGLESES
Além das peças confeccionadas no século 20, o Recife guarda um acervo centenário, produzido por velhos mestres ingleses e escoceses, que foi trazido à cidade pelo Instituto Ricardo Brennand (IRB). Nos prédios em estilo medieval do instituto que leva o nome do empresário, erguidos no bairro da Várzea, é possível observar exemplares de vários períodos e épocas, construídos pelos artesãos que serviam aos nobres da Escócia e da Inglaterra, e que aparecem em forma de brasões e heráldicas.
Conrado Sorgenicht fez um detalhado painel para o Museu do
Estado de Pernambuco
As peças mais importantes e raras estão na entrada do 3º andar, são anônimas e trazem datas como 1621 e 1644. As vestes desenhadas numa delas denotam procedência escocesa. Outra, a de uma casa real inglesa. No salão do mesmo andar, preciosidades: vitrais decorativos ingleses, com símbolos que evidenciam pertencer aos brasões da nobreza, representando uma coroa e o sagrado coração.
Nessa mesma sala, sete vitrais de grande porte retratam a ressurreição e ascensão de Jesus. Eles foram confeccionados na Inglaterra, no início do século 20, segundo informa a especialista em História da Arte Ruth Gouveia Gabino, que trabalha na Coordenação de Educação do Instituto.
É de Suely e equipe o vitral que emoldura a porta da Biblioteca do Instituto, uma réplica em miniatura do castelo, com as iniciais da instituição.
No castelo do IRB, a variedade de vitrais dos séculos 17 e 18 demonstra bem a expansão que o gênero teve na Europa. No Renascimento, os vitrais foram utilizados em diversos tipos de construção: em capelas privadas e espaços públicos, em residências da nobreza e em palácios. A professora e pesquisadora da Universidade de Caxias do Sul, Vera Zattera, explica a motivação para essa propagação do elemento decorativo: “Os vitrais eram financiados por doadores, associações ou grupos de cidadãos. O misticismo inicial estimulado pelo uso de personagens da Bíblia, santos e anjos, foi assimilado por reis, duques e cavalheiros, que passaram a exigir a realização de vitrais contando a vida dos santos, mas com seus rostos”.
Os nobres, ressalta Vera, acreditavam que, identificando-se com os santos, poderiam ter um lugar reservado no céu. “Era uma espécie de troca: eles pagavam os vitrais e – supunham – tinham direito a um lugar melhor no paraíso.” Ser vitralista da nobreza significava, nesse contexto, ter privilégios. “O francês Carlos VI (1368-1380) escolhia pessoalmente seus artistas, que eram agraciados com benefícios e total isenção de impostos”, completa Suely.
No Instituto Ricardo Brennand, também há vitrais com os brasões da família do empresário, desenhados e produzidos por Suely Cisneiros, Fernando Ferreira e equipe. Foram eles, inclusive, que executaram a recuperação dos vitrais produzidos por Marianne Peretti para a Catedral de Brasília. “No próximo ano, vamos restaurar os vitrais de Moser que se encontram no Palácio da Justiça”, antecipa Suely.
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