Mas é somente a fachada da casa de Peretti que engana. Por dentro, a residência como que “salta no tempo”, levando o visitante do clima de antiga viela olindense a um arrojado, amplo e claro projeto de Niemeyer. Os originais cômodos estreitos deram espaço a salas amplas, com várias peças de mobiliário assinadas pela própria Marianne, esculturas de ferro, arranjos florais de plantas nativas, colhidas no quintal, e muita luminosidade, obtida com claraboias e recortes nas paredes.
“Quando cheguei a Olinda, há mais de 20 anos, era tudo escuro e triste neste casarão. Tive que investir numa reforma, mudar tudo, pois espaços apertados me deixam com claustrofobia. Não conseguiria viver e trabalhar numa casa onde me sentisse fechada”, diz Marianne, que, aos 84 anos, mantém uma atividade invejável e uma elegância impecável, sua marca registrada.
Atualmente, trabalha na confecção de um painel de três metros, na forma de um DNA, para um museu de ciência. Tem viagens de trabalho agendadas para quase todos os meses. Ela conta que se tornou tão ágil, diante do grande número de encomendas, que chegou a desenhar um projeto de 100m² em poucas horas. Também já perdeu as contas de quantos vitrais (sem falar nas esculturas e nos murais) executou pelo Brasil e mundo afora, muitos deles no Recife, em residências e espaços públicos, a exemplo da Igreja Messiânica do Rosarinho, da Paróquia de N.S. de Fátima de Boa Viagem e do Palácio da Justiça, só para citar algumas das dezenas de obras que tem espalhadas em Pernambuco.
“Não consigo parar, gosto muito de trabalhar. Via minha mãe receber as amigas para o chá das cinco, todos os dias. E percebia que a conversa versava sempre sobre os mesmos temas. Elas não faziam nada, a não ser remoer o passado. Devia ter uns 10 anos, quando prometi que minha vida seria diferente”, diz a artista plástica – filha de mãe francesa e pai pernambucano (João de Medeiros Peretti) – que nasceu em Paris, chegou ao Brasil em 1953 e adotou Olinda como casa, na década de 1960.
Marianne Peretti, em sua casa, em Olinda, que também lhe
serve de ateliê. Foto: Ricardo Moura
Para Marianne, acostumada com os vitrais das igrejas góticas francesas, trabalhar com o gênero, no início da carreira, nunca chegou a ser cogitado. “As escolas que ensinavam as técnicas remetiam ao estilo clássico, o que não me interessava. Então, nunca me dispus a frequentar os cursos. Inclusive, inicialmente, achava o vitral um gênero menor, não gostava. Portanto, nunca aprendi a fazê-lo, apenas a desenhá-lo e projetá-lo”, explica Marianne, que, apesar disso, criou vitrais para projetos da arquiteta Janete Costa, na década de 1960.
NIEMEYER
Sua carreira como vitralista de fama internacional se deu por um golpe de sorte (ou senso de oportunidade). Na Itália, nos anos 1960, viu o prédio assinado por Oscar Niemeyer para a Editora Mondadori, ficou deslumbrada e decidiu procurá-lo. Colocou o portfólio debaixo do braço e foi bater à porta do arquiteto, em seu escritório no Rio de Janeiro. Tornaram-se amigos, o que lhe proporcionou os futuros trabalhos que a notabilizaram.
Quando Niemeyer a convidou, na década de 1980, para projetar os vitrais da Catedral de Brasília, ela se assustou com a tarefa homérica. “Quando me lembro do que fiz, até eu fico sem acreditar”, brinca a artista plástica, que relata a verdadeira “odisseia” que foi preparar os murais da nave, que têm 2.240m².
“Cada desenho tinha 30 metros de comprimento por 10 metros de largura. Para poder montar o vitral, vê-lo inteiro, tive que me instalar no Ginásio Nilson Nelson. Lá, subia nas arquibancadas e, usando um binóculo, podia ver a composição. Em alguns momentos, havia 800m² de papel pelo chão”, recorda Marianne Peretti, que considera suas obras maiores – em consonância com a crítica – os vitrais que preparou para a Catedral, para a câmara mortuária do Memorial JK e para o Supremo Tribunal de Justiça, todos em Brasília.
“Tive medo de fazer o trabalho da Catedral. Niemeyer havia me levado lá, na década de 1970. Na época, disse a ele: não é preciso colocar vitrais, basta limpar os vidros transparentes; o céu de Brasília é iluminado, belo e muda constantemente. Não existe algo mais perfeito do que isso.” Com a insistência do arquiteto, ela aceitou a empreitada. Hoje, reconhece que as tonalidades azuis, verdes, marrons e brancas dos seus vitrais, e a posterior pintura da igreja, também na cor branca, tornaram a obra incomparável. “Pintei a catedral internamente de branco, o que se mostrou acertado. Depois disso, Niemeyer mudou a cor exterior.”
Obra da artista orna a Paróquia de N.S. de Fátima, em Boa Viagem. Foto: Leo Caldas
REVALORIZAÇÃO
Para a arquiteta Guilah Naslavsky, a parceria entre Marianne Peretti e Oscar Niemeyer é a comunhão perfeita entre a arquitetura e o uso de vitrais. No trabalho O vitral na síntese da arquitetura moderna, realizado em parceria com Sônia Marques, ela defende que o projeto realizado pela artista se incorpora tão perfeitamente à obra do arquiteto, que parecem ter sido feitos simultaneamente, e não anos depois, como aconteceu com a Catedral, inaugurada na década de 1970, com os vitrais montados apenas no final dos anos 1980, e inaugurados em 1990.
“Seja nos casos clássicos, seja em experiências isoladas da arquitetura moderna, o vitral sempre foi utilizado como peça secundária, como uma janela, um adereço, nunca como destaque, apenas como inserção. Marianne, nesse sentido, deu uma contribuição muito importante, porque na Catedral, o próprio vitral é a parede. O que acontece, de certa forma, nas outras parcerias realizadas entre ela e Niemeyer, em Brasília”, explica Guilah, ressaltando que essa sintonia não pode ser observada nas obras recifenses, às vezes, de estilos totalmente diversos do de Marianne. Um exemplo disso são os vitrais do Tribunal de Justiça, no Recife, em que as formas neoclássicas do prédio contrastam com o arrojado abstracionismo da artista.
Guilah ressalta, também, que Marianne teve um importante papel no resgate dos vitrais, que foram relegados a um segundo plano pela primeira leva de modernistas. “Devido à associação do gênero com o ecletismo, a partir dos trabalhos figurativos dos mestres clássicos do início do século 20, não se vê, nos primeiros anos do modernismo brasileiro, a valorização dos vitrais. As construções traziam a releitura de painéis, de azulejos, mas os vitrais só voltaram a ser preparados no pós-guerra, na segunda leva modernista. Os projetos assinados pelo escritório de Janete Costa tiveram uma importância fundamental nessa revalorização.
Marianne começou a trabalhar com vitrais nesse momento, como foi dito. Mas sua consagração no gênero deu-se com a intervenção na catedral brasiliense e demais monumentos da cidade, também citados. “Só aí os vitrais, com formas abstratas, voltariam a ser valorizados”, pontua Guilah.
Ao ser entrevistada, Marianne Peretti disse desconhecer o estudo da arquiteta em parceria com Sônia Marques. Mas concorda que os vitrais da Catedral são uma obra ímpar, assim como Brasília, que considera a obra máxima da arquitetura mundial. “Aos 50 anos, a cidade continua surpreendente, continua uma novidade. A parceria entre Lucio Costa e Niemeyer é única. E quando lembro que a cidade foi construída em pouco mais de quatro anos, penso que é um milagre.”
DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente.
LEO CALDAS, fotógrafo.
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