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Tanajura

TEXTO José Cláudio

01 de Outubro de 2011

Imagem Reprodução

A comida às vezes nos leva à felicidade da, embora ninguém queira voltar a ela, infância, animais em estado puro sem sentimento de culpa como quando a gente caçava tanajuras, embora mesmo aí me houvessem incutido a noção do erro, acho que minha mãe; primeiro por isso de sair pelo meio da rua com um galho de mato para pegar tanajuras, se misturar com os meninos e meninas da classe baixa que não tinham o que comer e iam pescar muçu nas barreiras do rio, piaba nos brejos, com a mãe pegar camarão com o puçá quando as águas baixavam depois das cheias, e até hoje camarão para mim tem que ser de rio, sem falar de pitu que é outro bicho melhor ainda mas só quando novo e não esses duros que só um pau, sem gosto de nada, depois de passar um ano na geladeira, menos no Alfredão, esse podia se chamar de pitu, em Boa Viagem e no Ipsep, a pituzada do Alfredão, que saudade, não apenas a tanajura em si mas tudo que nos representa: conheci até uma mulher que de tão louca por tanajura até lhe influía no desempenho sexual diante de um punhado de tanajuras torradas, e comia até cruas, como se restituída à época em que tudo é permitido, à satisfação dos instintos que vamos perdendo ao longo da vida com as regras de sustentação econômica, de convivência social, de moral, de higiene, da conservação física; segundo porque poderíamos comer tanajuras envenenadas por arsênico ou verde de formiga mesmo que não tenha sabido de nenhum caso até hoje.

Verde de matar formiga. Mais uma vez o Aurélio: como Aurélio Buarque de Holanda era de Alagoas, achava que tudo que seus assessores não conheciam e só ele, botava logo “AL”, como palavra originária ou apenas conhecida na Terra dos Marechais: “verde de formiga” uma delas. Criança, eu já fazia pacotinhos de 100 ou 50 gramas para vender aos matutos na loja de meu pai, em Ipojuca, entre esses meu avô Pedro Taveira, que às vezes trazia o fole para folear as formigas no quintal que acabavam com as flores da minha mãe e nós meninos guardávamos distância para não respirar a fumaça. O verde de formiga é o mesmo verde veronese.

O portão do quintal dava para o da casa de Seu Severo, no beco de Seu Severo, beco onde uma cachorra dele, de nome Cecy, deixaram o portão aberto, ela soltou-se e mordeu minha perna, eu imobilizado carregando na cabeça cadeiras para um espetáculo no mercado velho, e onde vi uma vez, nesse beco, ela ia passando, sozinha, coitada, a pé, a deputada Adalgisa Cavalcanti. Dali ouvia-se a zoada da meninada na suave encosta em frente à casa de Seu Severo: “cai cai tanajura/tua bunda tem gordura/teu pai não sei o que não sei o que/e tua mãe segura”, entre a casa de Seu Severo e a garagem de Seu Barreto.

Uma vez eu ia num táxi, no fim da Avenida Kennedy, vindo da ponte sobre o Rio Beberibe, perto do Portão do Gelo, táxi meio velho dirigido por uma mulher ainda nova de um jeito bem popular, açararazada, o tabeliê cheio de farinha, sol quente, janelas abertas, de vez em quando ela tirava um punhado daquela farinha de um pacote, jogava na boca, me ofereceu, perguntei o que era, tanajura. Aceitei, ela disse que era a comida de que mais gostava no mundo. E gordura de caranguejo. A primeira vez que andei com táxi aqui dirigido por mulher. E também que comi tanajura depois de grande. Ela tinha o cabelo ruim cortado curto, arrepiado para cima deixando o cangote roliço descoberto, bonita além de muito dada.

Outra vez, eu trabalhava na Sudene, isso já faz muito tempo no banguê do meu avô, mais de 40 anos, o chefe da missão francesa, Monsieur Jourdane, me viu comendo tanajura. Simpático e ainda jovem. Um tanto reservado, acredito por conta da posição, corria que era aristocrata. Quebrou o protocolo e se aproximou. Pediu para provar. Gostou. Dei mais, embora pensando tivesse dito ter gostado por delicadeza. Ele era um cara educadíssimo. No outro dia disse que a mulher tinha adorado. Iam dar uma recepção e perguntou se eu poderia ajudá-lo: pretendia servir tanajura aos convidados, na maioria franceses. Eu disse que era imprevisível, que dependia das trovoadas. Essas eu tinha comprado em Caruaru na feira, fila de sacos desses de vender farinha de mandioca de uns 80cm ou mais de altura, vendidos a litro, daqueles litros de pau: litro, meio litro e cuia (a cuia equivalia a cinco litros).

Essa imprevisibilidade continua até hoje, 13/8/11, sábado, dia da coluna de Lectícia Cavalcanti, Gastronomia, de que sou leitor, na Folha de Pernambuco; caiu-me do céu, não do céu de Ipojuca na frente da casa de Seu Severo mas do de Gravatá, mandado por Lectícia e marido José Paulo Cavalcanti Filho, um bando de tanajuras já torradas no ponto e com farinha. Pense! 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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