Arquivo

“Sou leitor do livro do mundo”

Dessa forma, define-se Marco Lucchesi, o mais jovem membro da Academia Brasileira de Letras, prolífico autor de prosa, poesia, ensaio e tradução em diversas línguas

TEXTO Beatriz Coelho Silva

01 de Outubro de 2011

Marco Lucchesi

Marco Lucchesi

Foto Rafael Andrade/Folhapress

Há anos, num sarau na casa do violinista Cussy de Almeida, Marco Lucchesi teve um insight: Luiz Gonzaga chegou e os dois músicos, com histórias, estilos e públicos diversos, ficaram a brincar com melodias, ritmos e harmonias. Lucchesi teve a prova de que a integração das diferenças, das arestas, é possível.

Desde criança, o hoje acadêmico Marco Lucchesi presta atenção no outro, no que está fora dele. Filho de toscanos que vieram ao Brasil trabalhar em rádio e televisão, cresceu falando italiano (em casa) e português (na rua). Talvez, por isso, a busca da alteridade e a dualidade sejam as marcas de sua obra em prosa, poesia, ensaio, tradução e na formação de intelectuais na Faculdade de Letras da UFRJ.

Traduzir e ser traduzido em várias línguas, ter intimidade com intelectuais contemporâneos, como Umberto Eco, ou medievais, como Giambatista Vico, não o livra da timidez que o leva às metáforas para explicar/camuflar as ideias. Mas ele não fugiu das perguntas neste encontro, ocorrido numa manhã de sábado, ao som do mar e à luz do céu profundo de Copacabana.

CONTINENTE Professor, tradutor, ensaísta, poeta... Como o senhor se identifica?
MARCO LUCCHESI Como escritor... ou como leitor. No fundo, é a mesma coisa, essas categorias se completam. Mas... sou mais leitor.

CONTINENTE Leitor de quê?
MARCO LUCCHESI Do livro do mundo e do mundo dos livros. A leitura é um desafio que nos atravessa. É o que somos, o que tentamos desvendar – e saímos derrotados. Leio dos autores mais altos aos não recomendáveis.Bandeira dizia que mesmo os poetas não interessantes o são, desde que um olhar generoso enxergue uma dimensão mais ampla do ponto de vista poético. As paixões são muitas neste campo.

CONTINENTE Mas nem um nome?
MARCO LUCCHESI Seria recorrente, falando dos que ocupam espaços de sempre. Que, apesar de mortos, estão mais vivos do que os vivos... Dante, Machado, Dostoiéviski, Clarice... A lista é imensa.

CONTINENTE A literatura antiga é melhor do que a atual?
MARCO LUCCHESI Não acredito e não faço defesa própria, porque haveria um conflito de interesses. Hoje, há uma grande produção em todo o mundo. O desafio está em construir uma sintaxe do olhar. Por exemplo, Galileu Galilei, ao ver a Lua pela primeira vez com um telescópio, fez um mapa com crateras e relevos imperfeitos. Descreveu-a tal como via. Parece simples, mas não é. Na Inglaterra, outro astrônomo a viu num telescópio parecido e desenhou-a feita de cristal, longe e distante de impurezas. Depois se deu conta do erro. Galileu acertara. É importante apurar essas lentes, porque hoje os relevos são acidentados, a pluralidade e as formas de construção estão em efervescência. Não aposto num momento apocalíptico da literatura, o que me seria cômodo, ao me desobrigar de atingir uma geografia difícil, árdua, nômade e dispersa. Prefiro essa geografia a mentir diante do real.

CONTINENTE Como se treina o olhar?
MARCO LUCCHESI Lendo e escrevendo sempre. É um processo de alteridade. Só se pode construir um projeto literário consistente com um olhar atento às demandas contemporâneas. O que não significa apostar num relógio literário. É preciso ter uma ideia pantemporal da literatura. Dialogar com Homero e com autores contemporâneos, porque o espírito crítico é movido pela demanda ecumênica, a polifonia e o respeito ao diálogo.

CONTINENTE Como as lentes funcionam na tradução?
MARCO LUCCHESI Quando somos capazes de polir as lentes para atingir a alteridade e a ideia de pantempo, alcançamos uma tradição que é a terceira ponta de um triângulo. Traduzir é uma forma de ler. Tenho algumas definições de tradução. A primeira é um naufrágio digno em que o capitão avisa aos passageiros e prepara os botes. Sua dignidade está em naufragar com o navio. Tradução é um processo alquímico com palavras, pode ser definida, ainda, como leitura pública.

CONTINENTE O senhor escolhe o que traduz, sente-se escolhido ou aceita encomendas?
MARCO LUCCHESI Eu ficaria com os três. Em geral, fui escolhido pelos poetas, mesmo os antigos. Desde criança, como filho único, quis conversar com todo o mundo. A tradução era um canal. Na escolha do que traduzir, há determinantes de reflexão, fragmentos de nossa biografia que encontramos numa frase ou poema. Às vezes, o tradutor acredita que o texto é dele (e não está errado), mas é preciso ter limite entre o que é seu e o que é do outro.


Manuel Bandeira. Foto: Reprodução

CONTINENTE Sua necessidade de escrever vem do fato de ser filho único?
MARCO LUCCHESI É uma desculpa que gosto de usar porque é difícil explicar uma vocação. Não há uma resposta, uma práxis clara. Nem a psicanálise ilumina esse campo, que é muito refratário.

CONTINENTE Como se tornou professor?
MARCO LUCCHESI Esses desdobramentos estão na circunvizinhança da relação entre a estante, os livros, a palavra, o mundo... Aprendi muito na minha primeira experiência, aos 17 anos, num curso supletivo, à noite, no Rio de Janeiro, numa zona de conflito social. Falava sobre o Egito Antigo, da unificação política sob a ideia do Sol e eles não tinham luz elétrica. Falava do Rio Nilo e eles não tinham água. Percebi que, do ponto de vista do ensino, a inteligência e a ética devem ser iguais em todas as classes; o professor deve respeitar o outro lado, não deve ser paternalista, disperso ou ultralivre, a ponto de não cumprir sua missão. Bebia muito em Paulo Freire. É árduo, mas guarda beleza, porque o professor deve ser eclipsado pelo aluno, esquecido e recuperado algum tempo depois. Se valer a pena.

CONTINENTE Como professor, o senhor quer ensinar o que sabe ou tirar o melhor do aluno?
MARCO LUCCHESI Depende da circunstância. Tenho uma cota interna de partilhar o sentimento da ideia. Trabalho do ponto de vista da biografia de cada aluno. Não é determinante nas atitudes, mas é preciso ouvir a outra situação. A psicanálise me auxilia a perceber situações delicadas, a ler no canto dos olhos. É isso que me atrai.

CONTINENTE O senhor fala por metáforas. Como diferencia a prosa e a poesia?
MARCO LUCCHESI A metáfora é um vício... Trabalho numa oficina suja de graxa, com óleo vazando, uma desordem necessária. Para organizá-la, existe o sentimento da poesia, que não é inimiga da prosa ou vice-versa. Numa tradição brasileira, elas não conversam; e um exemplo clássico dessa injustiça é o caso de Machado de Assis, em que uma coisa expulsa a outra. Não acredito nisso. Creio em continuidade descontínua na obra de Machado. Se o leitor não se convence de sua poesia, aconselho a se debruçar diante do delírio de Brás Cubas. Se não encontrar chispas poéticas explodindo, dou as mãos à palmatória: poesia e prosa são distantes.

CONTINENTE Mesmo sendo bilíngue, como surgiu o interesse por outros idiomas?
MARCO LUCCHESI Posso explicar com clareza, porque sempre me perguntei isso. Nasci em Copacabana e meu pai trabalhava nos Diários Associados. Eu tinha um rádio de ondas curtas e, como era fluente em português e italiano, percebia outros idiomas desde cedo. Ser bilíngue é diferente de saber várias línguas. É como um laboratório interno de palavras, um duplo vitral, uma transparência que se sobrepõe à outra. Aos 12 anos, ouvia ondas curtas e escrevia para as rádios Deustche Welle ou BBC, não lembro em que língua. Eles me respondiam e eu amava bandeirinhas da rádio, cartão-postal dizendo que eu realmente tinha ouvido aquela rádio. A curiosidade começou daí.


Machado de Assis. Foto: Reprodução

CONTINENTE Como é aprender línguas que não têm qualquer raiz latina?
MARCO LUCCHESI É como entrar num túnel escuro sem lanterna. Você vai às apalpadelas. O persa, o árabe e o turco não têm o contexto latino que existe no alemão e no inglês. Passam-se meses e vem um período em que você acha que não aprendeu, tudo parece igual e você não entende nada. Tenho dificuldade de dizer quantas línguas sei, porque, para mim, não é virtude. Não sou linguista como Bechara. Gosto da sonoridade e quero chegar às línguas do original, sempre que possível. É sofrimento, mas é delicioso. Uma vez, num campo de palestinos, falei em árabe com Ahmed, editor da revista Bálsamo. Ele agradeceu, com os olhos marejados. Fiquei orgulhoso por ter escolhido uma língua que me aproximava. Não me tornava superior ou inferior, mas quase um igual. Aí, fiquei muito contente de saber aquela língua.

CONTINENTE Como surgiu a opção de estudar árabe?
MARCO LUCCHESI Foi uma escolha de mero prazer, como um sultão fascinado pelo corpo sinuoso da caligrafia. Além dela, uma beleza sonora, áspera, diversa do italiano e do francês. Na aspereza, descobri uma ligação profunda com os povos. Um amigo meu, o padre jesuíta Paolo Dall Oglio, faz uma obra espetacular na Síria. Vive a metáfora do que eu espero da vida, das questões republicanas em geral. No deserto, não deixa de ser padre, mas é apaixonado pelo Islã, consegue ver-lhe a beleza.

CONTINENTE Qual a sua relação com Pernambuco e com a cidade do Recife?
MARCO LUCCHESI Profunda! Vou a Pernambuco desde a adolescência, porque meu pai trabalhava em rádio e televisão. Um episódio define meu amor ao estado. Uma tarde, o jornalista Antiógenes Chaves me levou à casa de Cussy de Almeida, na praia de Piedade. Havia poucos prédios e um verde/azul absurdo, exclusivo dos mares do Nordeste. Chegou alguém que eu achava que conhecia, pegou uma sanfona, e era o Luiz Gonzaga. Os dois brincavam com a música. Para mim, foi muito importante e definitivo considerar que não havia distâncias entre as culturas, que a música, a palavra, a poesia, a arte eram a busca da alteridade. Estava habituado a tradições, à separação de uma música e de outra. O que hoje é banal, foi uma revelação para mim.

CONTINENTE Como se deu sua eleição para a Academia Brasileira de Letras?
MARCO LUCCHESI Nunca pensei na Academia. Falo sem ser blasé, pois respeito um número importantíssimo de acadêmicos. Tinha convites, mas não frequentava, porque sou um tipo mais isolado. Uma vez, o doutor Evandro Lins e Silva, que não me conhecia, lançou o meu nome e fiquei assustado. Pareceu-me um absurdo, mas fiquei comovido. No ano passado, em novembro, dei outra palestra lá, logo após a morte de um acadêmico. Mais de 10 vieram me dizer para eu me inscrever. E aconteceu porque eu não gosto de disputar, tenho imensa dificuldade e timidez.

CONTINENTE Você se situa no mundo acadêmico, no popular ou não vê diferença?
MARCO LUCCHESI Meus pais vieram ao Brasil, conheceram Assis Chateaubriand, mas não esperavam ficar. Aprendi com eles a ideia do fluxo, de migração. Interessa-me não perder o pé dos lugares. E não me confundir, porque o projeto humano é mais amplo, não cabe em nenhuma geografia exclusiva. Cabe no fluxo e na impermanência, nas grandes amizades e nos projetos éticos realmente fundamentados. Acredito só nisso, o resto é secundário. 

BEATRIZ COELHO SILVA, jornalista e roteirista.

veja também

Hollywood não acredita em lágrimas

O universo plural de Vilém Flusser

Rússia, nome masculino; Recife, palavra feminina