FOTOS RICARDO MOURA
01 de Outubro de 2011
Marcílo de Pádua criou uma senha ligada ao padroeiro do restaurante para liberar a entrada dos clientes
Foto Ricardo Moura
Sem calçamento e cheia de buracos, a rua nem dá sinais de estar a poucos metros de duas das principais avenidas da Zona Norte do Recife. Para entrar no prédio de dois andares, é preciso tocar um interfone e dizer a senha – uma frase que tem a ver com o padroeiro da casa, São Jorge, mas que você não vai ficar sabendo nesta reportagem. Mesmo sem iluminação no térreo, é possível ver uma escada no fim do corredor. Depois de subi-la, chega-se ao bar e restaurante Mocó, o segredo mais comentado – e apenas relativamente bem-guardado – da gastronomia pernambucana nos últimos tempos.
Depois de trabalhar no ramo por 28 anos, o proprietário Marcílio de Pádua já tinha desistido de ser dono de restaurante (e prometido isso à mulher Cláudia e aos filhos João e Antônio). Dos anos 1980 até aqui, foi sócio ou funcionário de locais como o Depois do Escuro, Água de Beber, Bela Bar Tok, Recife Marco Zero, Assembleia do Chopp, Califórnia e Encanta Moça. Entre um e outro, foi publicitário e morou no Rio de Janeiro, trabalhando na área de medicamentos. Não conseguiu, porém, ficar muito tempo longe do fogão. Há três anos, abriu a Casa Guanabara, que ele chama de premium delivery, com pratos cozidos em fogo lento e que precisam ser solicitados com três horas de antecedência, pelo menos.
O cardápio do serviço de entrega mistura clássicos da cozinha brasileira e internacional. Picadinho de patinho com quiabo, paleta suína inteira em crosta de alho com arroz de alho e linguiça e salada de feijão verde, ciobinha inteira com hondashi e ervas no papillote e salmão inteiro ao forno com bacon e batatas coradas são algumas das opções. O cozido à Casa Guanabara, com ossobuco, charque, bacon, paio, linguiça portuguesa, banana comprida, milho verde, batata-doce, couve manteiga e cebola espetada com cravo-da-índia, além de pirão e arroz branco, serve oito pessoas. É uma cozinha pensada para ser compartilhada.
A casa, localizada numa rua sem calçamento, não tem placa que indique o funcionamento de um restaurante
Três anos depois da abertura da Casa Guanabara, o Mocó surgiu de uma conspiração de amigos. O dono do restaurante Nez e da distribuidora de vinhos Zahil, Marcelo Valença, usava o térreo do pequeno prédio como depósito auxiliar para suas garrafas. Foi ele quem insistiu para que Marcílio fosse ver o local. “Quando eu vi, pensei: ‘Isso aqui dá um mocó danado!’ ”, lembra. Reformou a cozinha, mas deixou a entrada do jeito que estava. Para o mobiliário, comprou antigas cadeiras escolares na Rua da Conceição. Abriu na quinta-feira da Semana Santa, em abril, de propósito, para sentir o movimento. O nome, que remete a um roedor que lembra o preá e vive escondido, não poderia ser mais apropriado.
DEPOIMENTO-VERDADE
Marcílio queria que o local fosse frequentado apenas por amigos (e amigos de amigos) e resolveu não fazer divulgação alguma da casa. Em um mercado concorrido, no qual se faz tudo para aparecer nas páginas de gastronomia dos jornais e revistas, o restaurante secreto ficou conhecido apenas pelo boca a boca. “O depoimento-verdade das pessoas vale mais do que qualquer propaganda”, defende. O interfone com câmera foi instalado por questões de segurança e surgiu, então, a brincadeira da senha. “Virou um charme, mas não foi intencional”, conta. As redes sociais da internet também deram uma mãozinha. Com algum esforço, dá para achar o Mocó sem necessitar de indicação.
Todo esse clima de mistério não seria suficiente para sustentar a casa, se esta não estivesse escoltada pela cozinha. A comida é baseada nas experiências com sua mãe Maria da Guia, que, segundo ele, cozinhava como ninguém. Mania na cidade desde os anos 1990, o prato feito – ou individual, como se fala em locais refinados para diferenciar da refeição de todo dia dos trabalhadores – não tem vez aqui. Ao ouvir a expressão, Marcílio só se recorda da época em que chegava tarde da escola e sua porção repousava separada em cima do fogão, pronta para ser requentada. “Gosto de prato para duas pessoas, servido com qualidade e generosidade”, explica.
O bacalhau com batatas e pimentões é uma das opções do cardápio
“Hoje todo mundo quer ser chef, mas ninguém quer ser cozinheiro. Eu luto para ser chamado de cozinheiro, um dia”, afirma ele, que conta com o apoio de quatro funcionários na cozinha. Para Marcílio, os cursos de graduação em Gastronomia são importantes, principalmente no que diz respeito à segurança alimentar, mas o que separa os meninos dos homens é a prática. Por outro lado, considera positiva a mudança no perfil dos donos de restaurantes, que passaram a chefiar suas casas e estar presentes em todas as etapas. A cozinha do Mocó abriga também a produção da Casa Guanabara. A única diferença é que ela deixou de funcionar para entrega em domicílio, mas o cliente pode fazer a encomenda e ir buscar lá.
“A cozinha do Mocó tem um pé no tradicional, mas com diferencial. É uma comida com personalidade”, conta. Aqui, o sarapatel suíno, por exemplo, leva o acréscimo de azeite, pimentão e alho-poró. Há duas opções de almoço a cada dia, com pratos clássicos como o steak au poivre, mas muitos clientes preferem se ater ao menu de petiscos. Ele apresenta itens como charque acebolada com farofa amanteigada de jerimum, costelinhas salteadas com abacaxi, fatias de pernil com molho ferrugem, língua em molho madeira, cordeiro em molho de vinho, siri mole amanteigado e lagarto siciliano com pão italiano, cheirando a azeite e preparado no local. O charcuteiro Werner Johann faz alguns produtos exclusivos para a casa, como o salsichão branco bockwurst e a costelinha defumada.
CARDÁPIO COLABORATIVO
Para acompanhar, a bebida que mais sai é a cerveja, com opções como Eisenbahn e Baden Baden. A lista de cachaças, com rótulos como Tabaroa e Januária, cresce estimulada por sugestões dos clientes. À noite, vinhos são mais pedidos. As sobremesas, da doçaria Pavlova, incluem tortas para duas pessoas, nos sabores nozes com chocolate, damasco e coco com chocolate branco ou preto. A quituteira Maritza Potter também contribui com o capítulo de sobremesas, oferecendo ambrosia, cassata de morango, musse de chocolate e torta alemã. Marcílio até tentou fazer as próprias tortas, mas não tinha espaço adequado para isso.
Apostando na divulgação boca a boca, o restaurante tem uma freguesia fiel
Frequentado principalmente por advogados e publicitários, o Mocó tem, no almoço de sexta-feira, seu momento mais concorrido, em que, às vezes, alguns clientes ficam de fora porque os 52 lugares já estão ocupados. Aliás, clientes não: fregueses. “Quem vive de cliente é banco. Restaurante se sustenta de freguesia”, diz o cardápio da Casa Guanabara. Há quem vá almoçar e emende até a noite, pois é o único dia em que há happy hour. Toca-se jazz ou música popular brasileira, mas pode até acontecer de haver uma roda de samba eventual, nada planejada, feita pelos próprios visitantes. Na hora do pagamento, nada de cartão de crédito – apenas dinheiro ou cheque, como era de se esperar em um local tão escondido.
“Pessoa muito acanhada, tímida, arredia” é outra definição que o Dicionário Houaiss traz para a palavra mocó. Se o restaurante hesita em se mostrar, o mesmo não se pode dizer do seu dono. Às 21h30, ao ver que o movimento ainda é grande no salão, Marcílio não se faz de rogado: bate palmas e avisa em voz alta que o local vai fechar em meia hora, mas que abre novamente no dia seguinte às 11h e que espera todos por lá. Às vezes, basta olhar para a cara do freguês, soltar um “eu sei do que você precisa hoje” e voltar da cozinha com pratos escolhidos por ele próprio. Tudo com uma simpatia que vem lhe rendendo bons “novos amigos de infância”.
Marcílio já foi procurado para se mudar para a casa de um restaurante badalado que fechou as portas recentemente, mas não aceitou. Ele sabe que uma parte do charme do Mocó está nesse ar meio clandestino. Ainda assim, vai abrir por estes dias, com dois sócios, mais um estabelecimento nos mesmos moldes, inclusive com o mesmo cardápio, em outro bairro nobre da Zona Norte. A ideia é facilitar a vida dos amigos-fregueses, para que eles não tenham que encarar o trânsito quase intransponível da cidade. Este vai ficar em uma pequena casa, mas sem placa na porta, claro. O nome? Ele está em dúvida entre “Procurando o Mocó” ou “Le Mocó”. De novo: quem quiser conhecê-lo, precisa se virar para descobrir o endereço. Faz parte da brincadeira.
RENATA DO AMARAL, jornalista, webdesigner e doutoranda em Comunicação.
RICARDO MOURA, fotógrafo, esatagiário da Continente.