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O universo plural de Vilém Flusser

TEXTO Murilo Jardelino da Costa

01 de Outubro de 2011

Vilém Flusser

Vilém Flusser

Foto Reprodução

Conhecido principalmente por sua obra clássica sobre fotografia, Filosofia da caixa preta, Vilém Flusser apreendeu como poucos a revolução que estamos experimentando e protagonizou a elaboração de uma obra muito particular sobre essa era que se inicia, por ele designada de pós-história.

O ensaio A escrita: há futuro para a escrita?, produzido antes do acidente que lhe tirou a vida, em 1991, em cujas páginas ele faz uma reflexão sobre o que perderemos e o que ganharemos em um mundo sem a escrita, é obra fundamental para se conhecer o pensamento do filósofo. Para ele, os códigos digitais e as imagens técnicas produzidas por aparelhos poderão decretar a morte da escrita, isto é, do código alfabético, das letras. Nesse ensaio, o autor discorre sobre a história da escrita, desde as inscrições, quando o suporte desse gesto de escrever era a argila, a pedra, passando pelas sobrescrições, escritas cujo suporte é o papel, até o momento que ele designa de pós-história, em que os códigos digitais terão substituído a modalidade escrita de uso da língua.

“Da mesma maneira como o alfabeto procedeu, originalmente, contra os pictogramas, os códigos digitais procedem atualmente contra as letras, para superá-las. Da mesma maneira como, originalmente, o pensamento fundamentado no alfabeto se engajou contra a magia e o mito (o pensamento imagético), também o pensamento baseado em códigos digitais se engaja contra ideologias processuais, para substituí-las por modos de pensar cibernéticos, sistemoanalíticos e estruturais”, escreve o autor, no capítulo sobre os códigos digitais.

E por ocasião dessa reflexão sobre o declínio da escrita em nossa cultura, faz uma leitura, uma análise de todas as atividades humanas que se desenvolveram em torno desse gesto e avalia o que perderemos e o que será diferente se abrirmos mão do escrever. Entre outros, há capítulos dedicados aos livros, às cartas e ao ritual epistolar, aos jornais, às papelarias, às escrivaninhas etc., aspectos de nosso cotidiano apreendidos por um olhar fenomenológico. É um olhar pessimista e melancólico. Esse olhar, por exemplo, é apreendido no capítulo Cartas, em que ele discorre sobre o ritual de enviar e receber essa escrita. Para Flusser, o ritual epistolar não é mais possível em nosso contexto de pós-escrita. “Hoje, o que chega desse mistério é quase sempre publicidade (cartas falsas em forma e conteúdo) e contas a pagar, portanto, cartas que contêm ameaças não manifestadas.” Para o autor, ao abrir mão da escrita, as atividades organizadas em torno desse gesto também desaparecerão: as cartas, os livros, as papelarias e, até mesmo, a cidade.

Assim, o argumento flusseriano objetiva mostrar que, um dia, o alfabeto, invenção que levou o ser humano a ingressar no período histórico, caracterizado pelo pensamento lógico, linear, conceitual; desaparecerá completamente da face da Terra. Para ele, não é fácil conviver com essa ideia, pois há pessoas que acreditam, entre as quais ele se inclui, que não poderiam viver sem escrever, já que só no gesto da escrita podem expressar sua existência. Na defesa desse gesto, ataca frontalmente os roteiristas: “Quem escreve roteiros rendeu-se de corpo e alma à cultura das imagens. E ela é, do ponto de vista da cultura escrita, o demônio. Os roteiristas servem a esse demônio literalmente, (...). Eles arrancam as letras do navio da literatura, que está afundando, para sacrificá-las ao diabo das imagens”.

Embora seja cruel com os roteiristas, não parece sê-lo com os poetas digitais. Ao considerar a passagem da poesia oral para a alfabética, pergunta-se: “Será que as pessoas antigamente também não devem ter falado de uma dessacralização e tecnicização da poesia, quando elas compararam o inspirador canto dos bardos com a manipulação de letras empreendida pelo poeta escritor? (...) O novo poeta, que se senta diante de seu terminal e espera curioso por saber quais formações morfológicas e sintáticas inesperadas surgirão na tela, é capturado por um delírio criador, que em nada se opõe ao calor da luta do poeta escritor contra a língua”. Essa identificação com os poetas deve-se, provavelmente, à sua concepção de poesia. Para Flusser, “fazer poesia é a produção de modelos de experiência, e sem tais modelos não poderíamos perceber quase nada. Ficaríamos anestesiados e teríamos de – submetidos aos nossos instintos atrofiados – cambalear cegos, surdos e insensíveis. (...) os poetas são nossos órgãos dos sentidos”.

Essa discussão acerca do declínio da escrita adequa-se ao gênero ensaio. O ensaísmo já diz respeito à sua prática de escrita. Rainer Guldin diz, em Pensar entre línguas: a teoria da tradução de Vilém Flusser, publicado no Brasil em 2010, que “o ensaio indica a perspectiva escolhida desde o início, (...). Ele não silencia, ao contrário do tratado científico, a dependência do ponto de vista. Escreve-se sobre uma área geral de difícil definição e submete-se, portanto, à suspeita da deslealdade científica. (...) Ensaios são, para Flusser, narrativas fenomenológicas: eles vivem do engajamento que liga aqueles que escrevem ao seu objeto, e tornam o ponto de vista de quem vê o verdadeiro tema”.

É, portanto, no e por meio do ensaio que o autor desenvolve sua autoria. Trata-se de uma escrita única e autoral. Nesse aspecto, reside outra característica da escrita do autor, é uma criação linguística que se assemelha, em certa medida, à escrita literária. Para Gustavo Bernardo, romancista e professor de Literatura na UERJ, editor do site Dubito Ergo Sum, “Vilém Flusser, como filósofo, é um excepcional poeta, do mesmo jeito que se pode afirmar que Flusser, como poeta, é um excepcional filósofo. Esse comentário aparentemente irônico, entretanto, não diminui nem o poeta nem o filósofo, mas todo o contrário: chama a atenção para a sua capacidade de estar sempre onde não esperamos, dessa forma, deslocando-nos sistematicamente da nossa perspectiva e da nossa zona de conforto. Como filósofo, não constrói nenhum sistema, mas força o seu leitor a filosofar, a pensar, a duvidar. Como poeta, não escreve poemas, mas pensa poeticamente, levando-nos a desconfiar das grandes abstrações para nos concentrarmos no detalhe – no detalhe humano”.

Por isso, para Guldin, o mais importante em Flusser “é tudo aquilo que tem a ver com o conceito ‘inter’, entre, terceira margem: intertextualidade, interdisciplinaridade, como também plurilinguismo e pluralidade de pontos de vista. A isso, associa-se a ideia de migração entre línguas, entre continentes, entre disciplinas, entre fases da vida: a consequente superação das fronteiras. Movimentar-se de maneira pendular, traduzir, viajar, ser nômade. Não se pode distinguir uma coisa de outra de maneira tão clara. Ao contrário, elas estão emaranhadas e se confundem, as disciplinas se sobrepõem e se interpenetram. Fuzzy set. Zonas cinzentas. O outro é o método. A práxis da autotradução. O estilo de escrever, o eterno comparar, o jogo com as palavras, a tentativa de unir forma e conteúdo”.

A escrita d’A Escrita refrata esse projeto constitutivamente plural: são fragmentos de várias esferas discursivas, desde relatos da literatura religiosa até excertos da literatura científica, em vários registros, desde o mais formal até o coloquial, textualizados sobre os sistemas de referência de, no mínimo, quatro línguas: alemão, português, inglês e francês. 

MURILO JARDELINO DA COSTA, Linguista, tradutor e professor. Organizador da coletânea A festa da língua – Vilém Flusser.

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