Utilizada desde tempos imemoriais pelos índios sul-americanos, a ayahuasca é uma bebida produzida a partir da união de duas plantas nativas da Floresta Amazônica, um cipó conhecido por mariri (Banisteriopsis caapi) e a folha conhecida na linguagem cabocla por chacrona (Psychotria viridis). Juntas, elas formam a base de um rico fenômeno cultural e religioso que transcendeu os limites da floresta, atravessou as fronteiras do país e hoje é reconhecido pelas autoridades brasileiras pelo seu caráter beneficente.
Com uma forte ligação com a natureza – de onde é extraída a matéria-prima do seu sacramento –, o uso religioso da ayahuasca envolve uma série de tradições e saberes que remontam ao império inca e que se espalharam pela Floresta Amazônica depois da invasão do colonizador europeu. Diversas tribos indígenas utilizam, há séculos, o líquido sagrado em seus rituais xamânicos, sendo mencionado o seu uso nas narrativas míticas dos povos pano, aruaque e tucano, entre outros. Com poderosas propriedades enteógenas ativadas pela DMT (dimetiltriptamina), a ayahuasca possibilita ao xamã um estado de consciência que o habilita, por exemplo, a descobrir onde existe caça, estabelecer conversas telepáticas e realizar trabalhos de cura. Desde o início do século passado, no entanto, essa tradição foi aos poucos sendo incorporada a rituais de sincretismo religioso e deu origem a uma das mais interessantes manifestações da cultura brasileira, religiões de sotaque caboclo, nascidas no coração verde do Brasil.
Colheita da chacrona faz parte dos rituais das religiões ayahuasqueiras
Três religiões, consideradas originárias pelo pioneirismo e preservação de suas raízes, encabeçam a solicitação de registro na lista dos patrimônios imateriais. Alto Santo, criada no início do século passado pelo maranhense Raimundo Irineu Serra; Barquinha, idealizada pelo também maranhense Daniel Pereira de Matos; e União do Vegetal (UVD), fundada pelo baiano José Gabriel da Costa. A justificativa conjunta é a de que a utilização religiosa da ayahuasca se enquadra nas práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas que as comunidades envolvidas reconhecem como partes integrantes do seu patrimônio cultural. A inclusão do uso religioso do chá na lista de bens imateriais tem por objetivo garantir a legitimidade dos rituais frente à sociedade brasileira, ainda extremamente carente de informação sobre a tradição.
O seringal possui rios e igarapés preservados por iniciativa da União do Vegetal
As discriminações sofridas pelos adeptos das religiões ayahuasqueiras só têm comparativo histórico com as proibições e restrições aos cultos afro-brasileiros em décadas passadas. No entanto, pesquisas nacionais e internacionais desenvolvidas por instituições acadêmicas vêm aos poucos dissipando o preconceito e a ignorância sobre o assunto. Em função do pedido de participação na lista do patrimônio imaterial, um extenso inventário da ayahuasca está sendo organizado para subsidiar o estudo.
DOCUMENTAÇÃO
O mais interessante é que são as próprias religiões que estão contribuindo diretamente com o processo. Apesar de nascidas na simplicidade da floresta, as seitas sempre se preocuparam com a documentação dos seus rituais. A União do Vegetal, por exemplo, possui um Departamento de Memória e Documentação com milhares de fotografias, gravações e entrevistas realizadas desde a década de 1960. A instituição conta ainda com um Departamento Médico e Científico, realiza congressos internacionais e foi a idealizadora do Projeto Hoasca, um esforço conjunto entre nove centros universitários do Brasil, dos Estados Unidos e da Finlândia, que, durante três anos, realizou o maior estudo científico das interações da ayahuasca com o organismo humano.
O ritual começa com a colheita e pode levar dias até ser concluído
Outro trabalho que merece destaque é o Projeto Luz do Saber, desenvolvido desde 2002 e que já alfabetizou mais de 4 mil jovens e adultos. A iniciativa teve seu desenvolvimento inicial subsidiado pela Casa Brasil, um programa de inserção tecnológica do Governo Federal. A continuidade é conduzida pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará, com o apoio da Secad – Secretaria de Educação Continuada e Alfabetização e Diversidade do MEC.
Com 28 entidades beneficentes espalhadas pelo país e o título de Utilidade Pública Federal, a UDV comemora ainda a vitória de ver o chá autorizado para uso religioso no Brasil, desde o ano passado. Segundo a resolução – publicada no Diário Oficial –, a utilização é apenas para fins religiosos, sendo vetada sua comercialização e propaganda. Outro fruto recente do trabalho foi o reconhecimento ocorrido em julho deste ano, quando a Câmara dos Deputados, em Brasília, realizou uma sessão solene em homenagem aos 50 anos de criação da União do Vegetal.
Na busca de autossuficiência, as religiões investem no plantio
da matéria-prima da ayahuasca
Criada em 22 de julho de 1961, pelo seringueiro José Gabriel da Costa, a maior e mais organizada das religiões ayahuasqueiras possui, hoje, quase 20 mil sócios, está presente em todas as capitais brasileiras, nos Estados Unidos, na Espanha, e já inicia o trabalho em outros países da Europa. Para o mestre Sebastião, sujeito acostumado ao sossego da mata, essa expansão já era esperada. “Esse chá faz a gente acordar, despertar pra vida”, ensina.
A Sumaúma é a árvore mais alta da Amazônia, região sagrada para os ayahuasqueiros
Parte integrante do imaginário amazônico, o “cinema de índio” – como ficou conhecida a experiência psicodélica entre os seringueiros – revela um lúdico universo que reflete a riqueza cultural dos povos da floresta. Os cânticos, as histórias e até o preparo da bebida entram nesse contexto. Preparar ayahuasca não é simplesmente juntar duas plantas e produzir uma infusão. O ritual sagrado começa bem cedo, com a colheita das plantas, e, muitas vezes, levam-se dias até que o processo inteiro seja concluído. Apesar de algumas religiões possuírem um departamento de plantio e serem autossuficientes em relação às plantas, parte do aprendizado está em reconhecer e colhê-las em seu habitat nativo.
Desde 2010, a propósito, existe no Acre uma norma dos Conselhos do Meio Ambiente, Ciência, Tecnologia e Florestas, que regulariza a extração, coleta e transporte das plantas sagradas. Para os integrantes das religiões ayahuasqueiras, essa é mais uma vitória a ser comemorada, já que esse controle é parte fundamental na preservação dos seus rituais em longo prazo. Aqui, mais uma vez, entra em ação a atitude firme dos dirigentes religiosos no que diz respeito à sustentabilidade dos recursos naturais. No estado do Acre, por iniciativa das instituições, grandes áreas de mata nativa estão sendo preservadas para as futuras gerações.
Diversas tribos indígenas utilizam, há séculos, o líquido em seus
rituais xamânicos
Um desses recantos verdes, localizado justamente nas divisas desse estado com o Amazonas, é o Novo Encanto, um antigo seringal com mais de 8 mil hectares de florestas, hoje transformado em área de preservação. Uma organização não governamental, fundada por membros da União do Vegetal, administra o território que está situado em uma região de grande importância ecológica, devido à sua biodiversidade, com 381 espécies de plantas identificadas e uma grande variedade de sistemas hídricos, com um rio, 12 igarapés e seis lagoas. A Associação Novo Encanto de Desenvolvimento Ecológico realiza, desde 1990, diversas ações para preservar essa porção de terra contra invasões, extração de madeira e devastação da mata nativa.
Mestre Sebastião conhece bem de perto esse trabalho. Ao lado da sua companheira, Antonilda, Sebastião é o zelador desse imenso território repleto de sumaúmas e apuís (duas das mais altas árvores da Amazônia) e garante que mora na melhor região do planeta. “Não troco esse lugar por cidade nenhuma. Aqui, tenho paz, saúde e a natureza que me alimenta.” Além da fartura de peixes, pescados no Rio Iquiri, bem à porta de casa, Sebastião encontra na floresta o seu alimento espiritual. Depois de um dia inteiro mata adentro, em busca das plantas sagradas, a noite de lua nova convida ao trabalho. É hora de macerar o cipó, uni-lo às verdes folhas. No silêncio quente e abafado da Floresta Amazônica, o mistério está prestes a se revelar.
AUGUSTO PESSOA, jornalista e fotógrafo.