CONTINENTE Como definir o folclore: “memória longa” que garante um continuum do universo simbólico?
JOSÉ JORGE Sim, e eu não eliminaria a palavra folclore, porque a palavra possui uma história. São mais de 60 anos, no Brasil. Existem as comissões (nacional e estaduais de folclore) funcionando nos vários estados e muitas das pessoas que nelas atuam são professores universitários, de História, de Comunicação, de Sociologia. Há um grupo de pesquisadores que nunca parou de se envolver com expressões tradicionais e que sempre se qualifica, chega mais próximo do mundo acadêmico que se tornou padrão de referência para os estudos sobre cultura. Continua existindo, assim, o interesse pela cultura tradicional, pela cultura que é de memória longa, basicamente transmitida pela oralidade, e com pouca participação dos meios industrializados.
CONTINENTE Considera pertinentes “aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade” para caracterizar o fato folclórico?
JOSÉ JORGE Sim. Colocaria apenas mais um ponto para somar aos que mencionou: a capacidade da comunidade controlar a produção e a difusão dos bens culturais tradicionais. Se houver a perda do controle comunitário, será necessário transformar o texto cultural que estamos chamando de folclore num cristal que sobreviverá apenas como um sistema semiótico fechado, hipótese nada realista. Assim, eu associaria dinamicidade com a capacidade de a comunidade ainda ter controle sobre a produção, sobre a difusão e, inclusive, sobre a releitura desse texto folclórico. Quando essa releitura não depende mais da comunidade, o texto cultural deixa de ser folclore. Pode ser qualquer outro texto, porém entendido agora como um remake, recontextualizado e reapropriado por outro grupo ou segmento social para outro contexto em que circulará.
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CONTINENTE Há, então, lugar para a cultura tradicional, hoje, em meio à cultura de massa, à complexidade do globalizado mundo pós-moderno?
JOSÉ JORGE Penso que sim. Condições de reprodução dessa cultura tradicional são comunitárias, e dependem até agora de uma certa transmissão, justamente porque as pessoas são muito pobres, carentes de outros recursos que estão além daqueles centrados na oralidade, que têm à sua disposição. São expressões culturais riquíssimas do ponto de vista simbólico, mas em sua maioria muito frugais e muito frágeis do ponto de vista material e financeiro. E justamente a frugalidade é o que domina no país, praticamente em 80% da população. O Brasil é, ainda, um país de pobres. Se fôssemos capazes de multiplicar as tradições folclóricas para que atingissem milhões de pessoas simultaneamente, não teríamos cultura massificada – elas não se prestam a isso, porque são constitutivamente heterogêneas e idiossincráticas em suas manifestações locais. O que teríamos seria outro processo, com o qual devemos sonhar, se quisermos ser um dia uma nação deveras grande: a universalização de milhares de ricas produções simbólicas de pequena escala.
CONTINENTE Antropólogos e folcloristas: há atitudes preconceituosas entre eles, apontando fragilidades em reflexões teóricas acerca de cultura?
JOSÉ JORGE Sim, é preciso sustentar os argumentos com uma conceituação mais sofisticada de cultura. Não devemos reificar nenhuma forma cultural inteiramente, sem esquecer, porém, que existe sempre aquilo que Gayatri Spivak denomina de “essencialismo estratégico”. É preciso tratar as especialidades estrategicamente. Uma coisa são o pagode, o funk, a música sertaneja, a MPB, e outros gêneros de música popular comercial. Para mim, eles não são equivalentes do congado, do reisado, da dança de São Gonçalo etc. Considero insatisfatório achar que todos esses gêneros e tradições possam ser tratados como uma coisa só. De repente, para o antropólogo, não faz diferença se você está falando da banda Calypso ou se você está falando de um maracatu nação, porque tudo pode ser analisado em uma perspectiva relativista: todos são circuitos culturais e possuem marcas de diferença, e isso basta para alguma teoria antropológica ou sociológica. Na minha perspectiva, porém, a abordagem antropológica que relativize todas as formas de cultura não é suficiente, é necessário estabelecer diferenças qualitativas, ainda que não valorativas nem moralizadoras, entre diferentes tipos de expressões musicais, ou coreográficas.
CONTINENTE Quanto ao parafolclórico, como atuar no sentido de produzir reflexões sobre diferenças em relação ao tradicional?
JOSÉ JORGE Esse é um dilema da geração presente, que cresceu muito nos últimos 20 anos. Uma boa maneira foi como Édson Carneiro fez em 1966, com a Carta do Samba. Ele chamou os mestres de todas as escolas de samba para uma reunião no então Instituto Nacional do Folclore, da qual participaram representantes do Estado, das instituições, da academia, das comunidades tradicionais, da imprensa e das lideranças artísticas do samba. A motivação da carta foi encontrar um protocolo, um diálogo em relação à estética do samba. O foco da reunião e do pacto a ela subsequente foi responder à seguinte inquietação: “o samba-enredo está sendo descaracterizado enquanto uma simples marchinha”. Tratou-se de uma maneira democrática de resolver um conflito cultural que ajudou, de certo modo, a revitalizar o estilo próprio do samba-enredo como um gênero musical. Não estava em discussão uma crise da base comunitária de produção do samba. Quem compareceu àquele encontro foram os mestres das escolas, não pessoas de classe média branca colocando-se no lugar dos artistas e líderes da Portela ou da Mangueira.
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CONTINENTE Diferente da situação que vemos no Brasil e em outros países, dos grupos percussivos autodenominados maracatus?
JOSÉ JORGE Hoje em dia, se houver um encontro para discutir maracatu, haverá certamente a presença de pessoas que não são dos grupos tradicionais, são parafolclóricos. Então, vamos precisar de umaCarta do Maracatu para salvaguardar não só a estética, mas também a representação dessa tradição. Há uma crise profunda, é uma crise de sequestro da representação do maracatu por parte de um grupo que não é enraizado, inclusive no sagrado. Trata-se, como você falou, de grupos percussivos. São jovens de classe média que aprendem a tocar maracatu, pessoas laicas que têm uma vida urbana desconectada do mundo espiritual, que é a raiz do maracatu, seja do lado da jurema, seja do lado dos orixás. Seria o momento de refletir sobre todos esses problemas e conflitos, porém sempre através do diálogo. Grupos parafolclóricos têm, nesse momento, um poder que às vezes os mestres dos maracatus tradicionais não possuem. Elementos de classe, raça, localidade, capital cultural e social específicos fazem com que muitas vezes o grupo de gestores e avaliadores que está no estado e que pode apoiar e financiar as expressões tradicionais esteja mais próximo socialmente e se identifique mais com os parafolclóricos do que com os próprios mestres. É preciso que os parafolclóricos tomem consciência de que podem ter um lugar, mas não o de porta-vozes dos grupos tradicionais. Trata-se de uma crise de representação: é preciso se recolocar como são, quem são, para que, a partir daí, se representem de outro modo. Devemos estar atentos à canibalização, à espetacularização das culturas populares por parte de grupos urbanos que não pertencem às comunidades de onde vêm os mestres. Isso precisa ser combatido com mais veemência, devido a vários problemas, tais como a expropriação da criatividade coletiva e a intermediação política da relação dos grupos tradicionais com as diversas instâncias do poder público e do circuito privado de produção cultural.
CONTINENTE Que políticas públicas necessitariam ser adotadas, ou ter continuidade, quanto à salvaguarda do patrimônio imaterial?
JOSÉ JORGE Primeiro, devíamos transformar o Centro de Folclore e Cultura Popular em um Instituto Nacional das Culturas Tradicionais, nos moldes do que existe no México e em Cuba. As instituições federais com que contamos até agora, tais como o CFCP e o Iphan, não fazem jus nem à riqueza cultural nem à dimensão territorial e demográfica do país. Além de um instituto no nível federal, os estados também poderiam ter instituições equivalentes, a partir da articulação de expressões e estruturas existentes, não fazendo de conta que não existia nada antes, o que seria um desrespeito às pessoas que lutaram durante tanto tempo pelo mesmo objetivo. E há outro ponto, que diz muito da minha luta neste momento, para mim importantíssimo, prioritário: levar os mestres às universidades federais. No projetoEncontro de Saberes – que funcionou no ano passado, na UnB –, a proposta é de que mestres da cultura popular ministrem uma matéria (no caso, Artes e Saberes dos Mestres Tradicionais) que deverá ser consolidada neste segundo semestre de 2011 como uma cátedra a ser oferecida também por outras universidades federais. Isso terá forte efeito pedagógico, porque serão formados os discípulos universitários pelos próprios mestres tradicionais. A cátedra mudará o panorama da discussão, da intimidade com o tema, do reconhecimento da grandeza da cultura dos mestres.
CONTINENTE E, no continente americano, como está esse cenário?
JOSÉ JORGE Há uma movimentação em todo o continente. Em 2008, organizamos, através da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural do MinC, o 2º Encontro Sul-Americano de Culturas Populares, em Caracas, e produzimos a Carta Sul-Americana das Culturas Populares. Lembremos que a primeira Carta do Folclore Latino-Americano foi feita também em Caracas, em 1970. Com a participação de mestres, acadêmicos, pesquisadores, representantes do estado, da sociedade civil. A geração dos folcloristas dos anos 1950 mantinha um diálogo constante entre folcloristas dos vários países. Diminuímos o diálogo com os nossos vizinhos e o encontro aconteceu para voltarmos a dialogar, inclusive com os mestres sul-americanos. Faz parte do segundo momento dessa luta tão importante.
MARIA ALICE AMORIM, jornalista, pesquisadora de cultura popular e doutoranda em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.