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Ryoki Inoue: As histórias do “Sherazade”brasileiro

Apontado no Guinness book como o autor mais prolífico do planeta, com 1.100 títulos publicados, escritor revela o “caminho das pedras” para escrever um livro inteiro em menos de 24 horas

TEXTO Daniel Buarque

01 de Junho de 2011

Ryoki Inoue

Ryoki Inoue

Foto Divulgação

Em São José dos Campos, uma cidade tranquila a menos de 100 quilômetros do caos de São Paulo, vive o maior contador de histórias do mundo. Um brasileiro de origem luso-japonesa encarnou na vida real uma história que lembra a de Sherazade, a narradora dos “contos das mil e uma noites”, obrigada a inventar histórias para ter sua vida poupada pelo rei da Pérsia. Para garantir a sobrevivência (financeira) no Brasil das últimas décadas, Ryoki Inoue seguiu o modelo, e foi além. Ao longo dos últimos 25 anos, publicou 1.100 livros, consolidando-se como o autor mais prolífico do planeta, segundo o Guinness.

A proeza foi alcançada graças a uma enorme facilidade para inventar histórias, para contá-las por escrito em altíssima velocidade e por conseguir atrair os leitores para sua obra. Formado em Medicina, Inoue abandonou a carreira de cirurgião pelas letras em 1986, fazendo da escrita menos um ofício de arte e inspiração e mais um trabalho de transpiração e digitação.

O problema, ele diz, era deixar a Medicina e ainda ganhar dinheiro suficiente para ter o padrão de vida desejado. “Na hora em que as editoras acertaram que publicariam o que eu escrevesse, decidi produzir tudo o que conseguisse para poder ganhar dinheiro. Escrevia em média 12 livros por semana”, contou, em entrevista concedida durante a Bienal do Livro de São José dos Campos, em abril.

Em pouco tempo, ele já conseguia escrever – à máquina – até três livros em um único dia, finalizando a citada média de 12 volumes por semana. Os livros não eram de grande porte e quase 90% de tudo o que Inoue publicou chegou aos leitores em formato de bolso. As obras eram como contos longos, histórias simples e diretas, para uma leitura rápida. “Era muito gostoso escrever os pockets”, disse.

Os livretos iam parar nas bancas de revistas e eram lidos por um público diferente do que frequentava as livrarias. “Era uma febre”, conta. “Tinha livro por toda parte, e cada título vendia todos os 20 mil exemplares da tiragem.” Era o suficiente para poder ser chamado de best seller, o que sempre foi objetivo do autor.

LITERATURA PULP
O formato de bolso no Brasil nos anos 1980 era completamente diferente do que se vê hoje, com a entrada de grandes editoras no setor. Até a virada do século, em vez de obras em domínio público (por expiração do prazo de vigência dos direitos autorais) e livros de autoajuda, o mercado de pocket books era formado por obras chamadas pulp, com histórias simples, rápidas e empolgantes, uma leitura barata. Os títulos de Inoue foram publicados sob quase 40 pseudônimos, americanizados, para atrair mais os leitores, de acordo com estratégia mercadológica dos editores.

A sua fórmula da escrita, a exemplo do que fazia Sherazade, buscava prender o leitor à história a cada capítulo encerrado, tentando manter a sua curiosidade, impelindo-o a continuar a leitura até que se resolvessem os mistérios e a narrativa acabasse. A procura era tanta, que muitas dessas obras se esgotaram; o próprio Inoue não tem vários exemplares dos livros que escreveu e publicou. “Até hoje, recebo milhares de e-mails pedindo livros desse tipo.” Segundo ele, toda essa produção está sendo digitalizada e vai ficar disponível como e-book até o fim deste ano.


Imagem: Hallina Beltrão

Inoue conta que dominou 95% desse mercado na época. Fazia séries de histórias de faroeste, mistério, intriga, guerra, tudo no formato de bolso. Os livros não tinham mais de 100 páginas, ou cerca de 60 folhas batidas na máquina de escrever, de acordo com o autor. “Cada livro tinha 172.201 toques, e eu contava caractere por caractere”, disse, explicando como adquiriu uma boa noção do tamanho, permitindo-lhe escrever com o controle da história dentro desse espaço.

A memória de uma pessoa que publicou 1.100 livros precisa ser muito prodigiosa. Inoue admite que não se lembra dos títulos de todos os seus livros. Conta mais: muitas vezes se pega lendo textos que sequer imaginava ter escrito.

OBRAS MAIORES
Foi somente quando escreveu seu milésimo livro, em 1992, que Inoue finalmente viu seu nome na capa de uma obra, mudando o rumo de sua carreira. Pela primeira vez, escrevia um livro em formato grande. A partir de E agora presidente?, Inoue assinou a maior parte da centena de livros que publicou na última década. Essas obras mais recentes somam até 500 páginas, escritas após longa pesquisa, e conseguindo grandes vendagens no mercado editorial nacional.

Quatro anos depois dessa renovação profissional, Inoue encarou o seu afrontamento mais notório. Em 1996, ao saber do recorde do escritor brasileiro e ouvir dizer que ele já havia produzido até três livros no mesmo dia, o jornalista Matt Moffet, do Wall Street Journal, o desafiou. Decidiu acompanhar o processo e disse que queria ver Inoue criar uma história inteira, do nada, em seis horas.

Moffet foi à casa do recordista e o viu começar a escrever – então, já no computador – às 22h, terminando às 5h30 as mais de 100 páginas, bem-organizadas e em português decente, de uma história policial de mistério em que se tornou o personagem principal do autor. A obra foi publicada alguns dias depois, com o título Sequestro fast food. Moffett contou o caso no jornal americano, e registrou um dos fatos mais curiosos a respeito de Inoue. Apesar de brasileiro e recordista no Guinness, o escritor é virtualmente desconhecido no país.

Segundo Inoue, ser lembrado pela mídia mais pelo recorde de produção que por sua obra literária não o incomoda. “Não tive nenhuma intenção de ser o recordista e nunca busquei este título”, disse, lembrando que foi um jornalista que o indicou para ser reconhecido por esse aspecto. “É verdade que trouxe mais publicidade, mais visibilidade, mas isso não muda nada para mim.”

SEM COMENTÁRIOS
Entre os críticos literários, o escritor também é pouco lembrado, mas afirma não se importar com a situação. Para ele, mais que expressão artística, a literatura é trabalho, e escrever é uma forma de se sustentar fazendo algo de que gosta, não necessariamente uma arte superior. “A crítica não se incomoda comigo e não me incomoda”, comparou, com desdém, explicando que nunca foi avaliado por críticos sérios: “A crítica no Brasil não existe. Existem escritores frustrados que metem o pau em quem consegue escrever e vender”.


Imagem: Hallina Beltrão

Em entrevistas, Inoue sempre rejeita a ideia de que a literatura vem da inspiração. Branco, bloqueio de escritor, para ele, tudo isso “é preguiça mental”. Alega que nunca deixou de terminar um livro iniciado e conta que ainda tem mais de 300 livros prontos, mas não publicados.

Depois de tanto ouvir a pergunta “de onde vem tanta inspiração?”, Inoue passou a ensinar o que chama de “caminho das pedras”, um manual de como escrever um romance de ficção com potencial de se tornar best seller.

Ele explica que sempre monta um projeto antes de começar cada livro e segue a estrutura para finalizar a redação. “Penso sempre que é preciso um bom começo, um bom fim e saber encher bem o meio”, resumiu, ressaltando que o importante é trabalhar, escrever. “Eu imagino um filme, uma história completa, e saio escrevendo, direto, até terminar.”

DE OLHO NOS SUCESSOS
Prestes a completar 65 anos, Inoue não se parece mais com a figura jovial e bem-humorada que o descreviam no passado. Envelhecido e doente, ele passou a depender de uma cadeira de rodas, e parecia cansado, menos conversador, quando apareceu na Bienal de São José dos Campos. Mesmo assim, mostra-se simpático, garantindo que continua escrevendo muito, todos os dias. “Escrevo sempre. Faço uma média de um ou dois livros por ano”, diz.

Além de escritor prolífico, Inoue afirma-se bom leitor, contabilizando a leitura de, pelo menos, quatro livros por mês. Ele diz manter-se atualizado com os lançamentos, de olho nos best sellers do momento, fontes de inspiração para que produza títulos de venda garantida.

Leu os sucessos do sueco Stieg Larsson, autor da série Millenium, por exemplo, mas disse que não gostou dele e não entende por que vendeu tanto. Entre os mais recentes – e que tiveram grandes vendagens –, cita Dan Brown, autor de O código Da Vinci.

A série do norte-americano inspirou Inoue. Um de seus livros mais recentes, Fruto do ventre, embaralha mistério, história e religião, como fez Brown. Em Inoue, grupos da Igreja Católica cogitam clonar Jesus. Com mais de 20 mil exemplares vendidos, número alto para o mercado brasileiro, Fruto do ventre foi lançado pela editora Record. Junto a Saga (Ed. Globo), o título foi uma das poucas incursões do escritor mais prolífico do mundo entre as gigantes do livro no Brasil.

Isso porque Inoue afirma não ter gostado da experiência: achou o tratamento péssimo e o pagamento pelos direitos autorais lento e desorganizado. Desde então, publica ele mesmo seus livros, colocando-se como uma voz de oposição aos sistemas tradicionais de edição, impressão e distribuição dos livros, que costumam abocanhar a maior parcela do dinheiro envolvido na compra de um livro.

Foi de forma independente que saiu Também se lava com água benta, seu livro de número 1.100, publicado pela Ryoki Produções, pequena editora criada para cortar caminho e atrair novos escritores. “Não sou ‘mercadante’ de livros. Leio e avalio cada obra que lançamos, e sempre dou o último crivo antes de promovermos algum título”, definiu. Ele explica, entretanto, que edição e impressão dos livros são custeados pelo próprio autor, que assim controla melhor a vendagem e o recebimento dos seus direitos autorais. De acordo com ele, cabe ao produtor o trabalho de editar, divulgar e distribuir.

O homem das 1.100 histórias ainda nutre outros projetos. Segundo ele, além de já ter um livro na agulha, Fraude verde, guarda três dezenas de ideias de livros, que pretende escrever nos próximos anos.

Durante a conversa na Bienal de São José dos Campos, Inoue revelou que vai participar da Festa Literária Internacional de Pernambuco, a Fliporto, deste ano. Segundo ele, os organizadores do evento pediram que integre o encontro sobre o diálogo entre Ocidente e Oriente, a partir de uma de suas obras mais recentes, Saga, que trata de quatro gerações de japoneses. Ele fará palestra sobre o que acontecia no Brasil enquanto se desenrola a parte da história do livro no Japão. 

DANIEL BUARQUE, jornalista e autor do livro Por um fio – O mundo explicado pelo telefone.

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