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Na perplexidade de um segundo

TEXTO Luciano Pontes

01 de Junho de 2011

Luciano Pontes

Luciano Pontes

Foto Luciana Dantas/Divulgação

Os dias passam e as promessas de mudança parecem ficar guardadas como imagens fotografadas na perplexidade de um segundo. Empilhadas, vão se amontoando em álbuns as imagens indesejáveis de uma vida inteira. E não é preciso encher as prateleiras das estantes, porque a cada instante elas disparam flashes em nossa memória. Falo disso porque ando, assim como Manoel de Barros, catando nas miudezas as grandezas significativas para vida; e delas faço questão de contar. “É da poeira do cotidiano que se extrai poesia”, diz Elisa Lucinda. E, só para elucidar, retiro a pouca poeira do álbum arquivado recentemente e abro o verbo ao falar de uma dessas atitudes flagradas diariamente. Imagens que fazem a agressividade esbarrar ou mesmo se engarrafar em tons de verde, amarelo e vermelho nos cruzamentos constantes do trânsito das avenidas.

Essas mesmas imagens são retornáveis, porque, ao conduzir um carro, as miudezas de suas regras tornam-se grandezas e uma simples seta não acesa numa curva aciona o alerta e a agressividade destampa a garrafa e eclode em tom verbal – “liga a seta!” – ou mesmo de perplexidade. Muitos, eu sei, estão preocupados com a alfabetização no trânsito. É que ela é tão importante quanto a formal; por que ler por imagem também não é uma alfabetização? Mas, se nessas pequenas grandes coisas deixamos nossa educação se relevar, passa-se a mão como afago de erro cometido sem dano algum. Os florais tentam amenizar minha irritação: quem é pedestre sente no corpo vários sustos a cada travessia; não há sinal na esquina de cada rua e não é que queira amenizar as esfarrapadas e “afoitices” dos pedestres. Mas sem fazer vista grossa, até porque sou míope.

O IBGE já deve ter feito algum levantamento do número de carros “sem seta” que existem e não sabemos. Os números crescem como os algarismos digitais que contabilizam os valores que pagamos aos impostos no telão exposto em plena rua. O país tem 5,9 habitantes por veículo. Para algum esperto, isso pode até dar sorte, e apostando – quem sabe – pode ganhar no bolão ou acertar no jogo do bicho. E assim seguimos montando álbuns e criando casos, alguns pela afirmação, outros pela indagação ou mesmo indignação. Por isso faço questão de falar, tentando encontrar, nessa poeira, a poesia do cotidiano. Tomo como ilustração uma amiga que cobra os centavos dos trocos. E isso é tão digno quanto defender as geleiras do Himalaia. 

LUCIANO PONTES, ator, palhaço e autor de livros infantis.

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