Forçadas a criar à distância, já que Laida morava em Barcelona e Verónica transitava entre Pamplona e Madri, usaram o blog como ferramenta de trabalho. “Cada uma de nós lançava, via internet, tarefas criativas para serem realizadas, discutidas, contestadas, desenvolvidas pela outra, enfim. Daí surgiram vídeos, fotografias, textos e coreografia. Em seguida, encontramos um jeito de organizar todo o material, fazendo novos arranjos e combinações a cada apresentação da pesquisa”, explica Laida.
Outra particularidade da composição da obra é o que as criadoras chamam de “paradas”. E a próxima será no Recife, na 9ª Mostra Dança Contemporânea, no Centro Apolo Hermilo, nos dias 18 e 19 deste mês. A “parada” começa uma semana antes, com a realização de um workshop/residência, em que a dupla partilha com os participantes os mecanismos e estratégias de criação de MU-TO e propõe trocas com os artistas de cada local – que costumam resultar em novas células e modificações do que será mostrado em cena. No Recife, esse encontro se chamará “La forma de la memória” e acontecerá no próprio Centro Apolo Hermilo, entre os dias 13 a 17, aberto à participação de qualquer pessoa que se interesse por um processo de investigação criativa em arte, sejam atores, bailarinos, performers, artistas plásticos ou videoartistas.
TRAJETO
Antes de aportar no Recife, a dupla “parou” em Civivox, em Pamplona; no festival Luna KREA, em Vitoria-Gasteiz; na mostra La Poderosa, em Barcelona, e no museu Reína Sofía, em Madrid, e no Mestrado em Práticas Cênicas e Cultura Visual, que Verónica está cursando. Isso quer dizer que a “parada” pernambucana será a primeira fora da Europa. “Sem dúvida, partilhar nosso processo com outra cultura será enriquecedor, uma nova e proveitosa aprendizagem. Estamos com bastante expectativa nesse reencontro com o Recife, já que minhas primeiras ideias para criação do projeto MU-TO surgiram exatamente no período em que estive aí, em 2009. Além disso, muitos dos nossos materiais audiovisuais foram gravados nesta cidade e estamos curiosas para observar a reação do público local, quando reconhecer as imagens”, comenta Laida.
As espanholas Laida Azkona e Verónica Eguaras misturam elementos da dança contemporânea com as artes plásticas e o audiovisual. Foto: Divulgação
Ela diz que o registro em vídeo não é a única ponte entre a Espanha e o Brasil. “Admito que não conheço suficientemente a dança contemporânea brasileira para fazer uma análise crítica, mas sei que existe uma imensa variedade de propostas e que muitas são de grande qualidade. Acredito que essa diversidade se origina nas muitas raízes culturais e sociais às quais os trabalhos fazem referência. Cada autor cria a partir de sua percepção, das suas preocupações e de seus gostos. Mas acho que as produções cênicas diferem umas das outras por causa dos interesses de cada criador, e não pelas características particulares de cada país.” Seja como for, ícones culturais – a exemplo de alguns passos de samba e do clássico do cancioneiro popular Aquarela do Brasil – estarão presentes no processo em trânsito das espanholas, lançando de maneira lúdica reflexões sobre identidades nacionais, relações humanas e o papel da arte na sociedade contemporânea.
A descontextualização, o contraste, a mudança de cotidiano e de ponto de vista que o encontro com outras realidades proporciona é o discurso e, ao mesmo tempo, o formato dessa performance de natureza mutante. As inquietações, os percursos internos das artistas servem de ponto de partida para a construção coletiva de itinerários reais e imaginários que são experimentados junto com o público, enquanto vão sendo mostrados, alterados, reelaborados, quase simultaneamente. As imagens originam outros movimentos e, na troca, novas relações são estabelecidas, mudando o contexto que, por sua vez, modifica as coreografias…e assim as mudanças vão se processando sucessivamente.
Será sempre difícil descrever MU-TO. Seu caráter cambiante não é compatível com nenhum formato fixo e não cabe nas descrições de nenhuma linguagem artística específica. É uma instalação ou intervenção de artes plásticas, mas é também uma mostra de vídeos e uma performance de dança contemporânea. Tudo isso junto, nas inúmeras combinações possíveis. Produto ou processo? Seja qual for a resposta, é um convite à viagem, não apenas no sentido literal, mas entendendo esse conceito de uma forma ampla. É produto e processo. Afinal, quando colocamos em cena parte de um curso criativo, o que mostramos não pode ser chamado e tratado como um espetáculo? Mais importante do que chegar a um consenso sobre essa questão, é entender que a arte saiu definitivamente da era da contemplação. Não somos mais chamados a ver, mas a experimentar, vivenciar... fazer parte do processo.
CHRISTIANNE GALDINO, jornalista e mestre em Comunicação Rural.