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MU-TO: E se o que estamos vendo não estiver pronto?

Obra das espanholas Laida Azkona e Verónica Eguaras é uma experiência cênica que gera dúvidas sobre o estágio em que ela se encontra

TEXTO Christianne Galdino

01 de Junho de 2011

Foto Divulgação

Processo ou produto? Volta e meia, essa questão ressurge no universo das artes. O cenário contemporâneo estabeleceu a era do processo, quando este tem sido protagonista e foco das atenções, pelo menos entre artistas, pesquisadores e críticos. Em contrapartida, percebe-se que o público não está completamente atento a esses deslocamentos, tampouco familiarizado com as novas configurações. Independentemente dessa recepção tardia, aumentam as mostras de processo, em que os criadores organizam cenicamente o que estão investigando e apresentam publicamente. É possível que a ideia de exibir uma obra ainda na fase da elaboração siga a lógica das produções interativas, cuja proposta é estreitar a relação artista-público. MU-TO, trabalho das espanholas Laida Azkona e Verónica Eguaras, é uma dessas experiências de produtos cênicos que são processos. E a proposta vai além da participação da plateia em cena. As pessoas são convidadas e direcionadas a uma coautoria, já que podem interferir no processo criativo.

Outra questão recorrente na arte contemporânea, e que marca essa primeira criação conjunta da dupla, é o diálogo entre linguagens artísticas. Laida vem da dança contemporânea e Verónica, das artes plásticas e do audiovisual. O trânsito, nesse caso específico, não se dá apenas entre formatos, mas é também o assunto da performance e sua metodologia. “Eu estava realizando uma pesquisa a pedido de um centro cultural de Pamplona, minha cidade natal, para criação de um solo de dança contemporânea, e, paralelo a isso, preparava- me para uma viagem de intercâmbio ao Brasil. Naturalmente, reflexões sobre o conceito de viagem passaram a ser o foco do projeto. Assim começou a se desenhar MU-TO”, conta a bailarina Laida Azkona.

Aos poucos, várias contribuições foram ampliando e aprofundando o significado inicial de viagem. Dentre elas, o encontro com Verónica Eguaras foi a de maior efeito transformador. Laida já estava na fase de mostrar os primeiros resultados de sua pesquisa, quando Verónica juntou-se a ela. Iniciaram, então, um processo de montagem, descobrindo um método de criação comum, já que ambas desejavam mudar sua forma de trabalhar, “queriam se dedicar mais à construção de uma linguagem criativa do que à produção de espetáculos”, como defendem. A metodologia surgiu das necessidades e limitações.


Na apresentação, as pessoas são convidadas e direcionadas a
uma coautoria, interferindo no processo criativo. Foto: Divulgação

Forçadas a criar à distância, já que Laida morava em Barcelona e Verónica transitava entre Pamplona e Madri, usaram o blog como ferramenta de trabalho. “Cada uma de nós lançava, via internet, tarefas criativas para serem realizadas, discutidas, contestadas, desenvolvidas pela outra, enfim. Daí surgiram vídeos, fotografias, textos e coreografia. Em seguida, encontramos um jeito de organizar todo o material, fazendo novos arranjos e combinações a cada apresentação da pesquisa”, explica Laida.

Outra particularidade da composição da obra é o que as criadoras chamam de “paradas”. E a próxima será no Recife, na 9ª Mostra Dança Contemporânea, no Centro Apolo Hermilo, nos dias 18 e 19 deste mês. A “parada” começa uma semana antes, com a realização de um workshop/residência, em que a dupla partilha com os participantes os mecanismos e estratégias de criação de MU-TO e propõe trocas com os artistas de cada local – que costumam resultar em novas células e modificações do que será mostrado em cena. No Recife, esse encontro se chamará “La forma de la memória” e acontecerá no próprio Centro Apolo Hermilo, entre os dias 13 a 17, aberto à participação de qualquer pessoa que se interesse por um processo de investigação criativa em arte, sejam atores, bailarinos, performers, artistas plásticos ou videoartistas.

TRAJETO
Antes de aportar no Recife, a dupla “parou” em Civivox, em Pamplona; no festival Luna KREA, em Vitoria-Gasteiz; na mostra La Poderosa, em Barcelona, e no museu Reína Sofía, em Madrid, e no Mestrado em Práticas Cênicas e Cultura Visual, que Verónica está cursando. Isso quer dizer que a “parada” pernambucana será a primeira fora da Europa. “Sem dúvida, partilhar nosso processo com outra cultura será enriquecedor, uma nova e proveitosa aprendizagem. Estamos com bastante expectativa nesse reencontro com o Recife, já que minhas primeiras ideias para criação do projeto MU-TO surgiram exatamente no período em que estive aí, em 2009. Além disso, muitos dos nossos materiais audiovisuais foram gravados nesta cidade e estamos curiosas para observar a reação do público local, quando reconhecer as imagens”, comenta Laida.


As espanholas Laida Azkona e Verónica Eguaras misturam elementos da dança contemporânea com as artes plásticas e o audiovisual. Foto: Divulgação

Ela diz que o registro em vídeo não é a única ponte entre a Espanha e o Brasil. “Admito que não conheço suficientemente a dança contemporânea brasileira para fazer uma análise crítica, mas sei que existe uma imensa variedade de propostas e que muitas são de grande qualidade. Acredito que essa diversidade se origina nas muitas raízes culturais e sociais às quais os trabalhos fazem referência. Cada autor cria a partir de sua percepção, das suas preocupações e de seus gostos. Mas acho que as produções cênicas diferem umas das outras por causa dos interesses de cada criador, e não pelas características particulares de cada país.” Seja como for, ícones culturais – a exemplo de alguns passos de samba e do clássico do cancioneiro popular Aquarela do Brasil – estarão presentes no processo em trânsito das espanholas, lançando de maneira lúdica reflexões sobre identidades nacionais, relações humanas e o papel da arte na sociedade contemporânea.

A descontextualização, o contraste, a mudança de cotidiano e de ponto de vista que o encontro com outras realidades proporciona é o discurso e, ao mesmo tempo, o formato dessa performance de natureza mutante. As inquietações, os percursos internos das artistas servem de ponto de partida para a construção coletiva de itinerários reais e imaginários que são experimentados junto com o público, enquanto vão sendo mostrados, alterados, reelaborados, quase simultaneamente. As imagens originam outros movimentos e, na troca, novas relações são estabelecidas, mudando o contexto que, por sua vez, modifica as coreografias…e assim as mudanças vão se processando sucessivamente.

Será sempre difícil descrever MU-TO. Seu caráter cambiante não é compatível com nenhum formato fixo e não cabe nas descrições de nenhuma linguagem artística específica. É uma instalação ou intervenção de artes plásticas, mas é também uma mostra de vídeos e uma performance de dança contemporânea. Tudo isso junto, nas inúmeras combinações possíveis. Produto ou processo? Seja qual for a resposta, é um convite à viagem, não apenas no sentido literal, mas entendendo esse conceito de uma forma ampla. É produto e processo. Afinal, quando colocamos em cena parte de um curso criativo, o que mostramos não pode ser chamado e tratado como um espetáculo? Mais importante do que chegar a um consenso sobre essa questão, é entender que a arte saiu definitivamente da era da contemplação. Não somos mais chamados a ver, mas a experimentar, vivenciar... fazer parte do processo. 

CHRISTIANNE GALDINO, jornalista e mestre em Comunicação Rural.

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