Formado atualmente por 12 fotógrafos, na faixa etária entre 20 e 30 anos, moradores de comunidades populares cariocas, o Favela em Foco é considerado uma referência entre os que democratizam a comunicação e a informação por meio da fotografia. O coletivo surgiu durante ações de educação continuada da Escola de Fotógrafos Populares, na Favela da Maré – um importante centro de formação em fotografia documental e jornalística com foco em direitos humanos do país.
CRITÉRIOS VISUAIS
A escola foi fundada há sete anos pelos fotógrafos João Roberto Ripper e Ricardo Funari. Na época, Ripper recebeu uma proposta do Observatório das Favelas para fotografar as comunidades cariocas a partir de pilares como beleza, solidariedade, coletividade, resistência, sensualidade, compromisso e afeto. Durante a documentação, percebeu que, além das diversas histórias relacionadas com os temas propostos pela organização, havia muita gente interessada em estudar fotografia. Assim, ele propôs a criação de um centro de educação continuada na favela.
O Observatório das Favelas acolheu a iniciativa, que passou por uma série de modificações até ganhar a configuração que tem hoje, sob a guarda do Projeto Imagens do Povo. São 10 meses de formação, com encontros diários, numa carga horária de 540 horas/aula, dividas em três módulos. Por meio de uma parceria com o programa de extensão da Universidade Federal Fluminense (UFF), foi possível certificar os participantes e garantir um conteúdo teórico e prático pautado pela reflexão do papel da imagem na sociedade e seus desdobramentos nas relações sociais, como aponta o coordenador acadêmico do projeto, Dante Gastaldoni.
A Escola de Fotógrafos Populares propõe discussões sobre direitos humanos e cidadania. Os participantes estudam conteúdos como a fotografia como instrumento de transformação social e a diversidade de olhares e a importância dos contextos, entre outros. Além da escola, o Imagens do Povo também agrega o Curso de Formação de Educadores em Fotografia, pelo qual se aprendem metodologias de ensino; a Galeria 535, localizada na Favela da Maré e dedicada a mostras fotográficas gratuitas; as Oficinas Pinhole, em parcerias com escolas públicas e instituições; a Agência Imagens do Povo, que desenvolve cobertura para uma rede diversa de clientes e parceiros; e um Banco de Imagens, com fotografias de várias regiões do país.
Dante Gastaldoni conta que eles também realizam atividades de educação continuada ao longo do ano. “Temos encontros com fotógrafos, cursos de curta duração e também incentivamos os trabalhos independentes dos ex-educandos da escola e dos participantes da agência, como é o caso do próprio Coletivo Favela em Foco. Nós percebemos que essa relação fortalece as ações de todos os envolvidos e é muito importante para reverberar os bons resultados que conseguimos dentro e fora do projeto.”
Um exemplo é a relação criada com o diretor argentino Guillermo Planel. Quando lançou o documentário Abaixando a máquina – Ética e dor no fotojornalismo carioca, Planel viu o filme ser questionado por parte do meio fotográfico carioca, ao tratar as favelas como território de guerra civil, sem tocar na perspectiva desenvolvida pelos fotógrafos populares, que vinham tentando quebrar esse estigma. O diálogo resultou no documentário Vivendo um outro olhar, que debate a necessidade de humanização da mídia a partir de um jornalismo feito pelos próprios moradores das favelas. Esse é o último filme da trilogia de Planel sobre o fotojornalismo no Rio de Janeiro, da qual também faz parte Imagens do jongo.
Moradora de favela carioca clicada por Fábio Caffé, que defende a construção de uma percepção ampliada da cidade. Foto: Fábio Caffé
O diálogo com profissionais da imagem é uma tentativa de refletir sobre o que Zuenir Ventura chama de “cidade partida”, que é a divisão das metrópoles em territórios associados a conceitos como “lugar bom” ou “lugar ruim”, que mais servem para provocar conflitos do que para resolver problemas. Integrante do Coletivo Favela em Foco, Fábio Caffé defende a necessidade de construir uma percepção mais diversificada da cidade: “Um dos principais ideais é ver os espaços populares por sua beleza e resistência e vivenciarmos as favelas, quilombos, áreas indígenas também a partir de uma perspectiva positiva e amorosa. Precisamos valorizar cada vez mais nossa identidade e realizar uma fotografia engajada com os moradores”.
FORTALECIDOS
A parceria efetiva com a comunidade foi uma das principais conquistas dos fotógrafos populares. Também membro do Favela em Foco, Elisângela Leite trabalha atualmente no Maré de Notícias, jornal que distribui cerca de 35 mil exemplares com pautas feitas por repórteres e fotógrafos da própria Favela da Maré. Naíma Santos, por sua vez, documentou a Família dos Remédios, um grupo de caiçaras que residem na praia de Martim de Sá, na costa que liga o Rio de Janeiro a Paraty. Ela escolheu os pescadores porque “cultivam um modo de vida simples, em que a preservação e interação com a terra, o mar e o meio ambiente se fazem necessárias”.
Durante seu trabalho de documentação, um dos pescadores recebeu uma oferta em dinheiro para deixar a área e a recusou. Os proponentes entraram com processo judicial, alegando propriedade da terra. A fotógrafa afirma que a Família dos Remédios reside nas terras há décadas e que suas fotos podem ser usadas no julgamento do processo, em favor dos caiçaras.
A fotografia compartilhada tem sido a marca do coletivo. Antes de estudar na Escola de Fotógrafos Populares e fazer o primeiro documentário, Léo Lima jamais havia lido um livro. Ganhou um exemplar do Caçador de pipas e o enredo o motivou a realizar um ensaio com Nenê, morador da favela do Jacarezinho, que é conhecido como um lendário soltador de pipas. Como Nenê é portador de deficiência mental, a aproximação foi cuidadosa. Léo desenvolveu um diário em que relatava aos colegas do coletivo as conversas e construção do relacionamento com Nenê, até a finalização do ensaio, que levou o mesmo nome do livro de Khaled Hosseini.
Outro exemplo de confiança da comunidade ocorreu com Adriano Rodrigues, quando ele observou mudanças ocorridas nos jardins e quintais das comunidades por causa da necessidade de moradia. Essas áreas foram transformadas em cômodos ou até em novas casas, e o espaço para diversão transferido para as lajes. Nos últimos anos, Rodrigues vem fotografando festas, encontros e os momentos de contemplação dos jovens, com a permissão das famílias, abordando o lazer como direito humano.
Imagem expressa como a arte pode modificar a paisagem urbana e sensibilizar os indivíduos para sua fruição. Foto: Ratão Diniz
Além de trabalhos como esses, desenvolvidos dentro da própria comunidade, os integrantes do Favela em Foco estão mapeando grupos afins, em todo o país, para realizar projetos em conjunto. Segundo Ratão Diniz, que também integra o Coletivo, o plano não para por aí. “O nosso sonho é realizar um trabalho desses no Nordeste. Ver uma Escola de Fotógrafos Populares, com uma estrutura que pudesse proporcionar às pessoas um curso de excelência nas comunidades populares. Adoraríamos testemunhar isso funcionando. Não importa o tempo que demore para acontecer.”
INTERCÂMBIOS
Ainda que não haja estrutura física da escola no Nordeste, o Coletivo Favela em Foco costura intercâmbios na região. Ratão Diniz realizou documentações e parcerias na Paraíba, a partir do Projeto Revelando Brasis, do qual participa há cerca de quatro anos. Fábio Caffé, Francisco César e Naíma Silva estiveram no Recife em 2010, criando relação de afeto e colaboração com integrantes do Fotolibras e do Revelando o Coque, que também são consideradas propostas importantes na ampliação da discussão social por meio da fotografia.
O Revelando o Coque surgiu de uma iniciativa da Rede Coque Vive, dentro do Programa de Extensão da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em parceria com o Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (Mabi) e o Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (Neimfa). Começou com a edição de um jornal laboratório, o Coque, coautoria que rendeu aos participantes o Prêmio Caixa de Jornalismo.
O lançamento do jornal, no entanto, trouxe uma situação polêmica: alguns pais dos alunos de Jornalismo impediram os filhos de participarem da produção do jornal laboratório para evitar que frequentassem a comunidade. Naquele 2006, a produção noticiosa que associava o Coque à violência e à exclusão era tão forte, que o aprendizado e a colaboração foram colocados de lado, por algumas famílias, para dar lugar ao medo estampado na imprensa. O impasse motivou os alunos que permaneceram no projeto a mostrar outro ponto de vista do lugar, no qual o Revelando o Coque assumiu um papel essencial.
A ideia de usar a fotografia como elemento de comunicação foi de Lucas Cardim. O curso não seria focado numa linguagem fotográfica específica, mas nas entrelinhas de discurso que as imagens produzidas pelos moradores traziam. Com o tempo, a percepção que os participantes do bairro tinham sobre o próprio lugar em que moravam começou a mudar.
Segundo Cardim, os dois grupos que eles tiveram nesses cinco anos de projeto possuem características distintas. “A primeira turma, até pela própria experiência do bairro, teve uma postura mais política, de tentar mostrar para a cidade que o Coque não era aquele espaço de violência sem lei que saía nos jornais. O segundo grupo preferiu circular pelas ruas e descobrir personagens diferenciados, pessoas que estavam associadas a alguma lenda, mas que ninguém nunca havia perguntado o porquê daquilo.”
Adriano Rodrigues registra as mudanças nas casas das favelas com a construção de lajes indivíduos para sua fruição. Foto: AF Rodrigues
Os integrantes conseguiram, a partir disso, retratar as histórias do bairro e reforçar a luta política pela ocupação da Ilha de Joana Bezerra. Um dos educandos do projeto, Sandokan Xavier, acompanhou mais de perto as ações dessa documentação porque integrou as duas turmas. Ele é considerado um elo entre as fases do Revelando o Coque e pôde observar como a fotografia ajudou na mudança da representação da comunidade, ao estar dentro de um processo maior de transformação social, motivado pelas ações e parcerias da Rede Coque Vive.
Desde que passou a fotografar, Xavier dedica-se à documentação da rotina no Coque, captando as sutilezas da relação entre os moradores e a perspectiva visual que apenas quem reside no local consegue ter do Recife. Em paralelo, faz cursos, participa de oficinas, acompanha os trabalhos realizados dentro do Revelando o Coque. Sua dedicação o levou a ser indicado pela Unicef, em 2008, para participar como fotógrafo da Caravana Selo Unicef, cujas equipes visitaram cidades no interior de Alagoas, Paraíba e Pernambuco com o intuito de elaborar um ponto de vista sobre as cidades e os avanços nos direitos da criança e do adolescente.
Com mais um educador, Chico Ludermir, o Revelando o Coque chega aos cinco anos de atividades. Um novo projeto, que está sendo coordenado por Ludermir, vai trabalhar o conceito de autorrepresentação. A partir da construção de autorretratos, cada integrante será convidado a olhar para a própria imagem como uma forma de falar e cuidar de si mesmo e do outro.
GUIAS VISUAIS
Para fortalecer a circulação de conteúdos sobre as iniciativas desses projetos, tanto na internet quanto fora dela, os coletivos e projetos fotográficos precisam ampliar o uso de ferramentas que permitam o acesso de um público mais diversificado. Os integrantes do Fotolibras, por exemplo, vêm usando a fotografia como forma de expressão, mas também incentivam outras propostas de diálogo, criando guias específicos de sinais para que o público de ouvintes e não ouvintes possa interagir com eles.
Quem entra na página virtual do projeto recifense encontra duas publicações disponíveis em PDF. Uma delas traz um glossário de termos fotográficos, criado pelo próprio Fotolibras, com linguagem de sinais, que visa aproximar as pessoas dos códigos usados por eles no momento em que estão se referindo aos elementos da fotografia. Dessa maneira, os participantes e colaboradores utilizam a fotografia como alternativa de visibilidade da cultura surda dentro do campo da comunicação.
Sandokan Xavier documenta a rotina no Coque, buscando captar a relação entre moradores. Foto: Sandokan Xavier
No caso do Fotolibras, além de um incentivo para que os participantes documentem o universo dos surdos no país, a fotografia é utilizada para discutir também caminhos de expressão pessoal. Tatiana Martins, que hoje é uma das coordenadoras do projeto, nasceu ouvinte e ficou surda aos 6 anos em uma família de ouvintes. Ela relata que, mesmo com a língua de sinais, ainda enfrentava dificuldades em se comunicar e que, agora, três anos depois de ter ingressado no grupo, percebe a ampliação de seu vocabulário.
“O projeto tem mostrado a identidade surda. E muitos surdos que não conseguiam se comunicar devidamente com a sociedade têm feito isso através da fotografia. Os ouvintes não sabem línguas de sinais, mas a fotografia é universal. Eu mesma adquiri mais autoconfiança, hoje tenho mais liberdade de me expressar e desenvolvo um trabalho fotográfico que está relacionado com as sombras e a contraluz. As sombras ajudam a refletir a linguagem dos sinais e, através delas, há comunicação”, comentou Tatiana.
O Fotolibras cultiva a liberdade de atuação e, segundo o coordenador Eduardo Queiroga, o objetivo é trabalhar para que ele ganhe cada vez mais autonomia. A partir disso, será possível investir mais na discussão da própria fotografia e na sua importância para a amplificação dos discursos que permeiam a cultura surda, uma vez que, mesmo no campo da imagem, ainda existem questões sutis que nem sempre facilitam o cotidiano do público surdo.
“Quando eles chegam ao projeto, a gente percebe que muitos não prestavam atenção à imagem antes, porque ela está muito ligada ao universo da palavra. Então, como eles não falavam, isso os distanciava desse tipo de produção”, comenta Queiroga. Por outro lado, como diz Tatiana Martins, “o surdo acaba tendo facilidade de lidar com a imagem, porque a sua percepção de mundo é baseada na construção da visualidade. Esse é um código forte, porque ele não escuta, mas lê sinais e compreende muito bem as expressões”.
Quando se consegue despertar o interesse deles e associá-lo à facilidade de abordar o mundo visualmente, os resultados podem ser trabalhos de qualidade discursiva. Um dos exemplos é o trabalho Sou surdo, sou feliz, que o grupo acabou de fazer e que será transformado em postais. Os integrantes investem também em grupos de discussão de projetos fotográficos, com o intuito de manter a produção. Segundo Eduardo Queiroga, essa é uma estratégia importante, porque “a sociedade não é organizada para lidar com pessoas que desenvolvem um pensamento crítico. Considerando que a escola formal não se prepara para receber surdos, eles ficam alheios ao conhecimento que contribui para a reflexão crítica”.
Segundo Queiroga, ainda é preciso investir no pensamento crítico em qualquer projeto e apoiar as mais diversas formas de discussão. Ele comenta que “a sociedade – e isso inclui todos nós – ainda está muito verde na leitura crítica da imagem, embora viva cercada delas. A fotografia é vista apenas como registro e testemunho ativador da memória. Ela precisa ser vista como linguagem de expressão pessoal, discurso, possibilidade de comunicação. Dependendo de como for usada, pode reforçar estereótipos de exclusão. É isso que a gente quer mudar”.
ANA LIRA, jornalista, fotógrafa e integrante do Trotamundos Coletivo e do Boivoador. Pós-graduada em Teoria e Crítica de Cultura.