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Comida que alimenta movimentos sociais

No restaurante Kovacic, a receita é aglutinar num só cardápio o prazer criativo da refeição ao desejo de melhorar a vida de minorias

TEXTO SAMARONE LIMA
FOTOS FLORA PIMENTEL

01 de Junho de 2011

Mesmo antes de virar cozinheiro, o croata-chileno Claudio Kovacic já era apaixonado por temperos

Mesmo antes de virar cozinheiro, o croata-chileno Claudio Kovacic já era apaixonado por temperos

Foto Flora Pimentel

Um pequeno quadro-negro, pendurado do lado de fora do portão de uma casa simples, cercada de plantas, nos arredores da Universidade Católica de Pernambuco, informa: “Kovacic Almoço”. Quem vem abrir o portão é um homem de idade incerta, que se define como croata-chileno, com sangue cigano circulando nas veias, tão apegado a viver pelo mundo, que é mais fácil saber quantos países ele não conhece. Pelas contas dele, são uns três ou quatro.

São 30 cadeiras brancas e sete mesas, dispostas em um salão principal e dois menores. Na mesa principal, além de velas apagadas da noite anterior, o cliente pode não entender muito bem a presença de livros como Saúde e prevenção na escola; Pesquisa sobre abuso sexual; Direitos humanos no Brasil, além de um grande livro sobre mortos e desaparecidos políticos no Brasil. Em outra mesa, o contraponto. Livros como A comida baiana de Jorge Amado, A rainha que virou pizza – Crônicas em torno da comida do mundo, entre outros.


O Restaurante Kovacic tem um ar intimista: salão principal e dois menores, com apenas sete mesas e 30 cadeiras

Mas não se espante com a mistura. No térreo, funciona o Restaurante Kovacic, com almoço e jantar de quinta a sábado (consulte no www.kovacic.institutosois.org). O detalhe é que os cardápios são temáticos, e ficam disponíveis por uma semana. “Uma receita nunca volta a ser repetida. Utilizamos para introduzir determinadas misturas e sabores, para provocar uma certa reflexão”, explica Claudio Kovacic. Numa semana, é possível se deparar com o “Cardápio da chuva”, na outra, com o “da liberdade”, o “das mulheres”, e inovações como o “Festival dos Dons Divinos”. Tudo, inclusive receitas, é compartilhado pelo Facebook (Kovacic A Cozinha).

No primeiro andar, outras misturas, dessa vez envolvendo grupos, profissionais que atuam na sociedade civil em questões como segurança e saúde pública. É o Instituto Sois, que atua em cinco comunidades do Recife e Região Metropolitana. De segunda a quarta, o espaço pode abrigar encontros dos mais variados, envolvendo diversos atores que tentam mudar o cotidiano de violência e opressão contra minorias, como o Coletivo de Entidades Negras (CEN), a Oficina Fotolibras, o Seminário para Formação de Lideranças Políticas do Movimento Lésbico, as reuniões da Associação de Trabalhadores Domésticos de Águas Compridas, o Grupo de Apoio aos Transexuais de Pernambuco.

“De quinta a sábado, é restaurante”, afirma Kovacic. O detalhe é que o movimento na cozinha tem repercussão na sobrevivência da organização. Quase 80% do caixa vai para a manutenção do Instituto Sois. “Nós somos um caminho viável para canalizar apoio. Não tem que doar dinheiro, tem apenas que vir e comer bem aqui”, diz. Pelos cálculos de Kovacic, se o restaurante funcionar satisfatoriamente nos três dias da semana, consegue viabilizar projetos que terão impacto na vida de 1.600 pessoas.


Toda a comida é feita na hora, pelo próprio Kovacic, menos a sobremesa, preparada pela manhã

COZINHA DE FUSÃO
O “comer bem” não é conversa de cozinheiro que conheceu países e se deslumbrou com o Brasil. É a vivência de um homem que andou pelo mundo, durante mais de 20 anos, pesquisando, colhendo temperos, cheirando, testando receitas. Toda a comida é feita na hora, exceto a sobremesa, que é feita de manhã. Não se usa comida congelada. “É uma cozinha de fusão. Colecionei temperos a vida inteira. No Sudão, encontrei a pétala de uma flor chamada karkaré, que se usa para fazer suco, com tamarindo, e também é utilizada como tempero e na sobremesa”, exemplifica.

A comida servida na casa simples, aconchegante, que à noite tem muitas velas, música boa e o bom papo do proprietário, é a síntese de uma vida intensa. Kovacic trabalhou em cooperações internacionais, a serviço da ONU. Depois das infindáveis reuniões, encontros, trabalhos, relatórios, ele se atirava sem medo às ruas, percorria as áreas mais fechadas, subúrbios, mercados; sem contar aquelas instigantes, nas quais os visitantes são recomendados a visitar sob a condição do aviso universal “ali é perigoso”.

O fascínio por temperos sempre falou mais alto que qualquer preocupação com segurança. Ele conta que o único grande perigo por que passou aconteceu no sul da França, quando esbarrou com um grupo de árabes que estavam um pouco irritados. Kovacic conseguiu repetir várias vezes, em árabe, “eu não quero problemas”, e tudo terminou por ali.


No jantar, são servidos sete pratos (entradas, prato principal e sobremesa), alterados semanalmente

O momento decisivo para tornar-se um cozinheiro de verdade aconteceu em 1992, quando fazia um trabalho em Hamallah, na Palestina, com mais de 30 pessoas, de várias partes do mundo. Kovacic, claro, era o cozinheiro oficial. Saía para o mercado em busca de comida fresca e os ingredientes certos para uma bela janta. “Eu comprava os temperos à mão aberta, como os muçulmanos. Você bota as moedas na mão, eles tiram exatamente o valor correto, nunca vão te roubar. Para cada tempero, me davam dois ou três outros diferentes, de cortesia. Voltei para casa com uns 30, 40 tipos diferentes”.

BUSCA PESSOAL
Foi somente em 2008 que Kovacic resolveu abrir o restaurante, depois de uma paixão arrebatadora pelo Brasil. “Não achava nada que me fizesse deixar minha casa, em Amsterdã, para morar no Brasil. Minhas relações com o país passavam por cidades de que eu tinha informações, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre. Na verdade, nunca gostei muito do Brasil”, confessa.

Até que um dia, em 2005, decidiu que seu compromisso com a “família Nações Unidas” havia terminado. Pensava em morar numa ilha entre a Tailândia e a Malásia. Antes, veio participar de uma reunião sobre saúde pública, no Recife. “Depois de dois ou três dias, me vi envolvido em um espaço social e político que achei fascinante. Fiquei tomado pelo cheiro, pelo sol, pelas cores, pela rua. Depois, vim mais umas 20 vezes”.

A decisão de morar no Recife era também o resultado de uma necessidade pessoal.“Eu não me vejo novamente morando na Europa. Acho que não tem a ver com a minha busca. Queria me concentrar nas atividades de ação de base. Acho que o micro transcende o macro.”

No começo, o restaurante era desconhecido, o local não tinha visibilidade, mas foi resistindo e criando raízes, graças à persistência e ao humor irônico de Kovacic e seu pequeno grupo de quatro funcionários. “A gente abria, ria, criava um novo cardápio a cada semana. Foi o aniversário de um amigo que, de fato, iniciou os trabalhos.”

Hoje, os resultados começam a aparecer. Para o jantar, é recomendável telefonar e fazer uma reserva. Ao contrário de alguns lugares do Recife, que se transformaram nos “bares e restaurantes da moda”, com sua alta rotatividade, aonde as pessoas vão também para “verem e serem vistas”, o pequeno restaurante de Kovacic tem outra proposta. “Às vezes, as pessoas vêm aqui mais para se esconder, para comer bem, compartilhar uma mesa a dois, ou com seu grupo, de corpo e alma. As pessoas ficam em seu próprio mundo, e ficam muito bem.” 

SAMARONE LIMA, jornalista e cronista.
FLORA PIMENTEL, fotógrafa.

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