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Quinteto: Apenas uns caras “tirando um som”

Chega aos 40 anos o grupo pernambucano que rompeu vários paradigmas na indústria fonográfica, entre os quais o de ter sido o primeiro conjunto-empresa

TEXTO José Teles

01 de Maio de 2011

Ilustração de Toinho Wanderley representa o sucesso do grupo

Ilustração de Toinho Wanderley representa o sucesso do grupo

Ilustração Reprodução/Toinho Wanderley/Arquivo Quinteto Violado

No dia 26 de junho de 1972, a boate carioca Monsieur Pujol, em Ipanema, esteve apinhada de celebridades. Nenhuma novidade nisso. Afinal, a Monsieur Pujol pertencia à dupla Miéle & Bôscoli, que produzia o primeiro show “adulto” de Roberto Carlos no Canecão. Mas aconteceu uma grande novidade naquela noitada, que trouxe para a casa noturna não apenas socialites, mas nomes ligados à música como Braguinha, Humberto Teixeira, André Midani, os radialistas Big Boy e Ademir, Mister Eco (jornalista e jurado do programa Flávio Cavalcanti), Roberto Menescal, Tárik de Souza. O motivo da festa: o lançamento do disco de estreia de um grupo pernambucano, ilustre desconhecido, um certo Quinteto Violado. O “um certo”, pois, com pouquíssimas exceções, ninguém entre eles tinha ainda ouvido a música do QV.

O lançamento foi um acontecimento histórico na indústria fonográfica, a sua entrada na idade adulta. Até então nenhum conjunto (como então se chamavam as bandas) havia chegado ao LP, sem música gravada ou sem passar pelo estágio probatório do compacto simples. E mais: o LP Quinteto Violado recebeu da Phillips um investimento para divulgação, inédito no Brasil. Dali a uma semana, o QV lançaria o álbum no Dimonico, outro badalado ponto da época, em São Paulo, também com a presença do grand monde da Pauliceia, e convidados de outros estados.

Toinho Alves (baixista), Luciano Pimentel (bateria e percussão), Marcelo Melo (violão), Fernando Filizola (violão, viola, sanfona) e Sando (flauta, zabumba) haviam se tornado o Quinteto Violado apenas oito meses antes. Com exceção do flautista, eram músicos calejados, apesar da pouca idade (o mais velho era Luciano Pimentel, com 32 anos, o restante estava entre os 20 e 25 anos). Começaram em meados dos anos 1960, uns tocando em combos de samba-jazz, em musicais engajados, reflexo ainda do Movimento de Cultura Popular, ou até no iê-iê-iê.

Toinho Alves e Marcelo Melo foram integrantes do Bossa Norte. Marcelo integrou o grupo Construção, que montara espetáculos tendo como base a cultura popular (dele faziam parte Teca Calazans e Naná Vasconcelos, que foi baterista do Bossa Norte). Fernando Filizola foi guitarrista do Silver Jets, o mais famoso grupo da Jovem Guarda pernambucana (que teve como vocalista Reginaldo Rossi). Luciano Pimentel tocou na Banda Municipal do Recife e em vários grupos de samba-jazz. Generino Luna, o flautista da formação inicial do QV, também era outro tarimbado músico dessa cena.

Parte do QV trabalhava na recém-nascida TV Universitária, criada como emissora modelo, com seu próprio grupo musical TVU-3 (Toinho Alves, Luciano Pimentel e Sérgio Kyrilos). Marcelo Melo, formado em Agronomia, voltava de um mestrado na Bélgica, com passagem pela França, onde participou da gravação do LP Das terras do bemvirá, último disco de Geraldo Vandré. Fernando Filizola, entre outras virações, era produtor da TVU.

Passaram a “tirar um som” juntos, até que José Pimentel, da TVU, sugeriu a Plínio Pacheco que eles tocassem no I Festival de Verão de Fazenda Nova, no Teatro de Nova Jerusalém, antes de uma montagem, dirigida por ele, da peça Calígula, de Albert Camus. No dia 21 de outubro de 1971, o grupo fez sua primeira apresentação em público, nem nome tinha ainda escolhido. José Mário Austregésilo, que apresentou a banda no palco, recorda: “Eu estava em Fazenda Nova com o ator de Calígula. Fiz a apresentação do Quinteto, mas não foi assim um show comum, em palco. Eles tocaram em cima de uma grande pedra, para um público pequeno, atores, pessoas que trabalhavam na peça”.

Quando terminaram o show, os cinco músicos, de instrumentos na mão, foram vistos por um bando de garotos que brincava ali perto, um deles gritou para os amigos: “Lá vem os violados!”. Eles gostaram do “violados”, e surgiu daí o nome Quinteto Violado.


Em 1973, o Quinteto e Luiz Gonzaga (C) fizeram turnê pelo país.
Foto: Reprodução/Arquivo Quinteto Violado

Pouco tempo depois, Generino deixou o grupo e, para o seu lugar, foi convidado Alexander Johnson, ou Sando, que tocou na sinfônica, e participou da nascente Orquestra Armorial, sob a batuta de Cussy de Almeida. Se os integrantes do grupo eram jovens, Sando era um pirralho. Estava com 13 anos. Talento precoce da flauta, vinha de uma família de músicos (era neto por parte de mãe do inglês Jones Johnson, um dos pioneiros do frevo): “Quando me chamaram para tomar parte num conjunto nordestino, logo imaginei uma sanfona, um gibão e um chapéu de couro. De início, não quis aceitar, porque não sabia o que iria fazer, nesse meio, com a minha flauta. Quando vi a coisa de perto, descobri que não era nada disso, e larguei de lado Cat Stevens, James Brown, e toda minha formação de música americana, para me dedicar de corpo e alma ao trabalho”, conta Sando, que saiu do grupo em 1975, para se dedicar à música erudita, e atualmente mora em Natal (RN).

EDIÇÃO ESPECIAL
De imediato, o Quinteto Violado recebeu o apoio do escritor Hermilo Borba Filho, que o indicaria para um projeto sobre música nordestina a Aluísio Falcão, um pernambucano que trabalhava na agência Marcus Pereira. O publicitário Marcus Pereira costumava fazer edições especiais de discos para distribuir como brinde aos clientes. Ele passou à história da MPB como o empreendedor que mapeou a música popular de todas as regiões do Brasil, numa das mais importantes séries da discografia nacional. No entanto, os louros do projeto deveriam ser de Aluísio Falcão. Ele foi da seção pernambucana do jornal Última Hora, assessor especial de Miguel Arraes, em seu primeiro mandato, e um dos fundadores do Movimento de Cultura Popular.

Dificilmente o paulista Marcus Pereira teria o mesmo conhecimento que Falcão do filão inexplorado que era a música de cultura popular do Nordeste. O disco com que Marcus Pereira iria brindar os seus clientes em 1972 seria o álbum quádruplo Música popular do Nordeste, e a empreitada seria entregue ao Quinteto Violado, com Hermilo Borba Filho e Aluísio Falcão contribuindo nas pesquisas. O Quinteto caiu em campo já sabendo onde buscar o que desejava. Foi um disco que mexeu não apenas com a indústria fonográfica (que raramente se preocupou com tal tipo de música), mas também com a cabeça de toda uma geração que, pela primeira vez, teve acesso a cantadores de viola, emboladores, cirandas, frevos.

Música popular do Nordeste foi tão bem-recebido pela crítica, com tantas premiações, que Marcus Pereira decidiu mudar de ramo. Fechou a agência e abriu uma gravadora. Iria mapear o Norte, o Sul e o Centro-Oeste, e daria à MPB vários álbuns antológicos, até cometer o suicídio em fevereiro de 1981, por problemas pessoais. O trabalho realizado sob encomenda para Marcus Pereira carimbaria o passaporte do Quinteto Violado para o talento reconhecido entre os especialistas da MPB (o disco somente seria comercializado em 1973). Porém, fundamental para o sucesso do grupo foi a volta de Gilberto Gil da temporada forçada na Inglaterra, que durou de 1969 a 1971.

O primeiro show de Gil, no Brasil, aconteceu no Teatro do Parque, tendo como base o LP Expresso 2222. O baiano tem um carinho especial pelo Recife, cidade onde realizou a primeira temporada do seu disco de estreia, Louvação, em 1965 (antes do lançamento pela Phillips, em 1966). Gil passou mais de um mês na cidade, foi levado para conhecer manifestações da cultura popular, na Zona da Mata, e em Caruaru (quando voltou para São Paulo, começou a elucubrar o que seria batizado de Tropicalismo), e um dos músicos que o acompanhou na temporada que realizou no Teatro Popular do Nordeste foi o baterista Luciano Pimentel.

Quando Gil veio para o show no Teatro do Parque, conheceu o som do grupo e passou a divulgá-lo em entrevistas. Caetano Veloso nunca ouvira o Quinteto Violado, mas numa extensa entrevista à badalada revista carioca O Bondinho, ele declarou: “No Recife, Gil viu coisas incríveis. Um grupo chamado Quinteto Violado, ou Quarteto Violado, não sei, que é um coisa extraordinária”. Foi a senha para a Phillips assinar com o grupo, instado pelo produtor Roberto Santana, que acompanhou Gil na sua passagem pelo Recife em 1965, e estava com ele em 1972, no show da volta. Baiano de Irará, cidade natal de Tom Zé (de quem é primo), Roberto Santana dirigia a Phillips na região Norte/Nordeste, e seria o produtor do Quinteto Violado (e mais do que isso, já que também compunha, e escreveu textos como o do espetáculo A feira, em 1974).

MATOLÃO DE SUCESSO
A Phillips não teve do que se arrepender pelo que gastou para promover o QV. O disco esgotou nas primeiras semanas, a crítica foi unânime nos elogios. O QV virou, do dia para a noite, do grupo que fazia shows em casas de mecenas no Recife a fim de amealhar dinheiro para viajar para o Sudeste, numa das maiores atrações da MPB. Nisso, sua história se assemelha muito à do grupo Chico Science & Nação Zumbi. Ambos pousaram no “Sul Maravilha”como óvnis.

Se o maracatu atômico de CSNZ era uma incógnita até para Liminha, produtor de Da lama ao caos (1994), o que o QV trazia em seu matolão também não era menos estranho. Música de cavalo-marinho, ciranda, embolada, repente, frevos: o Quinteto Violado contribuiu para que essas tradições fossem incorporadas ao idioma da MPB, e cantadas do Oiapoque ao Chuí. Sua música gerou, por sinal, como ocorreria com Chico Science & Nação Zumbi, um interesse de músicos jovens pelas manifestações populares de suas regiões, levando ao surgimento de grupos assemelhados Brasil afora, como Bolo de Feira (SE), Tapes (RS), Banda de Pau e Corda (PE).


Com o disco Berra-Boi, o Quinteto Violado passou de “grupo regional” à MPB.
Imagem: Reprodução

O que estourou nacionalmente, no entanto, foi um arranjo com toques jazzísticos da “ene” vezes gravada Asa branca (de Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira), até hoje a assinatura do conjunto. Coincidentemente, em 1972, Luiz Gonzaga “voltava para curtir”, num show histórico no Tereza Raquel, no Rio de Janeiro, que o trouxe para perto da juventude universitária. O QV era um grupo de jovens universitários (com exceção do adolescente Sando, que, naturalmente, parou os estudos no terceiro ginasial, uma das razões pelas quais deixou o QV).

Em 1973, o quinteto e Luiz Gonzaga fizeram disputadas turnês pelo país. Com eles viajava Dominguinhos, que começava a ser conhecido por ter participado do show Luiz Gonzaga volta pra curtir e por ter entregado a Gilberto Gil o maior sucesso de sua carreira, Só quero um xodó (de Dominguinhos e Anastácia). Viajava também Gonzaguinha, ainda chamado de Gonzaga Jr. – num conturbado início de reaproximação com o pai adotivo.

Berra-boi (1973), A feira (1974, de que fez parte a então desconhecida paraibana Elba Ramalho), e Folguedo (1975) foram os discos que demarcaram o espaço do QV na MPB, que tornaram facilmente identificáveis gêneros musicais até então restritos aos que os faziam, e que levaram à primeira mudança no grupo, com a saída de Sando e a entrada de Zé da Flauta. A intensa rotina do QV cansou o adolescente Sando. Em 1974, o grupo comprou um ônibus no qual passou a viajar pelo país.

PÉ NA ESTRADA
Entre 1974 e 1983, contabilizou o recorde de 1 milhão de quilômetros rodados (mudando de veículo, naturalmente). A compra do ônibus foi bastante comentada na época. O QV foi o primeiro grupo musical brasileiro a viajar em seu próprio ônibus e também o pioneiro em alterar as regras do show business. Foi, por exemplo, o primeiro grupo musical que nasceu como empresa, a ser pessoa jurídica. O primeiro também a criar uma fundação. Outros artistas antes do QV fizeram shows e turnês patrocinados por empresas privadas, como Luiz Gonzaga, cujo nome por muito tempo foi relacionado ao do Colírio Moura Brasil. Por quase 10 anos, o quinteto manteve uma relação com o Banorte, que lhe rendeu críticas de puristas, entre os quais o crítico José Ramos Tinhorão, por ter impressa na contracapa de um disco a logomarca do banco.

Patrocinado pelo Banorte, o QV viajou pelo Brasil, fazendo concertos, gratuitos ou beneficentes, tanto em teatro quanto em praça pública. Com patrocínio da instituição financeira, foi pioneiro na revitalização do carnaval de rua do Recife e de Olinda, com o Bloco Azul, que saía pelas duas cidades, em um caminhão, levando o grupo e uma orquestra de frevos, a arrastar uma multidão de foliões, que bricavam gratuitamente no bloco, bastando para isso apenas fazer sua inscrição no escritório do grupo, nas Graças.

O grupo era irrequieto, e não se ateve apenas a retrabalhar o folclore nordestino em geral, e pernambucano em particular. Gravou a seguir a Missa do vaqueiro, um evento relativamente novo (começou em 1976); iniciou as aulas-espetáculo, em Pernambuco, num convênio com a Secretaria de Educação do Estado, e depois pelo Brasil, em convênio com a Funarte. Fez as primeiras turnês internacionais, no Midem, na França, e no Peru, e uma antologia do baião, em 1977 (faria dois anos depois o Pilogamia do baião). Despreocupados com o mercado, arquitetaram o conceitual Até a Amazônia, baseado na saga do repentista Pinto do Monteiro que, nos anos 1940, trocou o sertão paraibano pela selva amazônica, onde foi trabalhar como seringueiro. Foi se reformulando, adaptando-se aos tempos, mudando os integrantes. Zé da Flauta saiu do grupo em 1981, para entrada de Ciano Alves.

Em 1983, Luciano Pimentel deixou o QV, e foi substituído por breve tempo pelo ex-Ave Sangria Israel Semente, cuja vaga foi assumida pelo mineiro Márcio Batista, que saiu em 1985, para entrada de Kiko, cearense do Crato, que ficaria no grupo de 1985 a 1989 e, desde 1996, participa do QV como músico convidado. Roberto Medeiros entraria para o QV no mesmo ano. Já o sanfoneiro e violeiro Fernando Filizola saiu do Quinteto Violado em 1984. Gravou um disco, dois anos depois, Tá cheirando a coisa boa (Polydisc). Desde então, tem trabalhado com artes plásticas e como produtor, em Natal. Dudu Alves, filho de Toinho, entrou no grupo em 1991. Toinho Alves, Marcelo Melo, Ciano Alves, Roberto Medeiro, e Dudu Alves foram a formação mais duradoura do Quinteto Violado, infelizmente obrigado a mudá-la com o prematuro falecimento de Toinho, de um infarto, em maio de 2008. Em seu lugar, entrou o músico Thiago Fournier, que sairia para a entrada de Sandro Lins.

A partir deste mês, o Quinteto Violado comemora suas quatro décadas. O primeiro evento em torno dessa celebração é a exposição Lá vêm os Violados!, que permanece aberta à visitação de 3 a 31 de maio, no Centro Cultural dos Correios (Avenida Marquês de Olinda, Bairro do Recife), com fotos, todos os discos, filmes e debates em torno da trajetória do “conjunto”. No contexto da exposição nos Correios, também ocorrerá o Concerto 40 Anos de Quinteto Violado (dias 5, 6, 19, 20, 21, 26, 27 e 28 de maio, sempre às 19h, com entrada gratuita). 

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