Os outros nomes na disputa eram os dos cariocas Felipe Bragança e Marina Meliande (por A alegria), dos mineiros Sérgio Borges (por O céu sobre os ombros) e Tiago Mata Machado (por Os residentes), e de Marcelo Lordello (por Vigias), cineasta radicado em Pernambuco. Cinco ilustres desconhecidos, em torno dos 30 anos de idade, que projetavam suas primeiras experiências num longa-metragem (com exceção de Marina e Felipe) no mais emblemático festival de cinema do Brasil.
Essa exposição chamou a atenção da mídia tradicional para uma geração de cineastas que vem produzindo incessantemente, há cerca de 10 anos, um cinema cujo maior comprometimento é com suas inquietações a respeito do mundo contemporâneo e com as próprias possibilidades de linguagem que o cinema oferece. Sobre Vigias, Lordello afirma: “É fruto das reflexões de uma pessoa comum que sente seu entorno se modificar, de um habitante que assiste à desfiguração da cidade. Que é contra certas imposições de formas de vida que desconsideram as necessidades humanas”.
A alegria, longa de Felipe Bragança e Marina Meliande estreou na 43ª edição do Festival de Brasília. Foto: Divulgação
O diretor de fotografia de Vigias, o cearense Ivo Lopes Araújo, reforça: “Sempre sou aberto a cada novo trabalho que assumo, e me abstenho de questões políticas ou estéticas. O que importa ali é a construção do filme, e ela é sempre fruto de um belo encontro”.
Ele mesmo tornou-se uma espécie de aglutinador nacional dessa geração, mais marcadamente ativa no Rio de Janeiro, Pernambuco, Minas Geras, Ceará e um pouco em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Talvez o maior reflexo disso tenha se mostrado na mais recente edição (a 14ª) da Mostra de Cinema de Tiradentes, que acontece anualmente em janeiro, na histórica cidade mineira.
Lá, Ivo era responsável pela assinatura da fotografia de quatro longas em exibição. Além de Vigias e O céu sobre os ombros, ele fazia parte da equipe do pernambucano Avenida Brasília Formosa (2010), de Gabriel Mascaro, e do seu conterrâneo, Os monstros (2010), dirigido e atuado conjuntamente por Luiz e Ricardo Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes, integrantes do coletivo Alumbramento.
Entre os pontos de interseção formal presentes em O céu sobre os ombros e Avenida Brasília Formosa, há os personagens não atores, numa espécie de performance do cotidiano de suas próprias vidas, para cujos resultados Ivo Lopes Araújo foi figura determinante. “Assim que terminou de gravar comigo, Ivo começou a rodar com Gabriel (Mascaro); chegou lá contaminado e ajudou na construção do filme pernambucano, assim como no meu”, afirma Sérgio Borges. A consequência, diz o cineasta mineiro, é que esses filmes conversam entre si. Uma “conversa” que gerou até uma análise do pesquisador Cezar Migliorin, no artigo Construção da cidade.
Os monstros, filme foi dirigido por Luiz e Ricardo Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes. Foto: Divulgação
Ainda sobre Tiradentes, registra-se que a mostra vem se apresentando não apenas como o principal palco de exibição, encontro e discussão intelectual da obra dessa nova geração que brilhou em novembro em Brasília, como também o palco central no qual se travam os primeiros contatos entre eles. No alargamento dessas relações, no encontro na cidade mineira, são geradas novas ideias, parcerias e produções. Os realizadores concordam que o evento tem sido uma peça fundamental para aproximar o público dessas obras e chamar a atenção da mídia sobre elas.
Um de seus curadores, desde 2007, o crítico de cinema e realizador Eduardo Valente (responsável pela seleção de curtas-metragens, ao lado do crítico e cineasta Cléber Eduardo, que elege os longas) diz que, em 2011, a Mostra Aurora do festival, responsável por apresentar jovens diretores no início de sua trajetória, ganhou tratamento igual ao dado a grandes competições brasileiras, como Gramado e Brasília, no jornal O Globo.
Gabriel Mascaro diz: “Tiradentes é um festival que espero o ano inteiro para estar lá. É quando nos surpreendemos ao encontrar obras com semelhanças de propostas e participamos de discussões profundas, que ultrapassam questões estéticas ou temáticas”. Felipe Bragança lembra que a mostra “teve o mérito nos últimos cinco anos de procurar os filmes por aspectos estéticos, acima de tudo, e não pelo potencial como produto de consumo”.
Transeunte é o primeiro longa-metragem de Erik Rocha, apresentado em Brasília. Diretor já havia participado de festivais internacionais com documentários. Foto: Divulgação
SEM CLICHÊS
O fotógrafo Ivo Lopes diz que hoje não é preciso esperar três anos para ver, por exemplo, um novo filme filipino. É só acessá-lo no computador. E diz que o cinema feito por esses jovens realizadores brasileiros é reflexo mundial de uma juventude que observa as mudanças ao seu redor com a urgência em que elas acontecem. Ainda que concorde que os filmes dialogam com o estado das coisas no momento em que vivem, Gabriel Mascaro alerta que isso não pode ser entendido como um “fetiche geracional”, e Bragança reforça, “as características que marcam esse cinema não podem se tornar um clichê do cinema-jovem-filme-barato”.
O diretor de A alegria (exibido na Quinzena dos Realizadores, em Cannes, em 2010) e A fuga da mulher-gorila (vencedor da Mostra Aurora, em Tiradentes, 2009) esclarece que há também, em comum, um diálogo cinéfilo com clássicos do cinema universal, em particular dos anos 1960 e 1970, misturado a uma digestão de aspectos do dito “cinema contemporâneo”. “Há ainda um tom de fábula, de sonho, que chama a atenção no panorama do começo dos anos 2000. As imagens do cinema nacional costumavam ser associadas ao desvelamento do ‘real’ brasileiro. Acho que nossos filmes driblam, enfrentam ou passam ao largo disso”, pondera Bragança.
Sérgio Borges, integrante do coletivo Têia, de Minas Gerais, lembra que sua geração foi formada com a tecnologia digital, bem diferente das anteriores. “Nós editamos nossos filmes em casa, todos os integrantes da equipe dirigem, todos produzem e é assim que vai se formando essa construção criativa”.
O diretor Gabriel Mascaro é um dos entusiastas do Festival de
Tiradentes, onde afirma encontrar afinidades de propostas.
Foto: Marcelo Soares/Especial para a Continente
ALCUNHA
Com a crescente exposição dessas produções, surgem novas discussões e, com elas, as polêmicas. Uma delas (leia a respeito na página 50) surgiu a partir de um texto do crítico Carlos Alberto Mattos, publicado em resposta a um artigo escrito anteriormente pelo próprio Felipe Bragança, que é também um respeitado crítico cinematográfico. Nesse contexto, uma expressão surgiu, designando o cinema dessa geração: “novíssimo cinema brasileiro”, que já era pronunciada nos debates promovidos entre a crítica, os realizadores e o público na 14 ª Mostra de Tiradentes.
Eduardo Valente explica que o termo não foi criado como definidor de uma geração. “Ele surgiu como nome de uma sessão de cinema mensal, que teve seis edições em um cinema no Rio de Janeiro (o Cine Glória), cujo site, Novíssimo Cinema Brasileiro, ainda está no ar. A ideia nunca foi ser restritivo, mas, sim, chamar a atenção de um panorama carioca bastante árido para alguns filmes que mal estavam sendo exibidos por aqui. Mas a sessão foi encerrada com o fechamento da sala, interditada para reforma; quando reabriu, já não fazia sentido”.
Posteriormente, a ideia das sessões do Cine Glória, de certa forma, transformaram-se num evento chamado Semana dos Realizadores, coordenado por Valente e Lis Kogan, que acontece desde 2009, dias antes do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, em setembro. “Ficávamos impressionados com a falta de espaço local para uma série de filmes que admirávamos; e que até o Festival do Rio, com seu gigantismo de mais de 300 filmes por edição, parecia não se interessar”, lembra o curador Eduardo Valente, ressalvando, ainda: “Mas, de novo, a Semana também não se arvora do desejo de definir gerações nem nada assim”.
Estreia do filme Os residentes, de Tiago Mata Machado, no Festival de Brasília, chamou a atenção de público e crítica. Foto: Divulgação/Katásia Filmes.
TEMPO DISTENDIDO
Essa redução do grupo ao termo “novíssimos” também não agrada ao realizador mineiro Affonso Uchoa, diretor de Mulher à tarde (2010). “Se a única coisa que pudermos retirar desses filmes brasileiros recentes for a confirmação de certo clima, ambiente e estilo contemporâneo, ficaremos muito restritos; e os filmes acabariam morrendo de inanição. Claro que se poderia falar, entre outras coisas, do tempo distendido dos planos em A casa de Sandro (2009), Os monstros e Mulher à tarde, mas acaba por ser pouco, pois o importante seria pensar a que serve a distensão em cada um dos filmes; como esses tempos são articulados, o que o filme pretende construir, e por aí vai”, analisa.
Gustavo Beck, diretor de A casa de Sandro, acredita que ainda é prematuro apontar semelhanças estéticas ou discursivas. Com relação a Os residentes (projetado também no programa Fórum do 61° Festival de Berlim), por exemplo, Gustavo diz gostar da obra de Tiago Mata Machado “não por se aproximar dos demais filmes, mas pelo contrário. Acho que esse filme faz o caminho oposto de todos, que se constrói num espaço que não tem referência entre nós”.
Ainda assim, Gustavo reflete que, mesmo sendo alguns desses filmes irmãos, apresentam uma filiação completamente indefinida, alguns dos quais com personalidade própria muito incisiva. “Mas acho que, de alguma maneira, eles estão se ajudando, somatizando-se, construindo um pequeno recorte de um cinema nos dias de hoje.”
Já Valente se pergunta se há realmente o “novíssimo cinema brasileiro”, como grupo, geração, proposta estética. “Mas também acho que nos tempos de figuras como as do Cinema Novo, Cinema Marginal, Nouvelle Vague, viviam dizendo que eles não existiam. Ou seja, existem coisas que realmente ultrapassam os desejos, interesses, o domínio dos criadores no que se refere a como suas obras são recebidas, entendidas e historicizadas. E eu, particularmente, vivo tranquilo com isso.”
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