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Evidente matriz do cordel do Brasil

Com estudos dedicados às literaturas marginais, o ensaísta e professor português Arnaldo Saraiva traz ao Recife primeira exposição, em solo brasileiro, dos folhetos portugueses

TEXTO Maria Alice Amorim

01 de Abril de 2011

Arnaldo Saraiva

Arnaldo Saraiva

Foto Flora Pimentel

Poesia: foi essa a ponte que Arnaldo Saraiva construiu para transitar sobre o Atlântico. E é poeticamente que declara viver entre Portugal e Brasil, desde 1965. Sobre a obra de Drummond veio o primeiro texto a ser publicado no país – a apresentação para o livro Uma pedra no meio do caminho – Biografia de um poema, preparado com o próprio poeta em 1967, e que acaba de ser republicado. Bandeira e João Cabral estão entre as paixões, além de outros brasileiros e dos portugueses sobre os quais se debruça, a exemplo de Fernando Pessoa.

“Máquina subversiva”: assim define a poesia o professor universitário, pesquisador, ensaísta, poeta, cronista, tradutor e especialista em literatura de cordel, que, subvertendo ele mesmo os cânones literários, elegeu a poesia tradicional de cordelistas como um dos pilares de sua vasta e consistente produção acadêmica. Arnaldo foi o criador da cadeira Literaturas Orais e Marginais, na Universidade do Porto. É autor de uma série de ensaios – Literatura marginalizada, publicada em dois volumes nos anos 1975 e 1980 – e já tem material suficiente para, pelo menos, mais dois volumes. Foi, ainda, professor na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, e na Universidade de Paris – Sorbonne Nouvelle.

Tradutor de Brecht e Roberto Juarroz, passou décadas burilando a tradução dos 11 poemas do trovador Guilherme IX de Aquitânia. O “máximo de literalidade” e o “máximo de poeticidade” foram os critérios que adotou, inclusive o rigor quanto à rima e à métrica, para a produção dessa obra de referência, que, pela primeira vez, é traduzida e editada integralmente em língua portuguesa (Assírio & Alvim e Unicamp).

Sua coleção de cordéis contabiliza hoje cerca de 700 títulos portugueses, muitos dos séculos 18 e 19, entre os quais seis dezenas de folhas volantes. O mais antigo é de 1602. Os cordéis brasileiros, que há muito não contabiliza, passam de 3.500, comprados a partir de 1965, ano em que decidiu conhecer o Recife, exatamente a mesma cidade em que primeiro havia pisado terras brasileiras, ainda que apenas no aeroporto. Em todas as vindas ao Nordeste aproveita para ampliar o acervo, adquirindo novos títulos, além das ofertas de poetas e amigos.

Em 2006, publicou o catálogo Folhetos de cordel e outros da minha colecção, editado pela Biblioteca Municipal Almeida Garrett, do Porto, e expôs 125 folhetos da coleção de raridades que possui. A exposição passou, ainda, pela Biblioteca Nacional de Lisboa e agora – ampliada para 253 exemplares – chega ao Recife, precisamente ao Museu de Arte Popular, no Pátio de São Pedro, onde poderá ser vista até o dia 30 de abril. É sobre literatura de cordel que Arnaldo Saraiva fala à Continente.

CONTINENTE É sabido que as matrizes textuais dos folhetos de cordel brasileiros são as dos folhetos portugueses. Explique-nos.
ARNALDO SARAIVA O Brasil foi “descoberto” quando na Europa ocidental começaram a circular as primeiras folhas volantes e os primeiros folhetos. Devemos admitir que marinheiros e emigrantes portugueses muito ou pouco letrados, já no século 16, levariam consigo alguns deles, como de certeza fizeram em séculos posteriores, até para os venderem. Curiosamente, foi também no século 16 que, esquecidos os cancioneiros medievais, incluindo o de Garcia de Resende, se começou a formar, em terras portuguesas, um cancioneiro oral em que são evidentes – a par da linguagem oralizante e concreta, da visão pragmática e popular do mundo ou da vida (com especial focalização nos campos do amor, do trabalho e da aventura, real ou fictícia), e da relativa brevidade textual – algumas preferências formais favoráveis não só à fácil composição, mas também à boa recepção e memorização: o romance – um poema narrativo com afinidades com a balada –, geralmente assonantado, a quadra, a sextilha e a décima, com versos de rima cruzada e redondilhos, de cinco ou sete sílabas. O cordel brasileiro ou nordestino honrou essa tradição secular, mas fixou-se sobretudo na sextilha e no verso de redondilha maior.

CONTINENTE Que qualidades literárias você destacaria nos folhetos?
ARNALDO SARAIVA Quando hoje se fala em “literatura de cordel”, nem sempre se pensa só em textos de folhetos, e insinua-se frequentemente uma depreciação, que tanto pode dever-se a algum preconceito de gente que se supõe culta como à má qualidade textual de muitos deles. Porque é preciso dizer que nem todos os folhetos são de literatura, e nem todos são boa literatura. Genericamente, as suas qualidades são as dos textos literários: apuro verbal, formulações ou representações originais e sensíveis, trabalho do ou sobre o imaginário.


Imagem: Reprodução

CONTINENTE Que outros aspectos, além do poético, são relevantes para os estudos do cordel?
ARNALDO SARAIVA Quando, em meados dos anos 1960, comecei a interessar-me pelo cordel, percebi que em Portugal quase ninguém o estudava e não havia, nem há ainda, uma só obra de referência sobre ele; e dei-me conta de que o Brasil só mobilizara quatro ou cinco universitários: Cascudo, Cavalcanti Proença, Mark Curran, Cantel… Nas últimas décadas proliferaram os estudos do cordel brasileiro, alguns dos quais muito incipientes e repetitivos, mas no Brasil, como em Portugal, há ainda muito a apurar à volta dos folhetos: biografias e identificação de autores, gravadores ou ilustradores, impressores, vendedores; condições e lugares de produção, venda, leitura e audição; relações entre textos e cantorias ou recitações; fontes de inspiração e métodos de trabalho ou composição; questões genéticas, linguísticas, comparatistas; tipologias editoriais e textuais. É evidente que o folheto de cordel pede e pedirá sempre estudos de poética – e de história, de sociologia, de psicologia (da composição, mas também das “massas”), de economia, de antropologia, de folclore, de linguística, de teoria da comunicação…

CONTINENTE Tendo em conta os cinco séculos de produção, que características definiriam obrigatoriamente o folheto?
ARNALDO SARAIVA Tanto do ponto de vista textual como do extratextual há uma enorme variedade de folhetos, mesmo considerando só os que são verdadeiramente de cordel (porque alguns são só imitações). Mas há também evidências e constantes: oposição à ideia de livro (mais ou menos extenso, mais ou menos sólido); brevidade textual ou escasso número de páginas (indo do extremo da volante – folha volante – ou das quatro páginas – a folha dobrada – até ao de um livrinho ou livrito de mais de 32 páginas, mas ficando geralmente pelas 8, 12, 16, 24 páginas); papel ordinário ou frágil; relativa despreocupação na impressão ou no grafismo, salvo o da capa, que durante séculos era do mesmo papel do folheto e se valia frequentemente de uma chamativa gravura ou xilogravura; leveza; baixo custo de produção e baixo preço de venda; temas ou matérias de interesse popular ou coletivo; linguagem escrita, mas geralmente próxima da ou comprometida com a oral; discurso de tipo jornalístico, de fácil ou simples comunicação, e com os olhos postos na atualidade; texto orientado quase sempre para o cumprimento de funções informativas, moralizadoras, críticas e distrativas. O folheto não se afastou muito, ao longo dos tempos, do mesmo modelo gráfico, que no Brasil se padronizou mais do que em Portugal; mas devem ser assinaladas as mudanças, a partir da primeira ou segunda década do século 20, da diferenciação do papel da capa e da introdução nesta da cor, ou de um novo tipo de gravuras (as zincogravuras) e de ilustrações (fotografias, desenhos, caricaturas…); mais recentemente, tornou-se notória a melhoria da impressão em offset, e, nos últimos anos, por computação. Como antes noutros países europeus, o típico folheto de cordel desapareceu (em Portugal por volta de 1970), quando no Brasil começou a ser mais difundido, até para fora do Nordeste, e a aumentar a sua produção, já não devida só a poetas populares, nalguns casos pouco alfabetizados, mas também a universitários, o que se evidencia nos textos, que também podem refletir muito epigonismo e artificialismo.


Imagem: Reprodução

CONTINENTE Fale-nos sobre o romance João de Calais, clássico do cordel português e brasileiro.
ARNALDO SARAIVA Luís da Câmara Cascudo e a minha saudosa amiga Francisca Neuma Fechine Borges deram grande relevância aos folhetos sobre João de Calais, e eu tenho em fase adiantada um longo estudo sobre esses folhetos, de que já inventariei mais de uma trintena de edições diferenciadas. Inspirado numa narrativa da francesa Madame de Gomez, que a publicou em 1722, o “romance” ou a “história” de João de Calais é exemplar a vários títulos: exemplo de migração ou emigração da França para Portugal (sem parar em Espanha), e de Portugal para o Brasil, onde aparece inicialmente em prosa portuguesa, depois em verso brasileiro, e também em verso português; exemplo de transições ou transcodificações da prosa para o verso, do oral para o escrito e do escrito para o oral; exemplo de modalidades de tradução e de adaptação, de variantes e de variações; exemplo de tratamento lírico de um personagem heroico, com características que podem lembrar heróis bíblicos, gregos (Ulisses), romanos, cavaleiros medievais, aventureiros e marinheiros renascentistas… Infelizmente, não é possível contabilizar os milhares de folhetos sobre João de Calais que se terão vendido desde os fins do século 18; mas temos testemunhos até de vários escritores cultos (António Nobre, Miguel Torga, Vitorino Nemésio…) que dão conta do sucesso ou do fascínio de tal personagem.

CONTINENTE O cordel feito hoje no Brasil mantém coerência quanto à secular tradição poética arraigada na cultura nordestina?
ARNALDO SARAIVA Há largas décadas que deixou de se produzir na Europa o típico folheto de cordel – por razões que se prendem à escolarização geral e à popularização da imprensa, do rádio e da televisão. Que no Brasil continuem a produzir tantos folhetos, que haja ainda um numeroso público, e não já só no Nordeste, e não já só popular, interessado nesses folhetos, que à custa dos folhetos viva uma poderosa indústria brasileira – é coisa que poderá causar espanto em todo o mundo, e que parece um milagre, como milagre parece ter sido o “nascimento” do típico cordel brasileiro nas fronteiras da Paraíba e de Pernambuco, na segunda metade do século 19, à volta de poetas excepcionais como Silvino Pirauá de Lima e Leandro Gomes de Barros, assim como de gravadores, cantores e tipógrafos populares, que às vezes se reuniam na pessoa do próprio poeta. O folheto nordestino foi claramente modelizado pelo folheto português, idêntico ao espanhol; prescindiu do teatro e, quase, da prosa, abundantes no cordel português, prolongou a produção de poemas de tipo tradicional como os debates ou as pelejas, os ABC, os testamentos, fixou-se em testados tipos populares de estrofe e de metro, como a sextilha e a redondilha maior, herdou ciclos e personagens de contos e de cordéis de sucesso europeu, como a Imperatriz Porcina, Carlos Magno, João Grilo, mas introduziu novos ciclos e novos personagens (o cangaço, o futebol, a história brasileira, a vida sertaneja… Lampião, Padre Cícero, Cancão de Fogo, seu Lunga, políticos e personalidades brasileiras, cabras da peste), valeu-se de uma língua mais oral, mais popular e mais afastada das normas gramaticais, contou com a produção de algumas mulheres, tendeu muito mais para a exploração do cômico e do jocoso, soltou-se mais na prática da crítica, na invenção e na exploração do imaginário. É possível que o folheto de cordel brasileiro tenha, também ele, os dias contados. Mas é impossível que a tradição que ele prolongou ou prolonga, revigora e transforma não tenha grandes repercussões na cultura brasileira e na cultura de língua portuguesa do futuro. 

MARIA ALICE AMORIM, Jornalista, pesquisadora de cultura popular e doutoranda em Comunicação e Semiótica.

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